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Questões sobre a hierarquia entre as normas constitucionais na CF/88

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Agenda 01/07/1999 às 00:00

1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 representa a norma fundamental de nosso ordenamento jurídico. Nela encontramos a consolidação dos bens e valores jurídico-políticos que o constituinte resolveu, por bem, conceder a qualificação de supremos quando comparados aos demais.

É inegável que a Lei Maior constitui a norma mais importante do ordenamento jurídico, legitimando o direito estatal posto e ordenando o sistema jurídico.

Se é certo o grau hierárquico superior do sistema normativo abrigado no corpo formal da Constituição sobre as demais normas jurídicas, consoante os ensinamentos da dogmática jurídica tradicional, é possível se falar em hierarquia entre as próprias normas constitucionais? A questão está longe de ser pacificada.

A Assembléia Nacional Constituinte, da qual se originou o texto constitucional, refletiu os anseios de uma sociedade que estava saindo de um período ditatorial e, buscando a democracia e o desenvolvimento sócio-econômico de suas relações. O texto constitucional demonstra bem isso.

Acontece que a Constituição não foi obra de um grupo político-econômico solitário. A Constituição nasceu confusa quanto à sua identidade, se liberal, dirigente ou social-democrática; se parlamentarista ou presidencialista; até o princípio republicano foi questionado. Como nenhum grupo na Assembléia Nacional Constituinte tinha supremacia, produziu-se um texto que remete muitas decisões importantes para o futuro, através de dispositivos programáticos, ou, que estabelece valores aparentemente contraditórios no mesmo dispositivo.

Embora aparentemente desordenada, a Constituição tem o seu valor como norma jurídica fundante de todo o ordenamento jurídico vigente. Como conciliar os dispositivos constitucionais nascidos pelas mãos do capital com os das mãos do trabalho? Pode haver harmonia no texto constitucional sem uma hierarquia interna?

O objetivo fundamental desse estudo é a de verificar a possibilidade da existência de hierarquia entre as normas constitucionais; e, se viável a hierarquização, como ela ocorre, segundo a Constituição de 1988.


2. Papel da Constituição

O ordenamento jurídico representa todo um sistema ordenado, harmônico e hierarquizado de normas que regulam a conduta jurídica das pessoas enquanto seres integrados em uma dada sociedade. Sua concreção encontra-se determinada pelo grau de aceitação que suas normas conseguem no seio do corpo social, bem como na força dos instrumentos postos pelo próprio ordenamento jurídico para sua efetivação real.

Mas o ordenamento jurídico não surge do nada. Constitui sim a condensação das normas sociais que são consideradas mais fundamentais para a preservação da sociedade, produzindo o grau máximo de intervenção da sociedade na conduta individual. Tanto o seu surgimento como o seu processo de concretização sofrem a influência do meio ambiente sócio-político, bem como do curso impiedoso das necessidades históricas e econômicas que impelem o homem para sua evolução.

O ponto inicial do ordenamento jurídico é o Poder Constituinte. Através dele, o político, o social, o econômico e o cultural tornam-se jurídico, na tentativa de integrar, com um mínimo de ordem, norma e conduta. No Poder Constituinte, a ordem social vigente constitui uma dada ordem jurídica, que passará a servir como instrumento mais poderoso de controle social, socializando o indivíduo dentro daqueles padrões de comportamento considerados fundamentais para a preservação da própria ordem social instituinte, concedendo segurança jurídica às relações sociais.

O resultado da quebra de lanças entre as forças sociais durante os debates (ou conflitos) constituintes consolida-se na Constituição.

A Constituição representa a norma fundamental do ordenamento jurídico. Fundamental porque através dela a sociedade jurisdiciza suas opções político-ideológicas num dado momento histórico, mediante a delimitação das estruturas essenciais do Poder Político e, determinando, o que a sociedade entende por indispensável para a existência humana e da própria coletividade.

