Ementa: Prisão do depositário judicial infiel economicamente capaz no processo do trabalho: constitucionalidade. Inexistência de «reiteradas decisões sobre matéria constitucional» com mesma orientação semântica (STF). Mera supralegalidade do Pacto de San José da Costa Rica. Renovação legislativa do instituto. Natureza jurídica de sanção por "contempt of court". Caráter estritamente alimentar de verbas sob execução trabalhista.
Palavras-chave: Prisão civil. Depositário infiel. Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos). "Contempt of court". Efetividade da execução (processo do trabalho).
Sumário: 1. Efetividade da execução e devido processo legal. 2. A prisão civil do depositário infiel. 2.1. A Constituição Federal e o Pacto de San José da Costa Rica. 2.2. Posições do Supremo Tribunal Federal. 2.3. A questão da hierarquia das normas internacionais (I): interpretação autêntica do artigo 5º, §3º, CRFB. 2.4. A questão da hierarquia das normas internacionais (II): regime de recepção por derivação vinculada a ato de legitimação política. 2.5. A questão da natureza jurídica da prisão do depositário infiel: "contempt of court". 3. Conclusões
1. EFETIVIDADE DA EXECUÇÃO E DEVIDO PROCESSO LEGAL
Nos Estados Democráticos de Direito, o conceito de jurisdição já não se limita ao velho conceito chiovendiano de atuação da vontade concreta da lei; nem tampouco se atém à ideia carneluttiana de composição de conflitos de interesses qualificados por pretensões resistidas. A jurisdição, em acepção moderna — seguida, entre outros, por A. PROTO PISANI (na Itália) e por OVÍDIO BAPTISTA e GUILHERME MARINONI (no Brasil) —, vincula-se mais diretamente ao rol constitucional de direitos fundamentais e à própria noção de justiça concreta.
Assim é que, ao dissecar o conteúdo semântico da cláusula constitucional do devido processo legal procedimental («procedural due process»), o intérprete deve necessariamente reconhecer, ao lado de ideias-força como as de ampla defesa, de contraditório ou de publicidade dos atos, a de tutela jurisdicional efetiva (que se liga diretamente à fase executiva do processo). Na dicção do próprio MARINONI,
"[...] a norma constitucional que afirma a ação [artigo 5º, XXXV] institui o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, e, dessa forma, confere a devida oportunidade da prática de atos capazes de influir sobre o convencimento judicial, assim como a possibilidade do uso das técnicas processuais adequadas à situação conflitiva concreta. [...] O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva obriga o juiz a garantir todos os seus corolários, como o direito ao meio executivo capaz de permitir a tutela do direito, além de obrigar o legislador a desenhar os procedimentos e as técnicas processuais adequadas às diferentes situações de direito substancial. [...] As novas técnicas processuais, partindo do pressuposto de que o direito de ação não pode ficar na dependência de técnicas processuais ditadas de maneira uniforme para todos os casos ou para alguns casos específicos, incorporam normas abertas, isto é, normas voltadas para a realidade, deixando claro que a ação pode ser construída conforme as necessidades do caso conflitivo" (Teoria Geral do Processo, 3ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2008, v. I, pp.285-291 – g.n.)
Nesse encalço, é certo que (1) o binômio processo/procedimento deve se adequar às necessidades de satisfação do direito material "in concreto" (em especial quando dotado de jusfundamentalidade), não o contrário; e (2) o conceito de jurisdição passa a se erguer sobre três pilares:
(a) revalorização do sentido de função de tutela da atividade jurisdicional (especialmente em relação aos direitos fundamentais do cidadão e à respectiva dimensão da eficácia, em sentido vertical e horizontal);
(b) reconhecimento do princípio da efetividade da jurisdição como corolário do devido processo legal (artigo 5º, LIV, in fine, CRFB);
(c) reconhecimento da jurisdição como espaço público legítimo para o diálogo social legitimador do fenômeno jurídico (transigindo — como já é inevitável na pós-modernidade — com a ideia habermasiana de Direito como agir comunicativo [01]).
Sendo assim, põe-se a questão: como compreender, nesse novo contexto, a questão da prisão civil do depositário infiel (artigo 5º, LXVII, CRFB)? Atende-se, e em que medida, à função de tutela material do fenômeno jurisdicional?
2. A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL
2.1. A Constituição Federal e o Pacto de San José da Costa Rica
A questão não é nova, em absoluto. Reza o artigo 5º, LXVII, da CRFB, no rol dos direitos individuais da pessoa humana, o seguinte:
"LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel" (g.n).
No entanto, no ano de 1992, por intermédio do Decreto n. 678/92, entrou em vigor no Brasil a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. A Convenção, aprovada em 22.11.1969 no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), colhe dos Estados signatários o compromisso de "respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e […] garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que está sujeita à sua jurisdição, sem qualquer discriminação". E, no que toca aos direitos de liberdade, assim dispõe o seu artigo 7º, n. 7:
"7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar" (g.n.).
Após o ingresso das normas do Pacto de San José na ordem jurídica interna brasileira, e à vista do que dispõe o artigo 5º, §2º, da CRFB, passou-se a discutir quais os efeitos da garantia do artigo 7º, n. 7, nas disposições constitucionais e legais em vigor, notadamente naquelas que equiparavam à condição de depositário infiel devedores dos mais diversos matizes (alienação fiduciária em garantia, cédulas hipotecárias rurais e industriais, etc.). Seguiu-se a isso um período de amadurecimento intelectual, que culminou com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria. E, na sua esteira, o enunciado n. 17 da PSV n. 03, assim redigido:
"PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO INFIEL. É ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito" (g.n.).
Vê-se que o texto proposto não estabelece distinção entre as variegadas hipóteses de ordens de prisão calcadas na hipótese de infidelidade depositária. No que, cremos, não andou bem. Mas, para tanto concluir, é importante, pois, examinar o teor dessas decisões. Vejamo-las.
