1. Considerações preliminares
Os artigos 607 e 608 da CLT prelecionam o seguinte:
Art. 607. São consideradas como documento essencial ao comparecimento às concorrências públicas ou administrativas e para o fornecimento às repartições paraestatais ou autárquicas a prova da quitação da respectiva contribuição sindical e a de recolhimento da contribuição sindical, descontada dos respectivos empregados.
Art. 608. As repartições federais, estaduais ou municipais não concederão registro ou licença para funcionamento ou renovação de atividades aos estabelecimentos de empregadores e aos escritórios ou congêneres dos agentes ou trabalhadores autônomos e profissionais liberais, nem concederão alvarás de licença ou localização, sem que sejam exibidas as provas de quitação da contribuição sindical, na forma do artigo anterior.
Parágrafo único. A não-observância do disposto neste artigo acarretará, de pleno direito, a nulidade dos atos nele referidos, bem como dos mencionados no Art. 607.
Pelo que podemos depreender ao se perlustrar os termos dos dispositivos acima transcritos, fica patente que a CLT impõe como conditio sine qua non para a emissão de alvarás e licenças por parte dos órgãos ou entidades (da Administração Pública federal, estadual e municipal) a necessária apresentação, por parte dos particulares requerentes, da quitação da contribuição sindical prevista no art. 607 da norma juslaboral.
Assim, a teor do que dispõe a CLT, caso um particular requeira junto ao Poder Público a autorização necessária para que ele possa desenvolver uma atividade que careça de licença ou alvará, o órgão ou entidade responsável por avaliar tal pedido do administrado (para isso verificando se ele atende ou não os requisitos para obter a autorização, que por sua vez é instrumentalizada pela licença ou alvará) só o concederá caso haja a comprovação da quitação da contribuição sindical.
Já que o artigo 608 da CLT repercute sobre as licenças e alvarás concedidos pela Administração Pública quer seja ela federal, estadual ou municipal, cumpre verificar, antes mesmo de tecermos maiores considerações acerca da aplicabilidade do dispositivo, qual é a natureza de tais autorizações emitidas pelo Poder Público.
As autorizações emitidas pelo Estado para que seus administrados exerçam determinadas atividades são decorrentes do Poder de Polícia que é conferido ao Poder Público fiscalizador.
O Poder de Polícia, por sua vez, é assim definido:
"é a atividade da Administração que impõe limites ao exercício de direitos e liberdades." (Odete Medauar in Direito Administrativo Moderno, 11ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pág. 331)
"De um modo geral, polícia é o termo genérico com que se designa a força organizada que protege a sociedade livrando-a de tida ‘vis inquietativa’.
Cumpre acentuar que não se trata de ‘concepção puramente especulativa, criação do puro domínio da lógica’, mas sim de real ‘atividade do Estado, instituto positivo da Administração’, com maior ou menor amplitude conforme as normas legais em vigor no país que se considere’.
(... omissis ...)
O poder de polícia, ensina Laubadére, define-se pelo fim que tem em mira e que é o de assegurar a tranqüilidade (ausência de risco de desordem), a segurança (ausência de riscos de acidentes) ou a salubridade pública (ausências riscos de moléstias).
(... omissis ...)
Matos de Vasconcelos entende como poder de polícia a faculdade ou poder jurídico de que se serve a Administração para limitar coercitivamente o exercício da atividade individual, em prol do benefício coletivo assecuratório da estabilidade social.
(... omissis ...)
O poder de polícia informa todo o sistema de proteção que funciona, em nossos dias, nos Estados de direito. Devendo satisfazer a tríplice objetivo, qual seja, o de assegurar a tranqüilidade, a segurança e a salubridade públicas, caracteriza-se pela competência para impor medidas que visem a tal desideratum, podendo ser entendido como a faculdade discricionária da Administração de limitar, dentro da lei, as liberdades individuais em prol do interesse coletivo."
(José Cretella Júnior in Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 2006, págs. 405, 421, 422 e 423)
"Em síntese, o poder de polícia é exercido pelo Estado enquanto legislador, pois apenas por lei se pode limitar e condicionar liberdades e direitos, enquanto que a função de polícia, como aplicação da lei, é exercida pelo Estado como administrador.