Instituída a Constituição, o ordenamento jurídico toma forma e pode ser vivificado. Os rumos tomados e consolidados na norma fundamental viabilizam a construção de uma dada ordem jurídica, procurando estabelecer um sistema hierarquizado e coerente para a edição e concretização da norma jurídica.

A Constituição, como vínculo estrutural entre a política e o direito, tem por finalidade garantir a "legitimidade" jurídica do Estado, dotando o sistema jurídico: da abertura cognitiva indispensável para tornar próxima da realidade social o padrão de comportamento comunicado pelas esferas estatais; e do fechamento operacional necessário para a criação e auto-reprodução do direito positivo no Estado (Neves, 1994.1: p. 63).

O estudo da Constituição pode ser efetivada por dois ângulos distintos, porém interdependentes: pela Constituição material, identificando-se o seu conteúdo sociológico, filosófico e histórico; e pela Constituição formal, que determina a inserção da Constituição no ordenamento jurídico estatal (Dantas, 1994: p. 12).

A Constituição material compreende o leque de opções ideológicas assumidas pelo Poder Constituinte no trato das questões políticas e sociais, concedendo a determinadas matérias a condição de fundamentais para a configuração do Estado (Dantas, 1994: pp. 30-31), bem como a aceitação e observância da sociedade dos valores expostos na Constituição. Surge daí a necessidade de se garantir juridicamente a supremacia e a efetividade do conteúdo social e político da Constituição, formado no Poder Constituinte.

Lembra Marcelo Neves que "os procedimentos decisórios tanto constituintes como de concretização normativa dos textos constitucionais filtram as expectativas jurídico-normativas de comportamento, transformando-as em normas constitucionais vigentes"(Neves, 1994.1: p. 61). O direito constitucional passa a ser, "a consagração jurídico-positiva de uma determinada ideologia, aquela socialmente aceita" (Dantas, 1994: p. 22), funcionando como limite sistêmico-interno para a capacidade de aprendizado do direito positivo diante da realidade social (Neves, 1994.1: p. 67).

Alerta Miguel Reale que a Constituição não deixa de ser uma categoria histórica, "inseparável do complexo de circunstâncias e conjunturas sociais, econômicas, demográficas, militares, em uma palavra, culturais, que condicionou a sua feitura, a começar pela atitude do legisladores constituintes perante a realidade cuja organização e atividades tinham em vista determinar em seus elementos básicos" (Reale, 1993: p. 11). Ela procura organizar a sociedade naquilo que ela considera de mais fundamental dentre os fenômenos jurídicos, identificando os elementos e valores essenciais a própria sustentação de uma dada opção política-ideológica da sociedade.

A Constituição formal, caracteriza-se pela supralegalidade constitucional como garantia jurídica da supremacia da Constituição, bem como pela imutabilidade relativa da Lei Maior pelo Poder de Reforma (Dantas, 1994: p. 41). A supralegalidade constitucional reside na posição da Constituição como preceito normativo fundamental e hierarquicamente superior às demais normas constantes no sistema jurídico, e sua preservação através do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos emanados pelos poderes do Estado.

Tem sido apontada na dogmática jurídica constitucional os direitos e deveres individuais e as funções e limites do poder estatal como núcleo material mínimo das Constituições contemporâneas (cf. Reale, 1993: p. 10; e Neves, 1994.1: pp. 69-75), que alguns chegam a apontar como resultado de invariantes axiológicas construídas do decorrer da evolução histórica da humanidade (Reale, 1993: p. 11).

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Acontece que o núcleo material mínimo ao qual nos referimos consiste naquele construído pelo Estado Liberal no apagar das luzes do período do Absolutismo. E um dos pontos cruciais para a manutenção do sistema político-econômico capitalista que então se estabelecia era o chamado princípio da legalidade, assegurado em toda e qualquer Constituição burguesa.

