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Súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro

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Agenda 15/09/2009 às 00:00

Resumo: A fim de dotar o poder judiciário brasileiro de maior efetividade, algumas reformas foram postas em prática nos últimos anos. Sem dúvida alguma, o principal marco desse processo de reformulação foi a Emenda Constitucional nº45/2004. Dentre as alterações promovidas por ela, destaca-se a criação da súmula vinculante como instrumento integrante do ordenamento jurídico brasileiro. Embora a súmula constitucional seja um instrumento bastante criticado nte. Common Law. Judiciário. Emenda Constitucional nº45/2004. Supremo Tribunal Federal.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No mundo ocidental contemporâneo, destacam-se dois grandes sistemas jurídicos: o denominado Common Law e o denominado Civil Law. A súmula vinculante brasileira opera no segundo sistema, mas foi inspirada em conceitos e institutos sabidamente pertencentes ao primeiro sistema acima mencionado.

Tendo como ponto de partida essa informação, buscar-se-á, ao longo deste artigo, não somente situar a súmula vinculante dentro do ordenamento jurídico pátrio, sua aplicação e seus efeitos, mas também, de maneira objetiva e sintética, serão apresentados a origem e o conceito desse instituto jurídico entre nós.

Como o próprio título deste trabalho já sugere, a fim de cumprir o objetivo acima mencionado, far-se-á uma abordagem mostrando de que forma a súmula vinculante foi normatizada pela Constituição Federal, pela lei nº11. 417/2006 e de que forma os demais diplomas legais com ela se relacionam.

Ademais, buscar-se-á ainda atacar algumas das discussões e alguns dos argumentos subjacentes à criação dela, pois sabe-se que muitos deles ainda acalentam profícuos debates nos círculos acadêmicos e jurídicos quando se tem em mente o papel exercido pela súmula vinculante em nosso sistema legal.


1. A ORIGEM DA SÚMULA VINCULANTE E SUA DEFINIÇÃO

Em primeiro lugar, é importante mencionar que a criação do conceito de súmula remonta o ano de 1963, ano em que o Supremo Tribunal Federal, STF, capitaneado pelo Ministro Victor Nunes Leal, ressentindo-se de um instrumento capaz de orientar seus jurisdicionados sobre o posicionamento majoritário em relação aos temas submetidos à sua apreciação, construiu o instituto da súmula (CARVALHO, 2008). Ou seja, passou a Corte Constitucional, por meio de enunciados curtos e objetivos, a emitir seu entendimento dominante tendo em vista a segurança jurídica. Em curto espaço de tempo, não somente o STF, mas também os Tribunais Superiores e demais Cortes passaram a editar esse importante instrumento.

De fato, a súmula nasceu com o intuito de evitar a desnecessária repetição de causas nas mais variadas instâncias do Poder Judiciário ao tentar pacificar a interpretação de determinados temas quando as Cortes Superiores já houvessem firmado seus posicionamentos. Ressalte-se que a súmula sempre tem origem em decisões reiteradas, conexas e coerentes com julgados de certas matérias em sentido similar e, de acordo com o ex-ministro Nunes Leal (apud NASCIMENTO, 2009, p.3), "tem por objetivo buscar o meio-termo ideal da estabilidade da jurisprudência, situando-se entre a dureza dos assentos e a inoperância dos prejulgados."

Entretanto, essa concepção de súmula, apesar de cumprir o papel fundamental de orientar jurisdicionados e demais juízes das outras instâncias não possui efeito vinculante, ou seja, não dispõe de força suficiente para por si só, preenchidos os requisitos legais, se impor aos casos concretos.

Isso ocorre porque nos sistemas jurídicos romano-germânicos, que adotam o Civil Law, embora possa existir de maneira excepcional a utilização do efeito vinculante em certos momentos, a regra é a lei ser a fonte primária do direito. Por outro lado, em que pese haver alguma divergência entre o direito britânico e o estadunidense, que adotam o Common Law, o respeito à eficácia dos precedentes é de vital importância para a sustentação desse sistema, uma vez que é comum não haver lei aplicável ao caso concreto.

Em verdade, no Common Law, a lei não escrita é a regra. Então, é fácil perceber que se aí cada juiz pudesse extrair livremente a sua compreensão em torno dos costumes que cercam determinado litígio, o sistema seria certamente conturbado e confuso, no sentido de ser incapaz de transmitir segurança a quem dele depende. Já no Civil Law em razão de a lei por si mesma irradiar segurança jurídica e conter conteúdo que proporcione ao cidadão se valer de determinado direito sem se socorrer do Poder Judiciário para tanto, certa liberdade é conferida ao julgador.