2.2. POSIÇÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Em sucessivos julgamentos, inspirado pelos bons ventos do Pacto de San José, o Excelso Pretório tem se manifestado pela inconstitucionalidade de normas legais que dispõem sobre a prisão civil de devedores equiparadas a depositários infiéis. Nem todos, porém, seguem a mesma linha de raciocínio hermenêutico. Na verdade, divisam-se claras divergências de entendimento imanentes aos próprios arestos ou votos vencedores (conquanto encaminhem, em vários aspectos, resultados bem semelhantes).
Entre as tantas decisões, algumas merecem apontamento e transcrição, até porque estão na base de fundamentação do enunciado n. 17 da PSV n. 03.
Em primeiro lugar, deve-se referenciar o Recurso Extraordinário n. 349.703/RS, relatado pelo Ministro AYRES BRITO, em voto que talvez seja o mais paradigmático da linha jusfundamentalista de interpretação da norma do artigo 5º, LXVII, da CRFB. Lê-se no aresto:
"1. PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002).
E, na sequência, lê-se:
"2. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPARAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: (a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e (b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. Recurso extraordinário conhecido e não provido"
(STF, RE n. 349.703, Min. AYRES BRITTO, j. 03.12.2008 — g.n.).
Não foi, porém, essa a decisão a inspirar a redação do enunciado n. 17 da PSV n. 03. Ao contrário, aquela redação — que, vimos, generaliza a proibição de cerceamento à liberdade do depositário infiel — está umbilicalmente ligada ao julgamento do RE n. 466.343/SP, da relatoria do Min. CEZAR PELUSO. Nesse último, pode-se ler a seguinte ementa:
"PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito"
(STF, RE n. 466.343/SP, Min. CEZAR PELUZO, j. 03.12.2008 — g.n.).
Mais eloquente ainda, nessa mesma direção, é a ementa do HC n. 91.361-SP, da relatoria do Min. CELSO DE MELLO, que reconhece explicitamente a possibilidade de «mutação informal da Constituição», com espeque na jurisprudência dos tribunais. Grafou-a nos seguintes termos:
"HABEAS CORPUS" – PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO LEGAL (LEILOEIRO OFICIAL) - A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA - CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n. 7) - HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS – PEDIDO DEFERIDO. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL.
- Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário. Precedentes.
"TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO BRASILEIRO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA.
- A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana.
- Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes.
- Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? - Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos.
"A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO.
- A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea.
"HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO.
- Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica.
- O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs.
- Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano"
(STF, HC n. 91.361-SP, rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 23.09.2008 - g.n.).
Cotejando-se esses julgados — que ocupam o papel mais proeminente na base de sustentação da proposta de enunciado (em especial os dois primeiros) —, pode-se facilmente observar um choque de concepções. Nesse último aresto, resta clarividente o entendimento perfilhado pelo Min. CEZAR PELUSO, no sentido de que a norma do artigo 5º, LXVII, da CRFB, é insubsistente (essa é a expressão da ementa), assim como — e com maior razão — as normas infraconstitucionais que regulavam a hipótese. Propõe, portanto, uma tese de «esvaziamento» da parte final do inciso LXVII do artigo 5º, provavelmente dentro da ideia de "Constituição viva" e de historicidade da Lex legum (a que corresponde, segundo J. J. GOMES CANOTILHO, o princípio da força normativa da Constituição [02]); isso porque, afinal, o Supremo Tribunal Federal não poderia sem mais julgar inconstitucional um preceito — ou parte dele — ditado pelo próprio Poder Constituinte originário. Já naquele primeiro julgado, contrariamente a esse derradeiro, convém atentar para dois aspectos fundamentais.
A uma, e por um lado, o aresto da lavra do Min. AYRES BRITTO faz expressa referência ao artigo 652 do NCC, pelo qual, "seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos". E, com efeito, entre as hipóteses de depósito necessário, está a do "que se faz em desempenho de obrigação legal" (artigo 647, I, NCC), como é o caso do depositário judicial. Realmente, consta do artigo 665, IV, do CPC a previsão legal de nomeação de depositário para os bens penhorados; logo, quem voluntariamente assume esse compromisso, na forma do respectivo termo de depósito ou da própria certidão do oficial de justiça, passa a estar no desempenho de obrigação legal, ordinariamente dimanada do próprio artigo 655 do CPC, sujeitando-se, por essa via, ao regime jurídico dos artigos que regem a matéria no campo civil (627 a 652, no que couber). Noutras hipóteses, mais específicas, a «obrigação legal» estará calcada em outras normas do Código de Processo Civil, como a do seu artigo 188, a do seu artigo 824 (cautelar de sequestro), etc. Mas, em todo caso, «obrigação» (dir-se-ia melhor dever) de natureza legal, a perfazer hipótese de depósito necessário, desde que, na origem, haja interesse do cidadão em assumir as responsabilidades de depositário e, com isso, preservar ou obter a posse dos bens constritos. A partir de então, só por expressa decisão judicial poderá ser liberado de seus deveres para com o juízo; e, para esse fim, o magistrado oficiante deverá considerar, sempre, quais as razões alegadas para o requerimento de destituição.
A duas, e por outro lado, o aresto da lavra do Min. AYRES BRITTO faz concomitante referência ao art. 5º, inciso LXVII, da Constituição (= prisão do depositário infiel), o que significa que, naquele voto (aprovado por unanimidade), está subentendida, para algum efeito, a subsistência do permissivo constitucional do artigo 5º, LXVIII, "in fine", da CRFB. Cai por terra, portanto, a tese do «esvaziamento» desse preceito normativo.
