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Nota sobre o Direito Medieval.

A concepção da lei em Marsílio de Pádua

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Agenda 13/09/2009 às 00:00

RESUMO: No contexto dos conflitos entre Império e Igreja na Idade Média, Marsílio de Pádua representou a mais radical oposição ao sistema teológico-político em vigor, formulando uma teoria laica do direito. Neste artigo estudamos a formação do conceito de lei no pensamento de Marsílio de Pádua, a partir da obra "O Defensor da Paz", situando-o historicamente no contexto dos conflitos entre o poder régio e papal; analisando as correntes que o determinaram, especialmente a teoria do direito natural aristotélico-tomista, o que servirá de base para a formulação da teoria do Estado secularizado ou soberania popular no pensador Paduano, que reflete no pensamento moderno.

Palavras-chave: 1. Marsílio de Pádua; 2. Lei Civil; 3. Aristóteles; 4. Tomás de Aquino

ABSTRACT: In the context of the conflicts among Empire and Church in the Medieval Age, Marsilius of Padua represented the most radical opposition to the theological-political system in vigor, formulating a secular theory of the power. In this article we studied the formation of the law concept in the Marsilius’ thought in his work The Defender of peace, placing it historically in the context of the conflicts among the royal and papal power; analyzing the currents that determined it, especially the theory of the natural right from Aristotle and Thomas Aquinas, that will serve as base for formulation of the secularized State or popular sovereignty theory in the modern thought.

Key-words: 1. Marsilius of Pádua; 2. Civil Law; 3. Aristotle; 4. Thomas Aquinas


Introdução

Ao estudarmos o conceito de lei em qualquer autor, devemos considerar que os modelos de instituição legal originam-se e extinguem-se, evoluindo na dinâmica da história. Eles refletem a maneira particular da manifestação do pensamento existente em cada sociedade, como um prisma mais ou menos distorcido em certos aspectos, conforme a orientação ideológica adotada pelos sujeitos responsáveis por constituir a norma legal. Esse aspecto dá ao estudo de tal tema tem uma importância histórica.

Na história do pensamento político, Marsílio foi um importante teórico do Estado laico no final da Idade Média. Ele propôs um sistema em que os poderes da Igreja e do Estado deveriam estar separados, submetendo a Autoridade espiritual ao Poder temporal. Este fato marcou uma época de transição para formação do Estado moderno, soberano, fundado no direito natural e na vontade do Príncipe, que, por sua vez, estaria submetido ao povo, que figuraria, mais tarde, como fonte de legitimação do poder na teoria do contratualismo moderno, tal como defendido principalmente por Jean-Jacques Rousseau.

Esse traço coloca Marsílio como personagem de fundamental importância para um estudo das origens tanto da teoria da soberania popular como dos fundamentos da teoria constitucional moderna que preconiza a Lei Maior como única fonte e base para o exercício do poder em sociedade.

Entre alguns estudiosos de Marsílio, é pacífica a idéia de que na sua teoria política o povo é tido como fonte de legitimação do poder do Governante (ou Imperador); há, porém, controvérsias em relação aos limites do poder de tal Governante. Isso decorre da idéia exposta pelo Paduano de que o Príncipe tem o poder de vetar certas decisões do Legislador humano (o povo).

Esse problema gerou, por um lado, teóricos que vêem Marsílio como representante do totalitarismo e, por outro, aqueles que o vêem como defensor da soberania popular (democracia). Na leitura que aqui realizamos, nos posicionamos ao lado desta última corrente, seguindo Sérgio Strefling, no sentido de que as teses do Paduano não admitem qualquer forma de totalitarismo.

É nessa esteira teórica que figurou como relevante essa análise sobre o modo como Marsílio entende o conceito de lei, o que implica uma compreensão de sua própria noção de Direito, para se chegar a uma melhor compreensão possível desse problema. Contudo, não propomos nenhuma solução definitiva, mas apenas fizemos limitados apontamentos com vistas a serem melhorados no futuro.