Sob o princípio da legalidade, construiu-se toda uma estrutura normativa destinada a preservar a liberdade individual contra o arbítrio do Estado, bem como de tutelar a propriedade contra a ação dos não-proprietários (Grau, 1990: p. 23). A lei deveria ser, portanto, o refúgio do indivíduo e da livre inciativa contra o poder estatal.

Embora uma lei fundamental, a Constituição não deixa de ser uma lei, pois "não deixa de possuir os mesmos requisitos de toda a lei, a qual, como expressão de liberdades coexistentes e garantidas, concomitantemente proíbe e autoriza, circunscreve a ação e a protege nos limites necessários à garantia recíproca e justa das liberdades"(Reale, 1993: 10).

Eros Roberto Grau lembra ainda que apesar do direito mediatizar as relações entre as forças econômicas do capital e as forças econômicas do trabalho "é certo e fora de dúvida que prospera o sentido de prover os destituídos de poder de defesas que inexistiriam em um quadro no qual o poder fosse exercitado sem as peias da lei" (Grau, 1990: p. 28).

O processo de juridificação dos direitos políticos e sociais (cf. Neves, 1994.2: p. 51), acompanhou a inserção de novas tarefas para o Estado burguês no sentido de dotar de alguma concreção os direitos individuais preservados formalmente no texto legal (Rocha, 1994: p. 74). Com as crises do capitalismo, o direito passa a ser um instrumento de administração e de ordenação do desenvolvimento do capital em face das turbulências enfrentadas pela burguesia em face da maior mobilização e reivindicação por parte das forças econômicas do trabalho por uma maior participação no processo de decisão político-econômica da sociedade. Passa o direito a ser um instrumento de implementação de políticas públicas (Grau, 1994: p. 31), dentre elas, de políticas econômicas.

A realidade enfrentada por ocasião da transição do Estado Liberal para o Estado Intervencionista refletiu a inadequação da tripartição clássica das funções do Estado, cada vez mais dedicado à programação e realização de políticas públicas destinadas à manutenção do sistema capitalista (Comparato, 1994: p. 14), para a superação das crises e para a socialização dos custos de sua manutenção. Para se reciclar, o sistema capitalista entendeu que a restrição das atividades do Estado à legislação e execução da lei se mostrou insuficiente para a mitigação das tensões sociais, sendo forçada a edificar políticas públicas de regulação, planejamento e desenvolvimento das relações sócio-econômicas (Comparato, 1994: p. 16; Grau, 1990: p. 37).

O núcleo material da constituição foi obrigado a inserir elementos estruturantes da ordem econômica como matéria fundamental para as bases do Estado e da sociedade (cf. Grau, 1990: p. 74). A essa parcela da norma fundamental, denomina-se Constituição Econômica. Não significa dizer inexistia qualquer regulação jurídica no liberalismo.

A própria "omissão" do Estado no domínio econômico constituía uma opção ideológica no trato da ordem econômica (Dantas, 1995.2: pp. 64-65), pois nunca houve uma desregulação da economia (Grau, 1990: p. 40). Apenas a intervenção do Estado na regulação jurídica da economia se limitava à instituir e garantir a propriedade privada e a liberdade contratual, restringindo a ação do Estado ao determinado pela lei formal. Com a insuficiência da regulação jurídica do Estado Liberal, fez-se necessária a intervenção mais intensa e presente do Estado.

Diante da realidade, o Poder Constituinte pôs em discussão uma política econômica (opção político-ideológica) e diretrizes (programas) para a efetivação de determinadas metas pelo Estado. "A ordem desejável ‘determina’ o conteúdo da Constituição Econômica - resultado das relações entre o Econômico e Jurídico - que, por sua vez, traça os limites e parâmetros a serem levados em conta pela Política Econômica, numa verdadeira engrenagem dialética" (Dantas, 1995.2: p. 57; cf. tb. p. 68).