Constata-se, pois, que as teses vazadas num e noutro aresto não são coincidentes. O primeiro considera apenas a legislação infraconstitucional, que teria sido superada, nessa parte, pelo Pacto de San José da Costa Rica (inclusive no Código Civil de 2002, apesar da sua posteridade cronológica); não entrevê, porém, qualquer esvaziamento na norma constitucional (ao menos explicitamente). O segundo, por sua vez, considera ter havido uma derrogação de conteúdo na norma do artigo 5º, LXVII, da CRFB. Outrossim, o primeiro cinge-se à hipótese do Decreto-lei 911/69 (= alienação fiduciária em garantia), esgrimindo com o princípio da proporcionalidade (i.e., considerando haver, em juízo concreto, um descompasso entre a legislação ordinária e os princípios de liberdade que informam a Constituição, o que corresponde a declarar a desconformidade daquela específica hipótese de prisão civil — a do devedor-fiduciante — com a «law of the land», i.e., com o devido processo legal substantivo). Com isso — diga-se —, não discordamos, em absoluto [03]. A questão é que o segundo julgado, por seu turno, versa tese completamente diversa: na sua perspectiva, qualquer hipótese de prisão civil por infidelidade depositária seria inconstitucional, "in abstracto" e "ab ovo", independentemente de qualquer juízo concreto de proporcionalidade. Como se nota, os dois arestos encaminham teses bem diferentes (conquanto, na prática, ambos terminem invalidando a restrição à liberdade da pessoa).
Quando, porém, se examina o teor do 17º enunciado da P.S.V. n. 03, não se encontram fiapos quaisquer daquela primeira visão de mundo. O enunciado é simplesmente a reprodução da parte final da ementa exarada no RE n. 466.343, que guarda boa distância do pensamento veiculado no RE n. 349.703. E, como sabemos, um dos pressupostos legais para que se edite uma súmula vinculante é, nos termos do artigo 103-A, caput, da CRFB (na redação da E.C. n. 45/2008), que
"O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei" (g.n.).
No mesmo sentido, quase dois anos depois, promulgou-se a Lei n. 11.417/2006 — que "regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal" —, cujo artigo 2º, caput, praticamente reproduz o texto anterior.
Sendo assim, no âmbito do STF, a existência de reiteradas decisões sobre determinada matéria constitucional (i.e., a existência de iterativa jurisprudência — com mesmo teor semântico — acerca de certo tema constitucional) é condição "sine qua non" para a edição de uma súmula vinculante. "A contrario sensu", se é notória a divergência de teses (apesar da uniformidade de resultados), o texto de uma das ementas — que abraça uma das teses, em prejuízo parcial daquela outra — jamais poderia dar forma a uma súmula vinculante. Afinal, o que está em jogo é sobretudo a "ratio decidendi" dos julgados, não o seu resultado prático-formal (ou não se trataria de função judiciária, mas de função legislativa discricionária [04]).
Bem a propósito, identificando o eixo evolutivo dessas mesmas teses — e, por conta disso, a principal fonte das divergências entre aqueles julgados —, vem à baila o quanto dito pelo Min. GILMAR MENDES, da mesma corte suprema, tanto em seu voto no HC n. 87.585-8/TO, quanto em recente texto doutrinário [05]. Para MENDES,
"[...] as consequências práticas da equiparação [dos tratados de direitos humanos à Constituição] vão nos levar a uma situação de revogação de normas constitucionais pela assinatura de tratados. [...] O Estado Constitucional não mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais" (g.n.).
Noutras palavras, fiando-se no paradigma pós-moderno do chamado «Estado Constitucional Cooperativo», GILMAR MENDES parece caminhar, com certa doutrina, para o reconhecimento de uma condição de supraconstitucionalidade em favor dos tratados de direitos humanos (endossando — ou superando —, nesse aspecto, a tese de CEZAR PELUSO, de CELSO DE MELLO e, outrora, do ímpar VICENTE MAROTTA RANGEL). Isso conduziria, no futuro, a um desdobramento dos estratos de legitimidade de leis sindicáveis junto ao Excelso Pretório (aproximando-nos, aqui, do modelo europeu continental): de uma lado, a constitucionalidade de leis; de outro, a convencionalidade de leis. E, nesse encalço, a aprovação do Pacto de San José da Costa Rica poderia realmente «esvaziar» a parte final da norma do artigo 5º, LXVII, da CRFB. Observe-se, porém, que essa tese está em franca colidência com aquela perfilhada pelo Min. AYRES BRITTO no RE n. 349.703, em cuja ementa se lê, textualmente, que "o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos [na espécie, o Pacto de San José] lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna"; o que equivale a ressaltar, adiante, "o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil". Ou seja: supralegalidade, mas não constitucionalidade ou supraconstitucionalidade do texto convencional (contrapondo-se, pois, à tese de PELUZO). Curiosamente, aliás, é o que também afirmou o próprio Min. GILMAR MENDES, mas agora no RE n. 466.343, assegurando que os tratados sobre direitos humanos aprovados sem o rito do artigo 5º, §3º "seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade" (g.n.).
Cite-se, enfim, o quanto ementado no próprio HC n. 87.585, da relatoria do Min. MARCO AURÉLIO, que praticamente prenunciou essa mudança de rumos [06], logo após a edição da E.C. n. 45/2004. Nesse habeas, decidiu-se, na linha do quanto decidido pelo Min. AYRES BRITTO (mas alguns anos antes), o seguinte:
"DEPOSITÁRIO INFIEL – PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel" (ementa oficial — g.n.).
Noutro trecho:
"[…] 2. Surge a relevância do que articulado. Se, de um lado, é certo que a Carta da República dispõe sobre a prisão do depositário infiel - artigo 5º, inciso LXVII -, de outro, afigura-se inaplicável o preceito. As balizas da referida prisão estão na legislação comum e, então, embora a norma inserta no artigo 652 do Código Civil seja posterior aos fatos mencionados, o mesmo não ocorre com a disciplina instrumental prevista no Código de Processo Civil"
(STF, HC n. 87.585, Min. MARCO AURÉLIO, j. 20.12.2005 [liminar] — g.n.).