Foi preciso de início considerar que na exposição de sua teoria política, Marsílio realizou uma análise e reformulação do conceito de lei que recebeu da tradição filosófica e da teologia. Entre essas influências se constatou a relevância do pensamento de tendência aristotélico-tomista, que tem por base uma interpretação naturalista do conceito de lei.

A postura inovadora de Marsílio diante da tradicional afirmação da Igreja de que a fé e a Escritura devem guiar toda a sociedade, nos levou a indagar quais são os traços mais importantes da teoria do direito natural aristotélico-tomista para a análise feita por Marsílio; bem como indagar sobre a classificação das leis e quais os significados que ele dá à palavra lei, o que requer um estudo desse conceito, seu alcance e limites na obra do Paduano.


1 O contexto da obra de Marsílio

Em um primeiro momento, constatamos que a teoria da plenitude do poder (Plenitudo Potestatis) dos Papas na Igreja medieval compreende tanto o domínio do Papa sobre os demais sacerdotes, quanto sobre o Príncipe. Tal tendência se encontra já no século V, com o papa Leão I (440-461). Gelásio I (492-496) defendeu fortemente a primazia do sacerdote em uma carta muito conhecida como Carta Gelasiana, inspirado na idéia agostiniana da superioridade do espiritual sobre o temporal.

Na esteira do pensamento de Gelásio, encontra-se Gregório I (590-604), que colocou o poder real como um ministério entre tantos da Igreja, devendo o imperador ajudar na cristianização do mundo. Essa posição também será seguida pelo teólogo do século VII Isidoro de Sevilha, mas com o detalhe de que Isidoro coloca o Imperador acima do próprio papa, não, porém, como autoridade, mas apenas enquanto detentor do poder de cristianizar os povos. Prevalecia a idéia de que o poder vem do alto, ou diretamente de Deus ou através da Igreja.

No ano de 800, Carlos magno foi coroado pelo papa leão III, o qual o consagrou como Imperador do Ocidente, evidenciando com isso a afirmação da idéia de que "o imperador recebia tal poder, não diretamente de Deus, mas através da igreja", [01] que o recebera, esta sim, diretamente de Deus. Era então notável a importância de um documento (de autenticidade duvidosa) no qual Constantino doara o poder ao papa Silvestre (Donatio constantini). A idéia da plenitude do poder papal consolidava-se, fundada na concepção de que o espiritual é superior ao temporal.

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Nos fins do século X os imperadores germânicos Oto I, Oto II e Oto III esboçaram uma tendência de reação contra o imperialismo dos papas, tentando restaurar o império carolíngio. Na Inglaterra, afirmando a superioridade do imperador ante o papa, surgiam os folhetos de York, por ocasião da querela das investiduras entre Henrique I e o papa Anselmo, contendo a semente do que Marsílio de Pádua iria adiante desenvolver.

Mas tal esboço de reação durou pouco, sendo aplacada por "um dos mais famosos papas da igreja, Gregório VII (1073-85), que implementaria a famosa reforma gregoriana, que iria colocar em ordem as relações entre a Igreja e o poder secular" [02].

Alguns historiadores consideram esse pontífice o fundador da teocracia pontificial. No século XII, Hugo de São Vitor e Bernardo de Claraval reforçariam ainda mais a Plenitudo potestatis, alegando que a Igreja possui as duas espadas, a temporal e a espiritual. A essa altura a pretensão dos papas à plenitude do poder "não consiste em suprimir o poder temporal dos príncipes, mas em subordiná-lo diante da realeza do vigário terrestre de Cristo rei" [03].