No sistema jurídico brasileiro, a norma fundamental é a Constituição promulgada em 1988, pela Assembléia Nacional Constituinte, resultado da superação de uma fase autoritária de nossa história e da opção, pela sociedade, por uma regime mais aberto e democrático.

A Constituição de 1988 contêm os fundamentos e diretrizes que deverão ser seguidas pela sociedade em suas relações jurídicas. Embora possa parecer que a Constituição, ao se desdobrar numa extensa regulação de quase todos os aspectos sociais, tenha tentado uma espécie de "imperialismo" sobre a economia, a cultura e a política, nada mais procura senão estabelecer os processos jurídicos que deverão ser seguidos dentro dessas áreas, de modo que o cultural, o econômico e o político não se torne anti-social. E, mesmo que houvesse tal pretensão, a força do político-econômico e o caráter cada vez mais volátil da realidade humana impedem que se preestabeleça todos os critérios jurídicos que devem orientar e vincular a conduta de cada um de nós. Se a realidade humana fosse estática, nunca haveria uma caducidade da norma jurídica. Os fatos sempre foram e serão sempre rebeldes com relação ao direito. "O Direito não está sobre os fatos, nem ao lado dos fatos, porém atrás do fato" (Veiga, s/d: p. 27; grifo do autor).


3. Fundamentos e Diretrizes Constitucionais

Identificamos uma distinção entre fundamentos e diretrizes constitucionais. Constitui fundamento constitucional todo aquele valor social considerado imprescindível para a sociedade num dado momento histórico, cuja complexidade demanda um tratamento jurídico diferenciado.

A diretrizes constitucionais fixam metas para o Estado e para sociedade, que deverão ser alcançadas por instrumentos jurídicos. Sua concretização depende da adequação entre a realidade social e o fim preestabelecido na Constituição.

Tanto os fundamentos como a diretrizes constitucionais constituem opções político-ideológicas que prevaleceram no Poder Constituinte e que reclamam uma sistematização e instrumentalização jurídicas, devido a importância assumida por aqueles na preservação da ordem social.

A Constituição de 1988 estabelece uma hierarquia entre os fundamentos e diretrizes constitucionais, ao nosso ver, intitulando-os como "princípios fundamentais". Houve a intenção do constituinte em destacar esses fundamentos e diretrizes constitucionais, possuindo formalmente um caráter vinculativo maior e mais poderoso quando comparado aos demais.

O art. 1º da Lei Maior estabelece em seus incisos os fundamentos primeiros do Ordenamento Jurídico-Constitucional. São eles a soberania (I), a cidadania (II), a dignidade da pessoa humana (III), os valores sociais do trabalho e da livre inciativa (IV), e o pluralismo político (V).

No seu art. 3º, fixa a Constituição as diretrizes fundamentais da República, que são: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (I); a garantia do desenvolvimento nacional (II); a erradicação da pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (III); e, por fim, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação (IV).

Não é preciso muito para se verificar que boa parte desses fundamentos e diretrizes constitucionais estão dissociadas da realidade constitucional, bem como, caso argüidos isoladamente junto ao Poder Judiciário, e, aparentemente, não trazendo nenhuma conseqüência prática para o indivíduo (cf. Barroso, 1993: pp. 177-184; Saraiva, 1993: pp. 39-40) . Luís Roberto Barroso chega a afirmar que os ‘objetivos fundamentais’ do art. 3º são tão desimportantes, ao ângulo da dogmática constitucional, que alguns dos principais comentadores da Constituição de 1988, ao tratarem dos seus quatro incisos, não conseguiram despender mais do que meia página" (Barroso, 1993: p. 180).