As diferenças entre os dois sistemas são explicadas pelo professor André Ramos Tavares com rara sapiência. Elas são importantes para uma melhor compreensão do tema debatido neste artigo. O douto professor denomina o sistema da Common Law por jurisprudencial e o sistema da Civil Law por codificado:

[...] Há uma radical oposição e (aparente) incompatibilidade entre os modelos mencionados. Realmente, enquanto o modelo codificado atende ao pensamento abstrato e dedutivo, que estabelece premissas e obtém conclusões por processos lógicos, tendendo a estabelecer normas gerais organizadoras, o modelo do jurisprudencial obedece, ao contrário, a um raciocínio mais concreto, preocupado apenas em resolver o caso particular (pragmatismo exacerbado). O modelo do common law está fortemente centrado na primazia da decisão judicial ("judge made law"). É, pois, um sistema nitidamente judicialista. Já o Direito codificado, como se sabe, está baseado, essencialmente, na lei. (TAVARES, 2007 p.1-2).

O sistema da Common Law tem como princípio fundamental o stare decisis, ou seja, o precedente que decorre de um caso já decidido e que norteia futuras decisões que tenham por base fundamentos análogos aos do primeiro caso. Ou nas palavras do professor Tavares, 2007: "a norma e o princípio jurídico são induzidos a partir da decisão judicial, porque esta não se ocupa senão da solução do caso concreto apresentado. O precedente haverá de ser seguido nas posteriores decisões, como paradigma." Assim, nota-se que o efeito vinculante das decisões possui inspiração no sistema da Common Law. Com efeito, o mesmo professor acima aludido leciona nesse sentido:

[...] o distanciamento entre os dois modelos teóricos, na prática, tem diminuído. É nesse contexto que se deve compreender a introdução, no sistema de Direito legislado brasileiro, da súmula vinculante, para muitos, instituto próximo de stare decisis, por surgir de casos concretos, embora por meio de um processo de objetivação dos mesmos. Assim, a súmula vinculante parece, à primeira vista, criar uma ponte sólida entre controle concreto-difuso e controle abstrato-concentrado, de maneira similar ao ‘processo de generalização’ existente no Direito português vigente. (TAVARES, 2007, p.2).

A aplicação do stare decisis, entretanto, não é simples, pois exige bastante prudência e sábio exercício da discrição judicial, além de fundamentação mais ampla das decisões. É claro que o princípio em apreço não é absoluto, ele está sujeito a algumas limitações, pois há hipóteses nas quais ele pode não ser aplicado, tal como ocorre no direito estadunidense, a saber: (a) quando o caso anteriormente decidido envolver questão de direito distinto, (b) quando o escopo do caso anteriormente decidido for tão limitado que não se aplica ao caso em pauta, (c) quando os fatos do caso anteriormente decidido forem distintos daqueles a que se refere o caso atual, (d) quando a decisão anterior for rejeitada porque o princípio nela inserido – I) deve ser revogado ou II) tal decisão refletir opiniões estritamente pessoais do juiz que não podem fazer parte do dispositivo de uma decisão. (JANINI, 2005).

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Todavia, a introdução do efeito vinculante no ordenamento jurídico nacional não se deu por meio da súmula vinculante, mas por meio da Emenda Constitucional, EC, nº 3/1993, a qual ao acrescentar ao art. 102 da Constituição Federal, CF, os parágrafos 1º e 2º, posteriormente regulados pelas leis nº 9.868/1999 e nº 9.882/1999 dotou as decisões finais de mérito em sede de controle abstrato de constitucionalidade do STF com o mencionado efeito.

Apesar de tanto o conceito de súmula quanto o de efeito vinculante de certas decisões não serem novos no ordenamento jurídico nacional, foi por meio da EC nº45, de 8 de dezembro de 2004, que o conceito de súmula vinculante passou a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro. O art. 103-A acrescido por essa emenda à CF, in verbis, dispõe:

O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão e cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos do judiciário ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (Grifou-se)

Pode-se observar que a súmula vinculante, criação genuinamente brasileira (SORMANI; SANTANDER, 2008), em certo sentido pode ser compreendida como a junção do conceito de súmula com o conceito de efeito vinculante. Assim, a EC nº45/2004 constitucionalizou a ideia de súmula, passando a partir de então a coexistirem as súmulas meramente persuasivas e as súmulas vinculantes de envergadura constitucional. Consequentemente, a súmula vinculante pode ser definida como o enunciado sintético e objetivo editado tão somente pela Suprema Corte com o objetivo de uniformizar matérias constitucionais que de algum modo acarretem insegurança jurídica ou relevante multiplicação de processos acerca de questões idênticas.