Percebe-se que, desde o século V, a teoria curialista da plenitude do poder papal firmou-se gradativamente, sendo consolidada nas atitudes dos papas, que sucessivamente, colocavam os instrumentos do reino secular a serviço do reino de Deus, firmados na idéia de que tudo deve estar voltado para o fim eterno do homem, a salvação. Entendendo-se deste modo que se estava também a usar os instrumentos do reino de Deus a serviço do reino secular. Essa concepção de sociedade fora legada por Santo Agostinho, na medida em que transmitiu, nas palavras de Etienne Gilson, "a idéia de uma sociedade de essência sobrenatural, composta por todos os que um dia desfrutarão da vista de Deus e que já se dirigem a esse fim, a luz da fé e sob a conduta da Igreja" [04].

Com a chegada dos séculos XIII e XIV, dois eventos influenciaram no rumo da controvérsia, motivando a produção de diversos argumentos contra a plenitude do poder dos Papas: (1) o debate entre Felipe IV da França e o papa Bonifácio VIII sobre uma propriedade no território francês; (2) o confronto entre Ludovico IV e o papa João XXII (que foi o motor para a produção de O Defensor da paz de Marsílio, em 1324).

Notamos que a filosofia agostiniana, até então predominante, dava lugar ao predomínio do aristotelismo-tomista que, por um lado, confirmava a plenitude de poder dos Papas, mas "influenciaria também as teorias anti-papistas, defensoras dos Estados nacionais independentes e autônomos em relação à Igreja", [05] em decorrência da doutrina do direito natural. É com base no pensamento naturalista "que Felipe IV, rei na França, afirma os seus direitos dentro do seu território e, contra toda a teologia vigente, sustenta que esse direito lhe foi dado pelo próprio Deus" [06].

O papa Bonifácio VIII escreve então a bula Unam Sanctam, expressão máxima da plenitude do poder da Igreja, afirmando ser condição de salvação para o Imperador a sua submissão ao Papa. Nessa fase, as idéias de João Quidort (precursor de Marsílio) viriam inserir na discussão a teoria conciliarista baseada na representatividade, mostrando-se, já no final da Idade Média, a raiz do que seria mais tarde a base para algumas formulações conceituais no que se passou a chamar Estado moderno, como a soberania popular, fundada na representação e na lei.

Verificamos ser indispensável compreender que o aristotelismo-tomista "traçou uma linha peremptória de separação entre razão e revelação. Essa separação tem seu melhor exemplo em Marsílio de Pádua desempenhando um papel decisivo na criação de uma teoria puramente secular do Estado" [07]. Entre o século XIII e o XV, com o aumento do poder estatal frente à Igreja, inicia-se um longo processo de laicização, no qual se encontra inserido o pensamento de Marsílio de Pádua.

Percebemos que, de modo geral, as fontes que Marsílio utilizou podem ser divididas em profanas, sagradas e teológico-filosóficas, incluindo os filósofos e os padres da Igreja, no que diz respeito ao conjunto de sua obra, que tinha a finalidade de combater a teoria da plenitude do poder papal. Contudo, considerando que, entre as fontes utilizadas no Defensor da Paz, Aristóteles é o mais citado, conforme ressalta Strefling, notamos que, no que concerne à teoria política sobre a lei, o Paduano dá maior destaque aos conceitos do Estagirita. Isso demonstra a importância dos conceitos aristotélicos na obra do Paduano.


2 O legado aristotélico-tomista

De início é preciso compreender a contribuição da teoria do direito natural aristotélico-tomista para a concepção de lei em Marsílio. O naturalismo aristotélico-tomista exerce influência determinante na obra de Marsílio de Pádua, o que se percebe pelo fato de que a primeira parte do Defensor da Paz é totalmente inspirada na Política de Aristóteles.

Conforme diz o próprio Marsílio "ao analisarmos a questão da tranqüilidade e o seu oposto, procederemos de conformidade com Aristóteles em seu livro intitulado Política". [08] Segundo Dubra, "a exigência de una adequada compreensão do pensamento político de Marsílio nos obriga a reconsiderar a significação de seu aristotelismo, e se enquadra segundo certos aspectos característicos" [09].