Nesse último excerto, sustenta-se claramente — quiçá numa terceira perspectiva — que, a uma, não houve revogação ou «esvaziamento» da parte final do artigo 5º, LXVII, da CRFB, mas apenas uma condição "sui generis" de ineficácia pela revogação da legislação infraconstitucional (e, muito particularmente, das normas do Código de Processo Civil que se aplicariam à matéria), face ao advento do Pacto de San José [07]; logo, o julgado não compartilha, em absoluto, da ideia de constitucionalidade ou supraconstitucionalidade da norma do artigo 7º, 7, do Pacto, a ponto de seguir citando o permissivo constitucional, para depois considerá-lo apenas "inaplicável" no atual contexto. A duas, a referência à posteridade da norma do artigo 652 do NCC — que AYRES BRITTO reputaria inaplicável no RE n. 349.703 —, em contraponto com a superação das normas processuais civis pertinentes (artigos 902, 904 e 905 do CPC), sugerem, "a contrario sensu", que o Min. MARCO AURÉLIO sequer supôs a supralegalidade do tratado, mas tão-só a sua legalidade (em grau ordinário), a ponto de se submeter à regra geral de sucessão de leis no tempo, ut artigo 2º, §1º, da LICC ("lex posterior derogat priori"). É, ademais, como pensava a doutrina majoritária ao tempo da ratificação executiva do Pacto de San José da Costa Rica [08]. A ser assim, nessa terceira perspectiva (mera legalidade), bastaria apenas editar uma nova disciplina legal-processual, para que a norma do artigo 5º, LXVII, da CRFB recobrasse os seus efeitos no plano da eficácia. E, de certo modo, essa nova disciplina processual foi provida com a edição da Lei n. 11.382/2006 — posterior à aprovação interna do Pacto de San José e ao próprio aresto supra —, que incluiu, no artigo 666 do CPC, o seu parágrafo 3º, assim ditado:
"A prisão de depositário judicial infiel será decretada no próprio processo, independentemente de ação de depósito" (g.n.).
Assim, o legislador autonomizou a ordem de prisão civil por infidelidade depositária judicial, desvinculando-a do procedimento especial regulado entre os artigos 901 a 906 do CPC (resolvendo, dessarte, longa celeuma doutrinária). Isso significa que, a seguir o raciocínio do Min. MARCO AURÉLIO, e mesmo se derrogadas/ab-rogadas algumas daquelas normas de rito da ação de depósito (porque anteriores ao Pacto de San José), a prisão civil do depositário judicial infiel economicamente capaz segue possível, independentemente do que se passe hoje com o depositário contratual ou necessário (não-judicial); e segue possível pela expressa vontade do legislador ordinário, declarada ulteriormente ao Decreto n. 678/92.
Por tudo isso, é certo haver, ao menos, duas teses distintas reunidas, de modo indiferenciado, como "ratio decidendi" do enunciado n. 17 da PSV n. 03 (se não mais). A divergência interna, a sugerir ainda a necessidade de amadurecimento das teses, foi inclusive explicitada pelo Min. RICARDO LEWANDOSKY no mesmo HC n. 87.585 [09]. Apenas essa circunstância, a nosso ver, já desautoriza formalmente a aprovação de súmula vinculante, em qualquer sentido, mercê da hipótese de admissibilidade do artigo 103-A, caput, da CRFB, e do artigo 2º, caput, da Lei n. 11.417/2006.
Mas não é só. A questão da supralegalidade remete-nos a outro nível de discussão, que passo a explorar nos dois próximos itens.
2.3. A QUESTÃO DA HIERARQUIA DAS NORMAS INTERNACIONAIS (I): INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA DO ARTIGO 5º, §3º, CRFB
Pode-se — e deve-se — reconhecer a constitucionalidade e a legalidade da prisão civil do depositário judicial infiel economicamente capaz (sem prejuízo das teses de ilegitimidade da prisão civil nos casos de equiparação legal, como na alienação fiduciária em garantia e nas cédulas hipotecárias, às quais acedemos). E há de ser assim por ao menos duas vias distintas de argumentação (= abordagem): a abordagem jurídico-formal e a abordagem jurídico-semântica. Trataremos da primeira neste tópico e no seguinte; e da segunda, no tópico «1.E».
No plano jurídico-formal, vem à baixa a questão da hierarquia dos tratados após a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 45/2004. Como se sabe, após a emenda, o artigo 5º da Lex legum passou a contar com dois parágrafos relativos ao regime jurídico dos direitos humanos fundamentais, a saber:
"§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
"§ 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais" (parágrafo acrescido pela E.C. n. 45/2004).
E, a respeito de tais preceitos, assim se pronunciou, entre tantos, o eminente JOSÉ AFONSO DA SILVA [10]:
"Esse § 3º inserido pela Emenda Constitucional 45/2004 regula ou interpreta a segunda parte do § 2º quando admite a incorporação dos tratados e convenções sobre direitos humanos ao direito constitucional pátrio — recepção, essa, que gerou controvérisa quanto a saber em que termos se dava essa incorporação. Parte da doutrina — que tinha meu apoio — sustentava que essa incorporação se dava já com a qualidade de norma constitucional; outra entendia que assim não era, porque esses acordos internacionais não eram aprovados com o mesmo quorum exigido para a formação de normas constitucionais. Não é o caso de discutir, agora, o acerto ou o desacerto dessas posições, uma vez que a Emenda Constitucional 45/2004, acrescentando esse § 3º ao art. 5º, deu solução expressa à questão no sentido pleiteado por essa última corrente doutrinária. Temos aí um § 3º regulando interpretativamente cláusula do § 2º, a dizer que os tratados e convenções sobre direitos humanos só se incorporarão ao Direito interno com o status de norma constitucional formal se os decretos legislativos por meio dos quais o Congresso Nacional os referenda (art. 49, I) forem aprovados com as mesmas exigências estabelecidas no art. 60 para a aprovação das emendas constitucionais […]. A diferença importante está aí: as normas infraconstitucionais que violem as normas internacionais acolhidas na forma daquele § 3º são inconstitucionais e ficam sujeitas ao sistema de controle de constitucionalidade na via incidente como na via direta; as que não forem acolhidas desse modo ingressam no ordenamento interno no nível de lei ordinária, e eventual conflito com as demais normas infraconstitucionais se resolverá pelo modo de apreciação da colidência entre lei especial e lei geral " (g.n.).