Neste ponto, é importante destacar algumas das diferenças entre a súmula persuasiva e a súmula vinculante, a fim de que não haja confusão envolvendo esses dois institutos. A primeira pode ser editada por qualquer tribunal, enquanto a segunda, somente pela Corte Constitucional. Esta súmula está jungida a veicular matérias com teor constitucional, aquela pode versar sobre todo e qualquer tema. Outro traço distintivo entre elas relaciona-se ao quorum de aprovação: a súmula persuasiva ganha vida ou é modificada/cancelada quando, no âmbito do STF, a maioria absoluta dos ministros (6) que compõem o plenário assim concordam, mas por expressa disposição constitucional o mesmo somente pode ocorrer com a súmula vinculante se 2/3 dos ministros daquela casa (8) nesse sentido convergirem. Ressalte-se ainda que a súmula vinculante é dotada de um procedimento de revisão e cancelamento bem peculiar, um autônomo e outro incidental, com um rol mínimo de legitimados, sendo possível a interposição de reclamação por qualquer interessado perante o STF se for contrariada. Tanto é verdade a existência de tais diferenças que o art. 8º da EC 45/2004 prevê a possibilidade de transformação de uma súmula persuasiva em súmula vinculante, desde que respeitados os requisitos legais.

1.1- REGULAMENTAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE

Ao se ler o art.103-A da Carta Política, conclui-se que esta deixou por conta de lei ordinária a regulação de certos aspectos relacionados à súmula vinculante. Dessa forma, a lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, veio preencher o vácuo deixado pelo texto constitucional, tentando conferir maior legitimidade à atuação da súmula constitucional.

Essa lei ampliou o rol de legitimados a propor, revisar ou cancelar a súmula vinculante ao instituir que além dos legitimados indicados no art. 103 da CF, também estão aptos a fazer isso: o defensor público-geral da União, os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.

Outra inserção salutar feita pela lei nº 11.417/2006 é a possibilidade de participação do amicus curiae no procedimento de edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante. Além disso, de forma incidental, no curso de processo em que seja parte, também o Município fica legitimado a propor a súmula vinculante, mas tal fato não pode acarretar a suspensão desse processo.

Em regra, os efeitos da súmula vinculante começam a ser sentidos a partir do momento em que o enunciado é publicado na imprensa oficial. Entretanto, graças à prerrogativa de modular os efeitos temporais de suas decisões, o STF, autorizado de forma expressa pelo art. 4º dessa lei, visando ao princípio da segurança jurídica, pode fazer com que os efeitos da súmula vinculante retrotraiam no tempo ou que sejam sentidos tão somente a partir de um ponto determinado no futuro.

Ainda em relação à lei nº 11.417/2006, ela também realizou pequenas alterações na lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, visando conferir maior concretude às disposições da súmula vinculante em favor do administrado. Nesse sentido, a Administração Pública fica obrigada a motivar as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade de cada súmula constitucional ao caso concreto, bem como a adequar as futuras decisões administrativas em casos semelhantes ao enunciado desrespeitado, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas civil, administrativa e penal da autoridade que houver dado causa ao descumprimento da súmula vinculante.


2. SÚMULA VINCULANTE E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

A Carta Magna de 1988, em seu art. 2º, enuncia a existência de três poderes no Brasil, a saber: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Cada um deles exerce uma função precípua, mas eles não se limitam a ela, porquanto eles também realizam atividades, de maneira mediata, que, sob um ponto de vista bem ortodoxo, deveriam elas ser atribuídas exclusivamente aos demais poderes. Como forma de exemplificação, cita-se o fato de predominantemente caber ao Legislativo, em nível federal, a elaboração da legislação pátria e, de forma secundária, ser o responsável pela administração do pessoal pertencente aos seus quadros, além de extraordinariamente estar incumbido a realizar o julgamento político do presidente da república quando da prática de crimes de responsabilidade por este agente.

O parágrafo acima descreve um pouco daquilo que se entende como princípio da separação dos poderes nos dias atuais. Tal princípio, no momento em que é criado no ordenamento brasileiro o instituto da súmula vinculante foi, de acordo com muitos operadores do direito, violado, uma vez que esse instituto seria uma espécie de lei criada pelo judiciário. Essa criação aconteceria logo em nível constitucional, estando a Suprema Corte, nessa visão, transformada numa espécie de poder constitucional permanente. Assim, estaria o STF usurpando uma competência para a qual não teria sido legitimado.