Notamos, ainda segundo Dubra, que tal compreensão deverá abarcar alguns traços característicos da utilização dos conceitos aristotélicos por Marsílio: 1) uma interpretação de Aristóteles que tenha interesse exclusivamente filosófico (sem compromisso de conciliação com o dogma), que delimita, de um lado, o saber racional e o saber da Revelação, de outro; 2) o interesse predominante pelo conhecimento natural; 3) a aplicação desses princípios ao plano político. Devemos ressaltar o fato de que:

O Estagirita sustentava, em primeiro lugar, que era o homem, ele mesmo, que construía sua própria felicidade. Em segundo lugar, que ele a construía mediante o exercício de virtudes puramente naturais, e em terceiro lugar, que essa felicidade se constituía numa situação humana perfeita e completa já nesse mundo. [10]

Constatamos que Santo Tomás realizou uma síntese entre o pensamento de Aristóteles e a fé cristã revelada na Escritura, com o objetivo de harmonizar razão e revelação. Santo Tomás distinguiu o poder em sentido abstrato do poder em sentido concreto. O poder abstrato é basicamente natural, proveniente da razão, da natureza do homem, e tem em vista a realização dos seus fins terrenos. É conhecido pela razão natural. O poder concreto deriva da própria decisão humana, onde um grupo de homens exerce o poder sobre os outros. Pode-se dizer que este poder concreto pertence a Deus, mas "não se dá em virtude de uma escolha direta ou pessoal de Deus, e sim de uma designação meramente humana". [11]

O poder abstrato refere-se ao direito natural, modelo para a conduta humana. O poder concreto refere-se ao poder atual, ação dos homens sobre outros, coação, regra e norma de conduta. Enquanto para Aristóteles o indivíduo encontra sua realização total na cidade, sua causa final, para Santo Tomás o homem tem dois fins, um natural, outro, espiritual. Santo Tomás desenvolve a noção hierárquica das leis eterna, natural e humana. Para ele, a ordem política é proveniente indiretamente da lei Eterna, que é a expressão perfeita do modo como Deus projetou o cosmo, dando-lhe ordem e dirigindo cada elemento para o seu fim adequado. Esta lei eterna é o princípio que consubstancia a lei natural, que, por sua vez, é o fundamento da lei humana e social. Portanto, a lei humana é uma ordem coerciva derivada do direito natural, que é inato e informa as decisões humanas, de modo que o poder político pertence ao direito natural, que decorre da razão humana, e o seu objetivo é estabelecer a justiça através da razão.

Isso conduz a uma noção de justiça associada diretamente a lei. A forma concreta e definida da justiça é o direito e a lei. Surge então a teoria contratual, que defende que o reino é fruto de um pacto entre o Soberano e o povo. Conforme Santo Tomás, o poder concreto não é divino, e pode ser adquirido por eleição, por delegação ou por mérito evidente (Cf. COSTA; PATRIOTA, 2004, p. 46). Na análise da formação do conceito de lei em Marsílio é indispensável uma compreensão desses precedentes.


3 A concepção da Lei em Marsílio

Aqui analisamos sucintamente o conceito de Lei como apresentado por Marsílio, seu alcance e limites. Nossa atenção se voltou aqui para o Capítulo X, da Parte I, do Defensor da Paz, sob o título "Sobre a distinção e conceituação da palavra ‘lei’ e sua acepção mais adequada em nosso entendimento", no qual são mostrados os sentidos possíveis para a palavra lei. Na esteira do naturalismo aristotélico-tomista, o conceito de lei do Paduano reafirma o poder laico.

Segundo Strefling, "a tendência averroísta de Marsílio em separar uma vida dirigida a fins sobrenaturais de uma vida temporal está presente na distinção que ele realiza ao classificar as leis". [12] Esse autor nos aponta que para Marsílio, "definitiva e propriamente falando, a lei é o que impõe, através de um preceito coercivo, uma pena ou um castigo, algo que se deve realizar neste mundo" [13].