O lente do Largo São Francisco supõe, portanto, que a função constitucional do parágrafo 3º é a de interpretar o parágrafo 2º, de modo que, em relação aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, a incorporação do direito internacional com "status" constitucional (§2º) dependeria, necessariamente, da aprovação pela devida forma do parágrafo 3º. Sendo assim, duas seriam, para o nosso caso, as necessárias conclusões: (a) a parte final do §2º seria dispensável — ou, mais, não teria razão de ser —, pois a incorporação de direitos e garantias previstos em tratados internacionais de que o Brasil fosse parte far-se-ia mesmo nos termos do §3º; (b) o Pacto de San José da Costa Rica jamais poderia gozar de constitucionalidade (ou, com maior razão, de supraconstitucionalidade), já que foi referendado pelo Congresso Nacional mediante decreto legislativo aprovado por quórum simples, sendo a seguir ratificado por decreto do Poder Executivo [11]. Assim, a interpretação vazada nos arestos cujas ementas foram transcritas acima (Ministros CEZAR PELUSO, AYRES BRITTO, GILMAR MENDES, MARCO AURÉLIO) não seria possível, em absoluto: mercê do nível constitucional da norma do artigo 5º, LXVII, in fine, da CRFB — e, bem assim, da posteridade das normas do artigo 652 do NCC e do artigo 666, §3º, do CPC (ambas constantes de textos promulgados após a ratificação executiva do Pacto de San José) —, a prisão civil do depositário infiel seguiria legítima e factível, ao menos nas hipóteses de infidelidade depositária judicial.
E nem se diga, a propósito, que a prisão civil do depositário judicial infiel não seria possível — apesar da posteridade dos artigos 652 do NCC e 666, §3º, do CPC —, dada a supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos (fiando-se na leitura do Min. AYRES BRITTO, supra). A bem se ver, esse pensamento termina conferindo aos tratados de direitos humanos, na prática, o poder de sustar indefinidamente a eficácia da norma constitucional, porque não há, no ordenamento interno brasileiro (artigo 59 da CRFB), qualquer espécie legislativa que esteja «entre» a Constituição e as leis (inclusa a lei complementar, que também é lei). Logo, a norma do artigo 5º, LXVII, in fine, da CRFB só poderia ser «revivida», no plano da eficácia, por algum outro tratado internacional, que a seu modo dispusesse sobre ritos para a prisão civil de depositários infiéis nos países signatários.
Mas isso configuraria, na prática, a ab-rogação da norma do artigo 7º, 7, do Pacto de San José, o que nos levaria a concluir que, de todo modo, a possibilidade jurídica de prisão civil do depositário infiel (inclusive o judicial), no plano interno, dependeria necessariamente da revisão da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, apesar da subsistência de norma constitucional válida. Ou seja: «supralegalidade» com efeitos cabais de constitucionalidade (ou mesmo de supraconstitucionalidade, a se supor que a norma do artigo 7º, 7, do Pacto esteja albergada pela cláusula de indenidade do artigo 60, §4º, IV, da CRFB) — o que significaria, para todos os fins, ofensa oblíqua à norma do artigo 5º, §3º, da CRFB, por inobservância da devida forma ali estatuída.
Tampouco se diga, outrossim, que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos ter-se-ia incorporado imediatamente à Constituição da República, simplesmente porque aprovada e ratificada antes do advento da E.C. n. 45/2004. A valer o magistério de AFONSO DA SILVA, o novel parágrafo 3º do artigo 5º não fez mais que interpretar a norma do parágrafo 2º, perfilhando uma das teses que até então se digladiavam. Se houve, pois, mera interpretação autêntica (ou semi-autêntica, considerando-se que a composição do Parlamento em 2004 já não correspondia à da Assembleia Nacional Constituinte de 1987), e não inovação de regime constitucional, a norma do artigo 5º, §2º não pode ser interpretada em desconformidade com o seu atual parágrafo 3º, antes ou depois de dezembro de 2004. No mínimo, a nova regra teria restringido efeitos de textos normativos internacionais que, antes de 2004, tenham sido diretamente recepcionados com "status" constitucional, sem quórum qualificado. E, a rigor, desautoriza a vontade do legislador qualquer exegese que — a pretexto de reger o direito intertemporal — estabeleça no tempo, sob a égide da mesma Constituição, dois regimes diversos e sucessivos de incorporação de direitos humanos fundamentais constantes de convenções ou tratados internacionais (mesmo porque, nessa matéria, o regime de garantias é imutável, ut artigo 60, §4º, IV). Haveria que se reconhecer, no limite, a inconstitucionalidade do próprio artigo 5º, §3º, de que não se cogita e nem se cogitará.
2.4. A QUESTÃO DA HIERARQUIA DAS NORMAS INTERNACIONAIS (II): REGIME DE RECEPÇÃO POR DERIVAÇÃO VINCULADA A ATO DE LEGITIMAÇÃO POLÍTICA
Há, porém, um segundo modo de pensar a questão, reconhecendo relativa autonomia às normas dos §§ 2º e 3º da CRFB e permitindo, em tese, importações normativas diretas, sem o especial processo legislativo do parágrafo 3º. É o modo que perfilhamos, já que a boa regra de Hermenêutica sugere, desde os tempos da CARLOS MAXIMILIANO (e antes dele), que a lei — e tanto menos a Constituição — não tem palavras inúteis. Entretanto, nem mesmo por esse modo chega-se àquele resultado que o enunciado n. 17 da PSV n. 03 pretende condensar. Vejamos.
Por essa segunda visão, deve-se entender que existem hoje dois regimes possíveis de recepção das normas internacionais de direitos humanos (que, diga-se, não são sucessivos, mas concomitantes, antes ou depois do advento da E.C. n. 45/2004 e do novel parágrafo 3º, considerando-se a sua função meramente explicativa). Ambos têm expressa ancoragem constitucional.
O primeiro regime dá-se por derivação principiológica imediata, lastreado na norma do artigo 5º, §2º. Por ele, princípios imanentes a tratados ou convenções internacionais são imediatamente incorporados ao rol de direitos e garantias individuais, tornando-se desde logo cognoscíveis e sindicáveis judicialmente. Insista-se, porém, que — pela própria letra constitucional ("[…] não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte") —, tal regime de recepção só serve aos princípios (i.e., às normas dotadas de conteúdo imediatamente axiológico, máxima abstração e caráter normogenético); não serve às regras que, mediante comandos mais concretos, densificam aqueles princípios.