Destaca-se, nessa direção, o posicionamento, para efeito de ilustração, de um dos críticos que assim pensa:

A súmula vinculante, além de outras sérias implicações que não comportam abordagem nas linhas deste trabalho, mitigou de forma significativa os limites da coisa julgada e impôs ao órgão jurisdicional de Superior Instância a tarefa de "dizer o direito em tese", em caráter genérico e universal, atribuição para a qual nunca esteve autorizado politicamente, carecendo de legitimação democrática, a configurar, ainda, perigoso desvio de sua missão de dizer o direito caso a caso, compondo os conflitos de interesse na exata medida de suas realidades. (MARCÃO, 2005, p.8)

Contudo, a linha de raciocínio que acabou de ser apresentada falha em perceber que não somente o Legislativo, mas também o Judiciário participa do processo de criação do direito. Portanto, é fácil reconhecer que a devida diferenciação entre o papel exercido pelo Legislativo e pelo Judiciário na criação do direito é completamente ignorada.

O professor Mauro Capelleti dissipa a confusão existente quando se tem em mente a supracitada distinção:

[...] Certamente, do ponto de vista substancial, tanto o processo judiciário quanto o legislativo resultam em criação do direito, ambos são ‘law-making processes’. Mas diverso é o modo, ou se prefere o procedimento ou estrutura, desses dois procedimentos de formação do direito, e cuida-se de diferença que merece ser sublinhada para se evitar confusões e equívocos perigosos. O bom juiz bem pode ser criativo, dinâmico e ‘ativista’ e como tal manifestar-se; no entanto, apenas o juiz ruim agiria com as formas e as modalidades do legislador, pois, a meu entender, se assim agisse deixaria simplesmente de ser juiz. (CAPELLETI, 1993, p. 74).

Exsurge, com fundamento na explanação de Capelleti, que os juízes criam sim o direito, pois na aplicação da lei, eles muitas vezes necessitam agir com criatividade para concretizar a eficácia da legislação em favor de uma das partes que compõe o conflito analisado. Entretanto, não é a criatividade que diferencia o Judiciário do Legislativo, porquanto ela se faz presente também neste poder. Desse modo, por um lado, é correto dizer que o Judiciário cria o direito; por outro lado, está incorreto pensar que o Judiciário ao agir de tal maneira estaria legislando.

A verdade é que a criação do direito por parte do judiciário está sempre calcada no caso concreto. O Legislativo por seu turno é guiado pela generalidade e pela abstração de forma fundamental. Ressalte-se que nem mesmo a criação da súmula vinculante pelo STF ex officio é capaz de configurar hipótese de elaboração de legislação pelo Judiciário, pois mesmo nessas oportunidades, a Corte Constitucional irá se manifestar sobre normas constitucionais determinadas acerca das quais exista controvérsia atual e iminente, tendo sido previamente provocada para tanto.

Não se omite a possibilidade de a súmula vinculante vir a ferir o balanço existente entre os três poderes na medida em que não se acumulam de forma taxativa todas as condições necessárias para sua elaboração, e o STF a edita (SORMANI, 2005), mas isso não significa que mesmo nesse caso ela tenha força de lei ou venha a ser considerada lei propriamente dita, porquanto tem ela base em julgados anteriormente realizados. Portanto, se, por exemplo, não houver controvérsia atual e iminente a pôr em risco a segurança jurídica ou não houver multiplicação de processos sobre questão idêntica, e ainda assim o STF vincular, em abstrato, casos futuros que venham a reclamar a aplicação de tal súmula, trata-se de desrespeito aos limites impostos à súmula vinculante pela EC 45/2004.

Merece destaque ainda a concepção moderna de separação de poderes que os compreende de forma orgânica, ou seja, sempre que eles exercerem suas funções típicas e atípicas dentro da margem de liberdade e autonomia delineadas pelo texto constitucional, o que compreende o sistema de freios e contrapesos responsável pela intervenção de um poder em outro. Destarte, não há que se falar em violação desse princípio, ou seja, há certo tempo está superada a rigidez arquitetada por Montesquieu quando da elaboração do princípio da separação dos poderes.

Nesse sentido, traz-se a lição do ilustre José Afonso da Silva que enumera as características que viabilizam a autonomia de cada poder: (a) a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não depende da confiança nem da vontade dos outros, (b) no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais, (c) por fim deve-se verificar a existência de normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito.