Esse conceito de lei como algo que deve ser necessariamente coercivo é o que leva o Paduano a entender que "a lei positiva humana não somente não tem nenhum nexo com a lei divina, como também não tem relação com o direito natural ou racional, do qual, por certo, Marsílio não trata na Prima Dictio" [14]. Próximo do proposto por Santo Tomás, Marsílio admite que o que está de acordo com a reta razão e a lei divina é também moralmente lícito, mas a lei humana não é sempre justa, conforme anuncia o próprio Marsílio: "muitas vezes um ponto de vista distorcido acerca do que é justo e útil acaba se tornando lei, quando implica num preceito relativo à sua observância, ou ainda quando é promulgado através dum preceito". [15]

Em outra obra chamada "O Defensor Menor", o Paduano mantém a distinção entre a lei divina e a lei humana (Cf. PÁDUA, 1991, p. 35), notando que muitas coisas permitidas pela lei humana são proibidas pela lei divina. Mantendo o caráter coercivo como elemento essencial da lei, o Paduano nega que os preceitos divinos sejam propriamente leis, pois não estão acompanhados de uma sanção terrena. Na Parte I, Capítulo X, do Defensor da Paz, o Paduano inicia o seu discurso anti-hierocrático, introduzindo sua teoria política, com o seguinte enunciado:

Tendo em vista que o governo deve regular os atos civis dos cidadãos, e deve fazer isso de acordo com uma regra que é e tem de ser a forma de atuação do governante como tal, é oportuno interrogar se essa regra existe, por que existe e o que a caracteriza. Supondo que esta regra, chamada simplesmente estatuto, costume ou lei, existe e é percebida, quase que por si mesma, em todas as comunidades perfeitas mediante um processo indutivo; demonstraremos primeiramente o que a caracteriza, em seguida indicaremos o motivo que justifica sua finalidade e comprovaremos, finalmente, através de evidências, qual ou quais as pessoas devem promulgá-la e de que modo terão de agir [16].

Percebemos nesse enunciado a afirmação da necessidade de que os atos do governante sejam limitados e regulados pela lei, o princípio da legalidade que é fundamento do Estado moderno. É notável também que o Paduano considerava que, em geral, as leis sociais são elementos essenciais nas "comunidades perfeitas", termo esse de origem aristotélica.

O Paduano objetiva então demonstrar: 1) o que caracteriza as leis; 2) o motivo que justificaria sua finalidade e 3) qual ou quais as pessoas deveriam promulgá-la e de que modo teriam de agir. Nesse sentido, Marsílio expõe quatro acepções fundamentais para a palavra lei, que, em geral, aparecem no senso comum, conforme o que segue:

Um dos significados da palavra ‘lei’, quer dizer uma predisposição sensível e natural para determinada ação ou sentimento, conforme o Apóstolo a empregou na Carta aos Romanos, capítulo VII [23], dizendo: percebo outra lei em meus membros que luta contra a lei de minha razão [17].

Nessa acepção da lei o Paduano ressalta o aspecto natural inerente aos sentidos e inclinações humanas. Aqui ele aponta que comumente há uma tendência de se dizer que aquela inclinação dos sentimentos humanos é um tipo de lei, uma espécie de lei biológica. Em seguida, Marsílio mostra o segundo sentido pelo qual a palavra lei pode ser tomada.

Outra acepção da referida palavra concerne a todo hábito operante e, em geral, a toda forma de algo produzível, existente na razão, donde, como se tratasse de um modelo, provém a forma das coisas produzidas, através da habilidade criadora. Ezequiel utilizou o termo ‘lei’, nesse sentido, de acordo com o que está escrito em seu livro capítulo XLIII [12, 13]: portanto, esta é a lei da casa, mas estas devem ser as medidas do altar [18].