O segundo regime dá-se por derivação vinculada a ato de legitimação congressual (com quórum de emenda constitucional), lastreado, hoje, na norma do artigo 5º, §3º. Nesse caso, o texto normativo internacional incorpora-se por inteiro, em nível constitucional, mas não antes do devido processo legislativo, que equivale aos das emendas (aprovação, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros).
Assim admitido (como admitimos), a pergunta subsequente é por si evidente. No caso do Pacto de San José da Costa Rica (O.E.A., 22.11.1969; Decreto n. 678/92), qual é — ou foi — o regime de recepção? O seu texto — e muito particularmente a norma do seu artigo 7º, n. 7 — ingressa ou pode ingressar à ordem jurídica constitucional por derivação principiológica ou vinculada? E a resposta, em nossa opinião, não pode ser outra: por derivação vinculada. Duas razões essenciais nos justificam.
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1. A garantia subjacente ao debate é a própria liberdade de ir e vir (cujo preceito encerra, ao mesmo tempo, norma-princípio e norma-regra, ante o "Doppelcharakter" de R. ALEXY [12]), que, mercê da sua própria natureza, admite limitações e concreções por obra do legislador ordinário (que, diga-se, não estão circunscritas à hipótese de sentenças penais condenatórias transitadas em julgado; vejam-se, p.ex., as hipóteses de prisões cautelares processuais penais [13] e de prisões administrativas [14]). O mesmo há de valer, por lógica e imitação, para o anunciado princípio da «não-detenção por dívidas», vazado no artigo 7º, 7, do Pacto de San José. E as exceções a ambos os princípios — sendo esse último uma especialização daquele primeiro — são inscritas no sistema por normas-regra, já não por (contra-)princípios. Logo, as hipóteses de admissibilidade de prisão civil "lato sensu" — que são as exceções ao princípio da não-detenção por dívidas — perfazem normas-regra (com menor grau de abstração e sem potencial normogenético), não normas-princípios. Ora, somente essas — as normas-princípios —admitem recepção constitucional direta, independentemente de ato de legitimação política no plano interno, nos termos do artigo 5º, §2º, da CRFB (supra); consequentemente, aquelas — as normas-regras (como são as que excetuam o princípio da não-detenção por dívidas na ordem constitucional, concretizando as hipóteses excepcionais de admissibilidade de prisão civil) somente podem ser introduzidas no estamento constitucional pela via legislativa estrita, i.e., pelo procedimento do artigo 5º, §3º, da CRFB.
2. O próprio Poder Constituinte originário ressalvou a possibilidade de prisão do depositário infiel, juntamente à do alimentante inadimplente, com a promulgação da Carta em 05.10.1988. Logo, há manifesta incompatibilidade entre normas internacionais que a proíbam e o regime constitucional democraticamente instituído, de modo que, no plano político, somente um ato congressual re-legitimador teria idoneidade bastante para subverter a vontade constituinte originária. Para tais casos, o regime de recepção há de ser necessariamente o do artigo 5º, §3º, CF (= votação qualificada).
Por conseguinte, somente com a aprovação do Pacto de San José por cada uma das casas do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, poder-se-ia obter o alardeado «esvaziamento» da norma do artigo 5º, XXLVI, "in fine", da CF. Caberia, assim, ao próprio Poder Legislativo — e não ao Poder Judiciário ("venia concessa" da tese de «mutação informal da Constituição» [15]) — reescrutinar a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, para então (re)aprová-la mediante decreto legislativo com força de emenda constitucional (artigo 5º, §3º). Até lá, o único controle constitucional possível das prisões civis legalmente postas com fundamento no permissivo do artigo 5º, XXLVI ("in fine") dar-se-á, necessariamente, pela via da proporcionalidade (i.e., por juízos concretos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito [16], que não se emitem "in abstracto" — como encaminha o enunciado n. 17 da PSV n. 03 —, mas sempre para cada caso concreto). É, aliás, o que sinaliza o voto do Min. AYRES BRITTO (supra), que esgrime diretamente com o princípio da proporcionalidade para assim afastar — com toda razão — a possibilidade de prisão civil de devedor-fiduciante.
Nessa ordem de ideias, não tendo sido incorporado ao sistema constitucional pela via do artigo 5º, §3º, da CRFB, o Pacto de San José — ou, ao menos, a norma de seu artigo 7º, 7 (que potencialmente revogaria parte do texto do artigo 5º, XXLVI, da CRFB) —, resta reconhecer, quando muito, a sua supralegalidade, mas sempre "abaixo da Constituição", como encareceu o mesmo AYRES BRITTO (RE n. 349.703). E, nesse caso, a regra do artigo 5º, XXLVI, "in fine", da CRFB jamais poderia ser tisnada, em abstrato, por aquela convenção.
É, a propósito, o que recentemente declarou, com todas as letras, o renomado constitucionalista INGO WOLFGANG SARLET [17], ao sustentar que, nesse particular, as decisões do STF são contraditórias. Como visto, a própria ementa do RE n. 349.703 (Min. AYRES BRITTO), como também a ementa do HC n. 87.585 (Min. MARCO AURÉLIO) ou o voto do Min. GILMAR MENDES do RE n. 466.343, esclarecem que os tratados e convenções internacionais de direitos humanos — considerando-se, aqui, os que não estão aprovados nos termos do artigo 5º, §3º, CF — situam-se abaixo da Constituição, embora acima da legislação interna. E, sabe-se bem, é a própria Constituição que ressalva a prisão civil do depositário infiel. Se a sua hierarquia é supralegal, mas infraconstitucional, então não poderia haver qualquer «esvaziamento» da norma constitucional; e tanto menos uma condição de ineficácia pela derrogação das normas infraconstitucionais anteriores (HC n. 87.585), considerando-se a autonomia de ritos decretada pela Lei n. 11.382/2006 (artigo 666, §3º, do CPC) e a posteridade do Novo Código Civil (artigo 652).