Com este esclarecimento sobre o que se deve entender pela difundida expressão, poder de polícia, chega-se a um conceito didático que põe em evidência a característica da instrumentalidade acima sublinhada: denomina-se polícia à função administrativa que tem por objeto aplicar concreta, direta e imediatamente as limitações e os condicionamentos legais ao exercício de direitos fundamentais, compatibilizando-os com interesses públicos, também legalmente definidos, com a finalidade de possibilitar uma convivência ordeira e valiosa." (Diogo de Figueiredo Moreira Neto in Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2003, pág. 386)
Decorrência do Poder de Polícia, a licença (bem como o alvará, vez que este se trata, na prática, de um sinônimo daquela) concedida pela Administração Pública é definida como:
"... ato administrativo vinculado pelo qual o poder público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, possibilita-lhe a realização de atividades ou de fatos materiais, vedados sem tal apreciação. A licença supõe apreciação do poder público no tocante ao exercício de direito que o ordenamento reconhece ao interessado; por isso não pode ser negada quando o requerente atende a todos os requisitos legais para sua obtenção. Uma vez expedida, traz o pressuposto da definitividade, embora possa estar sujeita a prazo de validade e possa ser anulada ante ilegalidade superveniente. A licença se desfaz, ainda, por cassação, quando o particular descumprir requisitos para o exercício da atividade, e por revogação, se advier motivo de interesse público que exija a não realização da atividade licenciada, cabendo, neste caso, indenização ao particular. A licença se exterioriza em documento denominada ‘alvará’." (Odete Medauar in Direito Administrativo Moderno, 11ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pág. 337)
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para lecionar sobre licença atrela a sua origem a um "consentimento de polícia" dado pela Administração Pública:
"O consentimento de polícia, em decorrência, é o ato administrativo de anuência que possibilita a utilização da propriedade particular ou o exercício da atividade privada, nas hipóteses em que o legislador tenha exigido um controle prévio, por parte da Administração, da compatibilização do uso do bem ou do exercício da atividade com o interesse público.
SE, no desempenho desse prévio controle de compatibilização hipotética, a seu cargo, a Administração verificar que foram efetivamente atendidas as condições jurídicas e fáticas previstas para o exercício inocente de liberdade, de direito ou a utilização de bens privados, expedirá então, e desde que provocada pelo interessado, o seu ato de anuência, formalmente denominado alvará.
Esse ato de consentimento, que é, formalmente, um alvará, poderá conter, materialmente, uma licença ou uma autorização, conforme o caso." (Diogo de Figueiredo Moreira Neto in Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2003, pág. 391)
Mais uma vez nos debruçando sobre o artigo 608 da CLT, devemos de logo verificar que o mesmo, estando como está contido no texto da Consolidação das Leis Trabalhistas, não é, apesar de se referir a um tributo (que no caso é a contribuição sindical), não é uma norma tributária.
Arriscamos inclusive a afirmar que o artigo 608 da CLT é uma norma mais afeita ao direito administrativo que ao direito do trabalho, conforme expomos abaixo.
O artigo 608 da CLT só disciplina sobre a exigibilidade (por parte dos órgãos licenciadores) de requerer dos administrados que a eles se dirigirem em busca de licenças ou alvarás a apresentação da comprovação de pagamento de contribuição social, em razão de esta contribuição ser fonte de financiamento dos sindicatos.
Como o sindicalismo encontra regulação na Consolidação das Leis Trabalhistas, justifica-se aí a tutela juslaboral sobre o tema. Contudo, inegável é a constatação de que, na prática, o artigo 608 da CLT funciona como norma de direito administrativo, vez que impõe a integrantes da Administração Pública uma exigência (a de só emitir licenças e/ou alvarás para aqueles que comprovarem o pagamento da contribuição sindical) que irá interferir na sua relação com os administrados.
Deve ser dito também que, no caso específico da vigilância sanitária, o artigo 608 da CLT não é considerado uma norma de "proteção à saúde" (usando aqui a terminologia adotada pelo inciso XXIX do artigo 10 da Lei Federal n° 6.437/77).
Tal distinção é importante no sentido de que: Se fosse o artigo 608 da CLT um dispositivo legal oriundo da competência legislativa prevista no inciso XII do artigo 24 na Constituição Federal de 1988 para a defesa da saúde (mesmo que por óbvia recepção ver que tal artigo da CLT é posterior à Magna Carta vigente) seria ele uma norma de obediência obrigatória por parte das vigilâncias sanitárias dos estados e municípios (como o é, por exemplo, o que é disposto sobre licenciamento na Lei Federal n° 5.991/73 e na Lei Federal n° 6.360/76), vez que a Norma Ápice prevê sobre o tema a adoção da chamada competência legislativa concorrente.
Sendo o artigo 608 da CLT uma norma de direito administrativo produzida pela União, é questionável a sua aplicação pelas vigilâncias sanitárias de estados e municípios. É questionar tal aplicação o que passamos a fazer seguir.
2. Da inaplicabilidade dos artigos 607 e 608 às Vigilâncias Sanitárias de Estados e Municípios em razão do princípio federativo insculpido na CF/88
A "Carta de outubro" traz, no caput do seu artigo 18, a seguinte lição:
Art. 18 - A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
Sob o pálio da Norma Maior é lícito afirmar que União, Estados e Municípios (dentro dos limites previstos na própria Constituição) legislam sobre suas próprias normas de direito administrativo. Sendo, portanto um elemento basilar da própria Federação Brasileira a autonomia administrativa, ou seja, a prerrogativa de os entes que a compõem editarem suas próprias leis de regência. Tal autonomia, nos termos da Lex Mater, é conferida a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.
