4 Procedimentos discursivos para o entendimento racional
Uma possível resposta a essa questão da legitimidade das decisões jurídicas foi dada por Habermas, através da institucionalização jurídica de um procedimento discursivo de formação livre da vontade, cujo resultado deve ser um consenso entre todos os possíveis afetados pela decisão, baseado apenas na força do melhor argumento (Habermas, 1988, 1992 e 2003). Uma conclusão que se pode chegar a partir da proposta de Habermas é que os processos judiciais, nas condições contemporâneas, não satisfazem as condições ideais da sua teoria discursiva do direito. E as reformas processuais atualmente em discussão no Brasil estão mais preocupadas com a velocidade – palavra-chave: efetividade – do que com a legitimidade da decisão.
Além disso, se essa diferença entre a perspectiva de quem decide e a de quem é afetado pela decisão tem validade empírica, então isso significa sérios problemas para uma expectativa de consenso ou de negociação entre decisores e afetados (Simioni, 2007). Se os decisores adotarem a perspectiva dos afetados, já não são mais decisores. E se os afetados adotarem a perspectiva dos decisores, já não são mais afetados. Uma atitude performativa recíproca entre esses dois pólos tão-somente deslocaria o conflito e as imagens da repercussão geral (o risco de efeitos colaterais é ao mesmo tempo um perigo para todos os demais possíveis afetados pela decisão) para novas configurações.
Outra categoria muito forte de razões é aquela que recomenda referências à moral como limite da argumentação jurídica. Encontramos essa referência nas teorias de Robert Alexy (1998 e 2002), Klaus Günther (2004), Ronald Dworkin (2002 e 2001) e o Habermas das Tunner Lectures (Habermas, s/d) – que posteriormente abandonou essa proposição ao ver que a moral não pode ser um critério de correção normativa acima do direito criado legitimamente (Habermas, 2003, p. 138). Essas teorias entendem que, no limite da argumentação jurídica, deve-se recorrer a argumentos morais: para Alexy e Günther, dentro das regras dos discursos práticos; e para Dworkin, argumentos de princípio na práxis empírica dos tribunais, do qual se aproxima também, de certo modo, Neil MacCormick (2006).
A moral funciona aqui como um suplemento de segunda ordem porque é exatamente quando não há mais justificações jurídicas suficientes à decisão que se deve recorrer a princípios morais. E logo se pode observar que a própria discussão moral também vai levantar novas necessidades de justificação – novos suplementos –, especialmente em face dos problemas do multiculturalismo da sociedade global.
5 Considerações finais
Independente da teoria adotada ou do suplemento recomendado para uma boa argumentação jurídica na decisão, na prática, uma boa argumentação é aquela que se orienta pela razão, evitando ao mesmo tempo os erros. Por isso, a negação do erro, por si só, já constitui uma boa razão para bons argumentos. O problema é que o juízo de correção ou erro dos argumentos segue, na prática das decisões jurídicas, critérios de racionalidade. Para controlar os erros, aplica-se a lógica. E para controlar a razão, aplica-se a razão mesma. E aqui está o paradoxo da argumentação jurídica: não há uma razão superior ou mais fundamental a partir da qual alguém poderia julgar se o argumento é racional ou não (Luhmann, 1995 e 2005, p. 407).
Diante desse paradoxo, as teorias da argumentação introduzem distinções para torná-lo inofensivo. Distinguindo as boas das fracas razões, as teorias da argumentação criam os critérios para essa distinção. Mas o paradoxo da argumentação continua operando, pois os próprios critérios de distinção do que pode ser considerado um bom argumento e do que pode ser considerado argumentos fracos precisam ser fundamentados, quer dizer, precisam de argumentação, precisam de sempre novos suplementos argumentativos.
6 Referências
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Notas
- Estamos utilizando uma forma de distinção que vem da sociologia de Parsons (1976 e 1968). Mas a aplicamos em consonância com a teoria da diferenciação de Luhmann (1998).
- Ver-se: Agamben (2004, p. 26): "Como era previsível, a ampliação dos poderes do executivo na esfera do legislativo prosseguiu depois do fim das hostilidades e é significativo que a emergência militar então desse lugar à emergência econômica por meio de uma assimilação implícita entre guerra e economia."
- Do mesmo modo acontece na economia, onde todos têm interesse no dinheiro porque todos têm interesse no dinheiro. Keynes demonstrou essa tautologia como um resultado da racionalidade nas decisões econômicas orientadas pela especulação financeira em situações de incerteza a respeito da "accumulation of wealth for an indefinitely postponed future" (Keynes, 1937, p. 214): "The psychology of a society of individuals each of whom is endeavoring to copy the others leads to what we may strictly term a conventional judgment". Mas Keynes torna essa tautologia inofensiva ao introduzir uma referência externa – um suplemento igualmente incerto na decisão –, à "psicologia" de uma sociedade de indivíduos onde cada um aspira imitar os outros.
- Para Merton (1968, p. 477): "The self-fulfilling prophecy is, in the beginning, a false definition of the situation evoking a new behaviour which makes the original false conception come ''true''. This specious validity of the self-fulfilling prophecy perpetuates a reign of error. For the prophet will cite the actual course of events as proof that he was right from the very beginning."
- Seguindo o referencial teórico escolhido para essa pesquisa, estamos utilizando a distinção entre riscos e perigos de Luhmann (1996, p. 31). Ver-se também: Rocha & Simioni (2008), p. 63-96.