A falta de concretização normativa do texto constitucional brasileiro tem levado a afirmações de tal natureza. O ceticismo e a frustração que a má concretização da Constituição de 1988 trouxe para o cidadão foi tanta, que os juristas acabaram desconsiderando a potencialidades dos fundamentos e diretrizes constitucionais. Mas isso não significa dizer que esses dispositivos constitucionais são inúteis ou retóricos. Ao nosso ver, assumiram um caráter retórico, embora se possa dizer que, ao sistematizá-los, alguns dos constituintes tinham essa intenção.

Os incisos dos arts. 1º e 3º da Carta Magna tem reconhecidamente uma função simbólica, que refletem os anseios de um sociedade por uma democracia justa e pela superação do subdesenvolvimento econômico e social. Entretanto, podem assumir um caráter normativo-jurídico mais relevante, dependendo da sua adequação com a realidade constitucional.

Como bem lembra Marcelo Neves, "apesar da função simbólica das declarações contidas nos textos constitucionais e seus preâmbulos, elas podem servir também à interpretação e, portanto, à concretização normativa do texto constitucional" (Neves, 1994.1: p. 33).

Entendendo-se a legislação simbólica como "a produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico" (Neves, 1994.1: p. 32), estando dissociada da realidade constitucional (Neves, 1994.1: p. 33), pode-se dizer que os fundamentos e diretrizes constitucionais do art. 1º e 3º da Constituição de 1988 tem uma tríplice função (cf. Neves, 1994.1: pp. 33-41).

a) Determinar os valores e fins que devem ser predominantes para as três esferas estatais (legislação, jurisdição e administração), no desempenho de suas atividades (cf. Neves, 1994.1: p. 34);

b) Apresentar o Estado como sensível às exigências e expectativas do cidadão, procurando conquistar sua confiança no sistema jurídico posto;

c) Transferir para o ordenamento jurídico a concretização de seu conteúdo em um futuro indeterminado.

A função normativo-jurídica dos fundamentos e diretrizes constitucionais destacados pelo constituinte como "princípios fundamentais" é a de constituir os padrões axiológicos e teleológicos que devem ser seguidos pelo operador jurídico, na construção e concretização do ordenamento jurídico.


3. Princípios e Regras Constitucionais

Cabe à norma constitucional viabilizar a concreção jurídica dos fundamentos e diretrizes constitucionais, fazendo-a sob a forma de princípios e regras constitucionais1. Tanto um como o outro podem conter fundamentos e/ou diretrizes constitucionais. Ë através da norma constitucional que o fundamento e/ou diretriz constitucionais ganhem a imperatividade que somente a norma jurídica pode lhes conceder.

Os princípios constitucionais são expressões normativas consolidadas a partir dos valores (fundamentos) ou fins (diretrizes) predeterminados constitucionalmente, que se destinam a dar o máximo de coerência, univocidade e concreção ao ordenamento jurídico fundado numa dada Constituição (cf. Rocha, 1994: p. 25). São eles que delimitam a margem de interpretação e apreciação do texto constitucional pelo operador jurídico. Sem os princípios, o processo de concretização da norma constitucional careceria de qualquer objetividade.

As regras constitucionais estatuem preceitos normativos, tal como as regras jurídicas infraconstitucionais, estabelecem um padrão de conduta a ser seguido pelo cidadão diante de uma dada situação jurídica individual, que pode determinar uma permissão, obrigação ou proibição. Devem gozar de um padrão mínimo de generalidade e abstração para a regulação das relações sócio-jurídicas, voltada para o futuro e isenta de discriminações não admitidas no texto constitucional.