O princípio federativo impede que os entes da Federação Brasileira (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) interfiram na competência que é deferida a cada um deles pela Constituição Federal.
E como a própria Constituição Federal confere através do seu artigo 18 a capacidade de seus entes legislarem sobre suas próprias administrações devemos analisar o artigo 608 da CLT (como norma dirigida à Administração Pública que é) à luz do princípio federativo.
Sobre o respeito que os integrantes da Federação Brasileira devem prestar ao princípio federativo, veja-se a lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto reproduzida por Marcos Juruena Villela Souto:
(Marcos Juruena Villela Souto in Direito Administrativo Contratual, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004 pág. 03)"É o princípio federativo que informa que qualquer condicionamento imposto à sua auto-administração das entidades federadas, por se tratar de uma exceção à disposição, por parte de cada unidade, de seus respectivos atos, pessoas, bens e serviços, só se deve dar no limite do explicitamente previsto na Constituição e nos termos de sua dicção, inadmitindo-se quaisquer extensões interpretativas que ampliem a interferência de normas centralizadoras nacionais sobre as competências locais."
Ainda sobre princípio federativo, eis as lições de Marçal Justen Filho:
"Um dos princípios constitucionais mais relevantes é o da Federação, e adotar estrutura federativa acarreta decorrência inafastável. Assegura-se a cada ente federal uma margem de autonomia mínima. Não haverá federação real e efetiva quando um ente for dotado de competência para interferir sobre os serviços e os interesses pertinentes a outro ente. Bem por isso, ser o Brasil uma Federação significa que a União pode dispor acerca da estrutura organizacional interna e dos assuntos de peculiar interesse de Estados, Distrito Federal e Municípios."
Posto isso, não pode o artigo 608 da CLT ser aplicado às vigilâncias sanitárias de estados e municípios, vez que ele se trata de uma norma federal que versa sobre uma imposição à Administração Pública e que, portanto, não pode interferir nas competências que estados e municípios gozam para editar suas próprias normas sobre direito administrativo.
Por fim, não se pode sequer falar que o artigo 608 da CLT, ao invés de ser uma norma de alcance restrito à Administração Pública Federal, seja uma norma geral, vez que esta guarda conceito que não comporta o referido dispositivo:
"Normas gerais, segundo o jurista Diogo de Figueiredo Moreira Neto, são aquelas que se situam numa posição intermediária entre um extremo de abstração da ordem jurídica positiva, que são os princípios, e o outro extremo, onde estão os atos jurídicos (legislativo, administrativo e judiciário); têm como características serem de cunho nacional, traçadoras de diretrizes, e serem informativas, dando o conteúdo indispensável do ato que vai concretizá-las.
Alice Gonzales Borges leciona que as normas gerais hão de ser as que instrumentalizam princípios constitucionais, quanto a aspectos cuja regulamentação seja essencial à atuação integral do preceito que as fundamenta; deverão ser regras que assegurem sua aplicação uniforme, na disciplina de situações homogêneas, apenas no quantum satis necessário à plena realização da norma fundamental."
O artigo 608 da CLT, não nos parece ter estas características acima delineadas, em especial as de ser uma norma informativa e de instrumentalizar algum princípio constitucional.
Ultimando o presente estudo, não poderíamos deixar de mencionar um caso análogo analisado pelo Supremo Tribunal Federal (acerca do art. 17, I, b, e II, b, da Lei Federal n° 8.666/93 ser ou não uma norma geral) retirado do livro "Curso de Licitações e Contratos Administrativos" de Lucas Rocha Furtado:
"O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 927/RS, concedeu liminar a fim de que a expressão ‘permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo’, contida no art. 17, I, b e II, b, não seja aplicável a Estados e Municípios. Entendeu o STF que a União, neste caso, não legislou sobre normas gerais, invadindo, em conseqüência, a competência daquelas unidades para legislar para si próprias em matéria de licitações, no que concerne a normas especiais. De qualquer forma, o mesmo dispositivo foi considerado constitucional na análise procedida pelo STF apenas em relação à própria Administração Pública federal. Trata-se de hipótese de declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, haja vista o referido texto legal somente ser considerado inconstitucional em relação a Estados e Municípios, não o sendo em relação à União. Essa circunstância decorre do fato de esta última, a União, possuir competência para estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos administrativos para todas as esferas de governo, podendo ela legislar sobre normas especiais apenas para si própria."
3. Conclusão
Em face do acima exposto, cremos ser inaplicável às vigilâncias sanitárias de estados e municípios, em face do princípio federativo, o artigo 608 da CLT que exige, para a emissão de licenças e alvarás, a comprovação (pelos administrados) da quitação da contribuição social prevista no artigo 607 daquele diploma.