Já no campo jurisprudencial, em sentido muito similar, importa referir, entre tantas, a paradigmática ementa do Des. FREITE PIMENTA, do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, lavrada nos seguintes termos:
"Não se afigura ilegal ou abusiva a ordem judicial restritiva da liberdade, fundada na condição de depositário infiel dos bens penhorados, quando constatado que o paciente deixou de atender à determinação judicial de que fosse colocado à disposição do Juízo da execução o bem penhorado que estava sob sua guarda. Os tratados e convenções internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, [...] ainda que lhes seja atribuída a estatura de norma supralegal (ou seja, com status superior ao de toda a legislação infraconstitucional interna), não tem força para revogar as normas expressas da própria Constituição de 1988, instituída por uma Assembleia Nacional Constituinte. Sendo certo, por outro lado, que aquele Pacto não foi aprovado, em 1992, com o procedimento legislativo e o quórum qualificado previsto para a aprovação das emendas constitucionais no §3º do mesmo preceito constitucional, introduzido pela EC n. 45/2004, não tendo, pois estatura a estas equivalente. [...] Tal conclusão se torna ainda mais necessária nos casos em que o débito injustificadamente adimplido, embora de origem trabalhista, constitui obrigação de natureza alimentícia (enquadrando-se, pois, na primeira exceção do preceito constitucional em discussão e na única exceção admitida pelo próprio Pacto de San José da Costa Rica) e teve a garantia de sua satisfação em Juízo destruída pela conduta ilícita do depositário infiel de bem regularmente penhorado em processo trabalhista. Tratando-se de confronto entre princípios e garantias constitucionais, é necessário encontrar-se um resultado interpretativo que, na prática e em cada caso, não esvazie por completo o princípio da efetividade da tutela jurisdicional, de estatura igualmente constitucional"
(TRT-3ª Reg., HC n. 0480-2009-0, rel. Des. JOSÉ ROBERTO FREIRE PIMENTA, j. 05.05.2009 — g.n.).
Como se vê, em precisa e oportuna reflexão, FREIRE PIMENTA traz à consideração todos os valores constitucionais imbricados com a questão — "ius libertatis" (artigo 5º, caput, CRFB), dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CRFB), soberania nacional (artigo 1º, I, CRFB), efetividade da jurisdição (artigo 5º, LIV, CRFB), caráter alimentar dos salários e afins (artigo 100, §1º-A, CRFB) — para, em juízo concreto de proporcionalidade (como deve ser, até que o Congresso Nacional reescrutine o Pacto de San José nos termos do artigo 5º, §3º, CRFB), compreender que, na hipótese de depositários judiciais infiéis que têm condições de apresentar o bem constrito ou de substituí-lo pelo importe equivalente, a natureza alimentar do crédito exequendo (como ocorre, de regra, na execução trabalhista — o que inclusive a aproxima, "per analogiam", do próprio permissivo do artigo 7º, 7, do Pacto), associada à necessidade de se conferir efetividade à execução trabalhista (exatamente por aquele recorrente caráter alimentar), justificam a inflexão do princípio da não-detenção por dívidas, no marco do permissivo constitucional (artigo 5º, XXLVI, "in fine"). O que permite afirmar que, no processo do trabalho, mercê do tipo de crédito a satisfazer (artigo 100, §1º-A, CRFB) e da usual hipossuficiência econômica dos credores, a manutenção da possibilidade de prisão do depositário judicial infiel — quando possível a devolução da coisa ou a sua substituição pecuniária — é medida de inteiro rigor e justiça, em estrito juízo concreto de proporcionalidade (= "Grundsatz der Verhältnismäßigkeit").
2.5. A QUESTÃO DA NATUREZA JURÍDICA DA PRISÃO DO DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL ECONOMICAMENTE CAPAZ: "CONTEMPT OF COURT"
Já no plano jurídico-semântico, deve-se ter em conta que, no caso do depositário judicial (i.e., daquele que consensualmente aceita a coisa em depósito, no curso de processo judicial e na forma do artigo 665, IV, do CPC), a infidelidade não consubstancia apenas inadimplência creditícia. Consubstancia também — e sobretudo — ato atentatório à autoridade do juiz e à dignidade do Poder Judiciário (desafiando, a par da própria prisão, a sanção processual do artigo 601 do CPC — multa não superior a 20% do débito atualizado em execução —, estabelecida "sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material"). A isso corresponde, no direito anglo-saxônico, a figura do "contempt of court".
Com efeito, a prisão do depositário infiel, tal como prevista no artigo 5º, LXVII, "in fine", não é, no caso de depósitos judiciais assumidos consensualmente por sujeito economicamente capaz, uma mera prisão civil por dívidas. Tutela também a autoridade do magistrado e a dignidade do Poder Judiciário, que dizem com o próprio princípio da segurança jurídica (artigo 5º, caput, CRFB). Afinal, não é à toa que a autoridade dos julgados é um dos princípios sensíveis da Carta Constitucional de 1988 e de todo e qualquer Estado de Direito (a ponto de autorizar, entre nós, a intervenção federal e estadual, nos termos dos artigos 34, VI, e 35, IV, da CRFB).
Daí ser possível, razoável e necessário entrever, na prisão civil do depositário judicial infiel economicamente capaz, hipótese assemelhada à prisão por "contempt of court", assim admitida, com grande liberalidade, na pátria-mãe das democracias republicanas (i.e., nos Estados Unidos da América) e em outros muitos Estados Democráticos de Direito — que, sobre serem democráticos (e antes mesmo disso), são também de Direito.
O que nos obriga a um breve olhar sobre o instituto do "contempt", para melhor entendimento [18].