É importante trazer para discussão o entendimento de Rossueau segundo o qual o Legislativo quando comparado ao corpo humano seria o coração de uma nação, ou seja, teria esse poder o dever de realizar a mais nobre missão em prol da construção da justiça social buscada por um Estado. Todavia, é cediço que o Legislativo brasileiro enfrenta graves crises institucionais uma após a outra, deixando por conta do Executivo o papel de legislador que lhe caberia. Então, com um cenário pintado desse jeito, só resta ao Judiciário, de forma quase que heróica procurar restabelecer o equilíbrio e a harmonia visados pelo princípio da separação de poderes, haja vista inexistir poder no vácuo, ou seja, se um órgão perde espaço, outro rapidamente aparece para exercer o que foi deixado de ser feito.

Por meio de dois avalizados mestres, discussões travadas no parágrafo precedentes são explicadas com maior clareza:

[...] Sendo que o modelo federal exerce uma verdadeira divisão de poder soberano de base territorial, o equilíbrio constitucional não pode se manter sem a primazia da Constituição em todos os seus poderes. Com efeito, a autonomia desse modelo se traduz no fato de que o poder de decidir concretamente, em caso de conflito, quais sejam os limites que as duas ordens de poderes soberanos não podem ultrapassar, não pertence nem ao poder central (como acontece no Estado unitário, onde as coletividades territoriais menores usufruem de uma autonomia delegada) nem aos Estados Federados (como acontece no sistema confederativo), que não limita a soberania absoluta dos Estados. Esse poder pertence a uma autoridade neutral, os tribunais, aos quais é conferido o poder de revisão constitucional das leis. Eles baseiam sua autonomia no equilíbrio entre o poder central e os poderes periféricos e podem desempenhar eficazmente suas funções com a condição de que nenhuma das duas ordens de poderes conflitantes prevaleça de modo decisivo. Para dar força às decisões judiciárias provêem ora os Estados federados, ora o Governo central, que as sustentam todas as vezes que convergem com os respectivos interesses. Portanto, somente em virtude das próprias decisões o Poder Judiciário é capaz de restabelecer o equilíbrio entre os poderes, definido pela constituição (sic). (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2001, p. 481).

[...] Bem, fechado o parêntese, era meio óbvio que algum órgão acabaria ocupando o monumental vácuo de poder deixado pela quase completa irrelevância prática de nosso Poder Legislativo. Justamente esse Poder, que deveria ser o mais nobre e prestigiado em uma democracia, no Brasil é praticamente um não-poder, um amontoado de interesses fisiológicos, ou de interesses de outras naturezas, ainda piores, que vive a reboque do Executivo, o qual legisla continuamente por meio de medidas provisórias, simplesmente chanceladas pelos parlamentares, muitas vezes em troca de favores, confessáveis, ou não [...]. (ALEXANDRINO, 2008, p.4).

Ademais, cabe afastar de plano que a súmula vinculante procura limitar ou de alguma forma impõe qualquer sorte de limite no que diz respeito à atuação do Legislativo em relação à sua atividade precípua. Ela somente vincula esse poder quando ele atua em suas funções secundárias. Tanto é verdade que a súmula constitucional não usurpa a competência legislativa, que se reconhece pacificamente a possibilidade de, a qualquer tempo, esse poder emanar lei dispondo em sentido contrário ao sumulado, desde que reste respeitado o ordenamento jurídico em vigor, por óbvio.

Ao se ponderar racional e cuidadosamente todos os pontos abordados neste tópico sobre a relação existente entre a súmula constitucional e o princípio da separação dos poderes, forçoso é reconhecer que ela, desde que respeitados os limites e condições impostos para sua elaboração, não macula sob qualquer ângulo o princípio em tela. A função essencial do poder judiciário é promover a pacificação social, e como guardiã da constituição, a Corte Suprema tem a obrigação de emanar orientações que balizem de forma precisa o que se deve entender por consentâneo com a disciplina constitucional ou não. O ex-ministro dessa corte, Evandro Lins e Silva, em 1996, já deixava claro ser óbvio que não apenas as Súmulas (na época existiam apenas as persuasivas), como as decisões do Supremo, em tema constitucional, possuem efeito vinculante, sendo a constituição o que a Corte Suprema diz que ela é.

Abraçar entendimento distinto em relação a isso, data máxima venia aos posicionamentos em contrário, é propiciar meios para que entendimentos retrógrados deem ensejo a recursos meramente protelatórios em desfavor, na maior parte das causas, daqueles que mais necessitam de uma atuação altiva do Judiciário por este se ver desprovido de um meio mais efetivo a impor firme atuação, sem desrespeitar a Constituição Republicana.

Sobre o autor
Gabriel Dias Lima

Analista Administrativo. Licenciado em língua inglesa e respectiva literatura pela Universidade de Brasília (UnB).Especialista em Direito Público pelo grupo educacional Fortium

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gabriel Dias. Súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2267, 15 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13503. Acesso em: 18 dez. 2024.

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