A positivação dos princípios constitucionais, dotando-os da necessária vinculatividade, imperatividade e aplicabilidade, ocorre de duas formas. Na primeira, o texto constitucional expressa-os claramente, tornando o princípio em norma constitucional plenamente exigível e concretizável, desde já vinculando a conduta do agente público e do cidadão. Na segunda, o princípio constitucional é apreendido no ordenamento jurídico-constitucional, pela doutrina e jurisprudência, somente encontrando concretização viável quando indicado e imposto pela decisão judicial. No último caso, diz-se que o princípio constitucional encontra-se implícito no ordenamento jurídico-constitucional. Segundo Eros Roberto Grau, estes não constituem criação jurisprudencial nem preexistem externamente ao ordenamento jurídico - ou á Constituição, e, por conseguinte, "a autoridade judicial, ao tomá-los de modo decisivo para a definição de determinada situação normativa, simplesmente comprova a sua existência no bojo do ordenamento jurídico, do Direito que aplica, declarando-os" (Grau, 1990: 129).

Alguns chegam a fazer uma distinção entre princípios positivados e princípios gerais de direito (cf. Grau, 1990: p. 95). Não vemos necessariamente razão para se menosprezar este ou aquele princípio pelo fato de que um está e outro não explicitamente posto no texto constitucional. Acreditamos que ambos gozam do caráter de norma constitucional, com a mesma força (em tese) normativa. Todavia, é certo dizer que o princípio, quando expresso no texto normativo, goza de maior grau de concretabilidade do que um princípio que precisa ser apreendido pela doutrina e jurisprudência, devendo enfrentar controvérsia quando de sua aplicação. É da nossa tradição jurídica por na lei tudo o que for possível, como bem demonstra nossa extensa Constituição.

Para Ivo Dantas, os princípios constituem uma "categoria lógica e, tanto quanto possível, universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo, quando incorporados a um sistema jurídico-constitucional-positivo, refletem a própria estrutura ideológica do Estado, como tal, representativa dos valores consagrados por uma determinada sociedade", estabelecendo a dedutibilidade destes do conteúdo do sistema jurídico como critério diferenciador, quando confrontados com as normas jurídicas (Dantas, 1995.1: p. 59). As normas jurídicas seriam sempre claras e expressas.

Acontece que como bem lembram J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, nem sempre os princípios estão implícitos, dedutíveis do sistema jurídico:

"A norma distingue-se do princípio porque contém uma regra, instrução, ou imposição imediatamente vinculante para certo tipo de questões. Todavia, os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio, constituindo preceitos básicos da organização constitucional. Os princípios são núcleos de condensação nos quais confluem bens e valores constitucionais, i. é., são expressão do ordenamento constitucional e não fórmulas apriorísticas contrapostas às normas" (Canotilho e Moreira, 1991: p. 49; grifo nosso; cf. tb. Grau, 1990: p. 129).

Os princípios constitucionais têm força de norma jurídica e, são, norma jurídica. São normas constitucionais hierarquicamente privilegiadas, onde o fundamento e/ou diretriz constitucionais encontram-se imperativamente determinadas, objetivando o seu conteúdo e tornando-o concretizável juridicamente. "A norma que dita um princípio constitucional não se põe à contemplação, como ocorreu em períodos superados do constitucionalismo; põe-se à observância do próprio Poder Público do Estado e de todos os que à sua ordem se submetem e da qual participam" (Rocha, 1994: p. 26). Do contrário, o princípio constitucional perde sua realidade e se torna nada mais do que um protocolo de boas intenções. O princípio da igualdade é um bom exemplo disso.

Se há um descumprimento do princípio da igualdade, o indivíduo pode, tão somente baseado no princípio, reivindicar imediatamente a tutela jurisdicional, sendo irrelevante qualquer regra jurídica predeterminada para regulamentá-lo. O princípio pode bastar em si mesmo para fundamentar a decisão judicial ou administrativa produzida para a situação jurídica individual.

Segundo Carmem Lúcia Antunes Rocha, os princípios constitucionais têm uma função positiva e outra negativa. Sua função positiva, consiste "em afirmar a diretriz e o conteúdo dos subprincípios e do regramento jurídico que se põe à observância dos membros da sociedade estatal" (Rocha, 1994: p. 28). Em sua função negativa, o princípio constitucional estabelece a rejeição de qualquer conteúdo que a ele se contraponha no ordenamento jurídico constitucional.