A sua origem histórica radica no Direito Romano (em especial durante a fase da "cognitio extraordinaria"); e, por meio dele, no direito inglês medieval. Na Inglaterra do século XIII, seguindo-se de perto o modelo romano das "legis actiones", criava-se um writ para cada espécie de violação de direitos dos súditos (para se chegar, somente em 1679, ao "Habeas Corpus Amendment Act"). Entretanto, quando não havia um writ para determinado caso, não restava ao súdito senão reclamar a clemência do rei, fazendo-o perante a Chancery (que, segundo LIMA GUERRA, atuavam como "cortes de consciência" [19]). Provia-se ali a tutela específica das obrigações, a ponto de se conduzir o réu à prisão caso se recusasse a cumprir o que lhe determinava a decisão do chancellor (estando, nesse caso, "in contempt of court", dizendo-se dele "a contemnor" [20]); e ali permaneceria, sob a autoridade do rei, até que resolvesse obedecer ao quanto determinado. Pode-se bem dizer que essas ações afirmativas desempenharam um papel relevante — senão vital — na construção, entre os ingleses, da ideia de um "poder" judiciário (que, no futuro — Act of Settlement, 1701 —, chegaria a amealhar garantias de independência em face da própria Coroa).
Em Portugal — e, por extensão, no Brasil —, as Ordenações Filipinas já previam, entre nós, instituto com efeitos semelhantes (Livro V, Título 128). Eram as «cartas de segurança», que traziam consigo o germe da nossa jurisdição mandamental: se desobedecidas pelo destinatário, poderiam sujeitá-lo à prisão. Mas o legislador republicano abdicou dessa tradição, sobretudo por influência do direito francês. O que não significa, por outro lado, que a prisão por "contempt of court" seja estranha ao nosso sistema: não é, nem histórica, nem positivamente, como se dirá.
Antes, porém, interessa afinal conceituar o instituto. Seguindo CRUZ E TUCCI [21], que se reporta a HOZARD e M. TARUFFO,
"a expressão contempt of court designa em termos gerais a recusa em acatar a ordem emitida por uma corte de justiça. Como consequência desse comportamento, o destinatário da ordem pode sofrer uma sanção pecuniária ou restritiva de liberdade, dependendo da gravidade do contempt, sempre com o intuito de constranger a parte a cumprir a determinação judicial […]".
É sanção processual que, diga-se, não se limita às partes. O próprio CRUZ E TUCCI, adiante, esclarece que a responsabilização pelo "contempt of court" pode recair sobre o litigante "ou outro integrante do processo", razão pela qual se exige "uma ordem que imponha especificamente a quem é dirigida uma obrigação de fazer ou de abster-se de fazer" [22].
No que toca à tipologia, a doutrina norte-americana conhece duas modalidades de "contempt of court", a saber, o "civil contempt of court" (que é praticada por litigante ou terceiro em detrimento de uma das partes no processo) e o "criminal contempt of court" (bem mais grave, é praticada por litigante ou terceiro em detrimento da própria autoridade judiciária). Distingue-se ainda entre o "contempt of court" direto (praticado na presença da autoridade, durante os procedimentos judiciais) e o "contempt of court" indireto (a que corresponde o descumprimento de ordens judiciais fora das dependências da própria corte e/ou sem a presença da autoridade judiciária) [23].
E no Brasil hodierno, à luz da legislação em vigor e da própria Constituição de 1988? Admite-se a figura da prisão por "contempt of court"?
Não temos dúvidas de que sim (embora de modo extremamente casuístico). Vejamos.
Do ponto de vista principiológico, há uma indiscutível compatibilidade do instituto com princípios estruturantes — notadamente o princípio do Estado de Direito [24] (como visto) — e também com princípios instrumentais — notadamente o princípio da cooperação processual [25] (de que é corolário o dever de lealdade) e do acesso à justiça [26] (em sentido material).
"De lege lata", temos já a positivação geral do instituto, em versão abrandada, tanto no artigo 600 do CPC (atos atentatórios à dignidade da Justiça) — notadamente em seu inciso III (resistência injustificada às ordens judiciais) —, com as sanções do artigo 601 (que, insista-se, ressalva as "outras sanções de natureza processual ou material") [27], como também, mais recentemente (Lei n. 10.358/2001), no artigo 14, parágrafo único, do mesmo diploma, que sanciona precisamente os vários modos de se frustrar o dever de cooperação processual (por partes ou terceiros, nos termos dos artigos 340 e 341 do CPC).
E, não bastasse, em casos específicos, houve mesmo a previsão legal de restrições de liberdade em detrimento de quantos desafiem a autoridade do juiz ou, em casos específicos, as suas obrigações legais diretas (sem que jamais se tenha arguido seriamente qualquer inconstitucionalidade a tal respeito). São (ou foram), sem dúvida, hipóteses especiais de prisão por "contempt of court" que a Constituição da República de 1988 recepcionou. Vejamo-las:
(a) a prisão civil de emitente, sacado ou aceitante que se recusar a restituir título requisitado judicialmente, desde que haja prova da efetiva entrega do título e da recusa de devolução (artigos 885 [28] e 886 do CPC);
(b) a prisão civil por resistência à ordem de constrição vazada em mandado, prevista no artigo 662 do CPC [29];
(c) a prisão civil (ou "administrativa" [30]) do falido ou do síndico resistente ao cumprimento de ordens judiciais (artigos 35, 37, 60, § 1º e 69, § 5º, todos do DL 7.661/45, em vigor até dezembro de 2004, mas abolidos com a Lei 11.101/2005, que manteve apenas a hipótese do artigo 99, VII [31]).
Nada obsta, portanto, que se reconheça, para o processo judicial em geral — e, muito particularmente, para o processo do trabalho (dada a recorrente natureza alimentar dos créditos exequendos) —, a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário judicial infiel economicamente capaz, ex vi do artigo 5º, LXVII, CF e do artigo 666, §3º, do CPC, pelo qual "a prisão de depositário judicial infiel será decretada no próprio processo, independentemente de ação de depósito". Houve, aqui, uma opção legislativa inconteste, ulterior à ratificação do Pacto de San José, não circunscrita à hipótese de «prisão por dívida» (porque a natureza jurídica é bifronte, açambarcando a defesa da autoridade pública e da dignidade do Poder Judiciário) e, alfim, coerente — formal e substancialmente — com o permissivo constitucional em vigor. Logo, uma opção inexorável, mercê do próprio artigo 2º da CRFB ("poderes independentes e harmônicos entre si").