Essa acepção de lei demonstra que comumente se pode entender a lei como forma, regra de algo que deve ser necessariamente produzido segundo aquele padrão. O Paduano quis mostrar que a lei pode ser entendida como medida adequada, indispensável, da qual não se pode fugir se o objetivo é fazer algo corretamente. Marsílio parte então para o terceiro sentido da palavra:

Num terceiro sentido, o vocábulo ‘lei’ é considerado como a regra que contém os preceitos estabelecidos para regular os atos humanos direcionados para a recompensa ou para o castigo no outro mundo. Segundo esta acepção, ao menos relativamente, a lei mosaica pode ser considerada como tal e assim também a Lei Evangélica é vista em toda sua amplitude [19].

Essa é a acepção religiosa da lei, compreendida segundo a tradicional idéia evangélica de que os preceitos da Revelação devem ser obedecidos com vistas a se atingir a recompensa na vida futura. Segundo Stregling, "a lei evangélica é, antes de tudo, uma doutrina de orientação da vida terrena em vista da vida eterna". [20] Marsílio mostra esse sentido de lei como uma acepção apenas relativa, pois para ele os preceitos da fé não são propriamente leis. Recorde-se que o elemento essencial da lei para o Paduano é o poder de coerção.

Se a regra da Escritura não tem uma sanção terrena, então ela não é lei, embora o senso comum a designe como lei. A partir desses três sentidos, Marsílio nos mostra o que ele considera o mais apropriado, afirmando que "num quarto sentido, por sinal o mais usual entre todos, o conceito de lei indica a ciência, a doutrina ou o julgamento universal acerca do que é útil e justo para a cidade e dos seus contrários". [21]

Nesse último sentido, é mostrada a lei tendo como objeto o que é justo e útil para a comunidade. A lei não é necessariamente justa, como o próprio Paduano reconhece. E sua função é cumprida sem que para isso tenha que considerar os fins espirituais.

Mas a lei, em si mesma, está acima do justo e do útil, pois o critério básico para o legislador é que este deve ser a totalidade dos cidadãos ou sua melhor parte e, no caso de uma lei injusta ser promulgada, não pode ser desrespeitada com base na alegação de ser injusta. O Paduano chega por fim a um conceito social da lei, segundo o qual:

A lei é um enunciado ou princípio que procede duma certa prudência e da inteligência política, quer dizer, ela é uma ordem referente ao justo e ao útil, e ainda aos seus contrários, através da prudência política, detentora do poder coercivo; isto é, trata-se de um preceito estatuído para ser observado, o qual se deve respeitar ou, ainda, a lei é uma ordem promulgada a partir de determinado preceito. [22]

Desse modo, podemos compreender que: 1) o que caracteriza a lei em seu conceito mais próprio é o fato de ser ela coerciva, prevendo um castigo social para quem não a obedece; 2) o motivo que justifica sua finalidade é a busca do que é útil e justo para a maior parte do povo, com o fim de se atingir a paz social; e 3) é necessário que o legislador cumpra sua função de acordo com a acepção mais adequada da palavra lei, sendo inconveniente que um só homem legisle, pois tal função deve necessariamente ser reservada para os representantes da maior parte do povo. [23]

Marsílio, porém, não especifica se a figura do supremo legislador deve ser identificada com o povo romano, com o imperador ou com a comunidade civil. [24]

Esses pressupostos nos permitiram constatar que, para o Paduano, a lei é regra coerciva que vincula todos os grupos dentro da sociedade e, livre de qualquer arbítrio, está acima das noções do justo e do útil. Por isso diz Dubra: "a lei não está concebida em termos particulares como algo benéfico ou prejudicial para o amigo ou o inimigo, senão universalmente, em relação a quem atua civilmente mal ou bem". [25]

Sobre o autor
Jair Lima dos Santos

Acadêmico do curso de Direito da UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco; Bolsista do PIBIC-CNPq; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval -GEPFAM/CNPq

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jair Lima. Nota sobre o Direito Medieval.: A concepção da lei em Marsílio de Pádua. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2265, 13 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13484. Acesso em: 23 dez. 2024.

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