Os princípios constitucionais têm necessariamente uma predominância sobre as regras constitucionais,

Os princípios constitucionais podem vir ou não expressos no texto constitucional. Mas é imprescindível que ambos tenham e gozem do caráter de norma jurídica. A norma jurídica não se limita tão somente ao texto normativo. Tal como o legislador, o administrador e juiz também produzem uma norma vinculativa e imperativa de conduta social dos indivíduos, e, consequentemente, direito. Justamente na concretização do texto normativo é que o direito se torna vivo e visível, tornando-se próximo do cidadão e deixando de ser uma linguagem somente direcionada para os "iniciados".

Willis Santiago Guerra Filho propõe os seguintes critérios para a distinção entre princípio e regra constitucional (Guerra Filho, 1991: p. 107).

A distinção entre princípios e regras pela separação "onto-lógica" radical existe para "ambos os tipos de normas, quando se tem, por exemplo, a possibilidade de princípios, em virtude de sua natureza, existirem implicitamente no sistema normativo, algo impensável para regras, ou ainda, a circunstância de regras contraditórias gerarem antinomia normativa, a ser desfeita com o afastamento de uma delas, ao passo que é da própria natureza dos princípios, (...) se apresentarem na natureza como contrapostos uns aos outros" (Guerra Filho, 1991: p. 107).

Os princípios não deixam de ser normas constitucionais somente porque podem ser dedutíveis da regra constitucional. Podem vir expressamente determinados no texto constitucional(ver art. 37, caput da Constituição), assumindo plenamente o caráter de norma constitucional. Caráter este que não deve ser afastado dos princípios constitucionais implícitos, apreendidos e sistematizados pela jurisprudência. Afinal, o juiz também cria direito.

As regras jurídicas são concretizadas na sua inteireza, não comportando uma aplicação parcial de seus preceitos (Grau, 1990: p. 107). Já os princípios jurídicos, "mesmo aqueles que mais se assemelham às regras não se aplicam automaticamente e necessariamente quando as condições previstas como suficientes para sua aplicação se manifestam" (Grau, 1990: p. 108). Todavia, a inteireza da aplicação de um princípio pode ser comprometida por um princípio de grau hierárquico maior, como veremos adiante.

Os princípios possuem uma dimensão e um peso maior do que as regras jurídicas. O que definirá o conflito entre os princípios é o peso relativo de cada um deles dentro do ordenamento jurídico-constitucional (Grau, 1990: p. 111).

Inexiste uma regra jurídica mais importante do que a outra. Havendo conflito entre elas, o peso maior de uma invalidará a outra no ordenamento jurídico (Grau, 1990: p. 111). Neste caso, é possível se afirmar que não existem regras constitucionais de primeira, segunda ou terceira categorias, mas tão somente regras constitucionais ou inconstitucionais, mesmo que estejam no corpo formal da Constituição (Saraiva, 1993: p. 17).

Já podemos aqui identificar o primeiro ponto de hierarquização entre as normas constitucionais: os princípios constitucionais constituem normas constitucionais hierarquicamente superiores às regras constitucionais, por aquelas gozarem de uma dimensão axiológica e teleológica mais ampla e influente do que a destas, repercutindo sobre todo o ordenamento jurídico-constitucional. É certo que as regras constitucionais também tem uma dimensão axiológica e teleológica, mas esta se encontra adstrita as situações jurídicas individuais que visa regular, não incidindo diretamente, como fazem os princípios, sobre o sistema jurídico estatal.

Sobre o autor
Vladimir da Rocha França

advogado em Natal (RN), professor da UFRN e da Universidade Potiguar, mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), doutor em Direito do Estado pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANÇA, Vladimir Rocha. Questões sobre a hierarquia entre as normas constitucionais na CF/88. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. -1462, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/135. Acesso em: 19 dez. 2024.

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