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Dinâmica social das tecnologias da informação:

processos de fragmentação e reaglutinação das identidades culturais

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Agenda 13/10/2009 às 00:00

4. Pluralidade ou fragmentação das identidades culturais na pós-modernidade

Como estágio final desse trabalho, abordaremos as conseqüências sócio-culturais decorrentes do surgimento das comunidades virtuais, em termos de formação de identidades individuais. A partir do momento em que as pessoas se reúnem em grupos sociais, através de um suporte tecnológico que lhes possibilite compartilhar interesses comuns (comunicação interativa), experimentam práticas culturais específicas que constitui a chamada cibercultura [29]. As comunidades virtuais, ao mesmo tempo em que permitem uma maior aproximação entre as pessoas de todo o mundo, propiciam a que elas encontrem satisfações individualizadoras, focando suas relações com outros indivíduos com quem guardem vocações identitárias. Como descreve Cynthia H. Watanabe Corrêa:

"O fato curioso e até paradoxal desse período é que, embora a sociedade esteja conectada mundialmente via redes de computador e o próprio contato ou interação social possa acontecer em intervalos de segundos, o homem cada vez mais sente a necessidade de se integrar a grupos sociais, de se envolver com pessoas que compartilhem algo comum, com as quais tenha certa identificação, enfim, há um retorno à busca de características que lhe forneçam uma identidade, uma forma de se fazer reconhecer diante de outros" [30].

Guattari já analisava o processo de subjetivação operado pelas novas tecnologias de comunicação. Para ele, elas apontam para um movimento duplo e simultâneo, de "homogeneização universalizante e reducionista da subjetividade e uma tendência heterogenética, quer dizer, um reforço da heterogeneidade e da singularização de seus componentes" [31]. Bauman destacou que esse paradoxo é um dos efeitos do processo de globalização, que produz "guerras de identificação":

"A busca frenética por identidade não é um resíduo dos tempos pré-globalização que ainda não foi totalmente extirpado, que tende a se tornar extinto conforme a globalização avança; ele é, pelo contrário, o efeito colateral e o subproduto da combinação das pressões globalizantes e individualizadoras e das tensões que elas geram. As guerras de identificação não são nem contrárias nem estão no caminho da tendência globalizante: são crias legítimas e companhias naturais da globalização, e, longe de deter sua marcha, lubrificam suas rodas" [32].

Esse paradoxo de forças de aglutinação cultural com bases cada vez mais "locais" em um mundo estruturado por processos cada vez mais globais, também foi observado por Manuel Castells. Segundo ele, esse retorno à identificação cultural [33] singular pode ser explicado como um movimento defensivo, de reação à homogeneização cultural provocada pela globalização. A formação de redes e flexibilidade nos contatos interpessoais, "tornam praticamente indistintas as fronteiras da participação de envolvimento", atomizando os vínculos pessoais, daí a necessidade de as pessoas se agarrarem a suas referências culturais, "recorrendo à sua memória histórica". A construção da identidade na sociedade em rede, segundo Castells, passa pela formação das "comunas culturais da era da informação", que têm forte cunho religioso ou apelo a significados de nacionalidade, como "reações defensivas contra as condições impostas pela desordem global e pelas transformações, incontroláveis e em ritmo acelerado". Abaixo segue trecho do que ele diz sobre esse aspecto da formação cultural defensiva:

"Para os atores sociais excluídos ou que tenham oferecido resistência à individualização da identidade relacionada à vida nas redes globais de riqueza e poder, as comunas culturais de cunho religioso, nacional ou territorial parecem ser a principal alternativa para a construção de significados em nossa sociedade. Essas comunas culturais são caracterizadas por três principais traços distintivos. Aparecem como reações a tendências sociais predominantes, às quais opõem resistência em defesa de fontes autônomas de significado. Desde o princípio, constituem identidades defensivas que servem de refúgio e são fontes de solidariedade, como forma de proteção contra um mundo externo hostil. São construídas culturalmente, isto é, organizadas em torno de um conjunto específico de valores cujo significado e uso compartilhado são marcados por códigos específicos de auto-identificação: a comunidade de fiéis, os ícones do nacionalismo, a geografia do local".

E continua mais adiante:

"Tais reações defensivas tornam-se fontes de significado e identidade ao construírem novos códigos culturais a partir da matéria-prima fornecida pela história. Devido ao fato de que os novos processos de dominação aos quais as pessoas reagem estão embutidos nos fluxos de informação, a construção da autonomia tem de se fundamentar nos fluxos reversos de informação. Deus, a nação, a família e a comunidade fornecerão códigos eternos, inquebrantáveis, em torno dos quais uma contra-ofensiva será lançada contra a cultura da realidade virtual. A verdade eterna não pode ser virtualizada. Ela está incorporada em nós. Assim, contra a informacionalização da cultura, os corpos são informacionalizados. Quer dizer, os indivíduos carregam os seus deuses no coração. Não raciocinam, acreditam. São a manifestação corpórea dos valores eternos de Deus e, como tal, não podem ser dissolvidos, perdidos em meio ao turbilhão dos fluxos de informação e das redes inter-organizacionais" [34].

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Stuart Hall, da mesma maneira, enxergou esse antagonismo da construção de identidades singulares num mundo pós-globalização, mas alertando que se trata de um fenômeno típico da pós-modernidade, em que as identidades estão sendo fragmentadas ou "descentradas" [35]. A globalização, que produz a extração das relações sociais dos contextos locais de interação e sua reestruturação ao longo de escalas indefinidas de espaço-tempo, teria promovido um impacto sobre a identidade cultural, desarticulando as identidades estáveis do passado e abrindo possibilidades para novas articulações sociais: a criação de novas identidades. Na nova sociedade, as pessoas não passariam a ser identificadas por apenas uma categoria identitária, ligada à classe social ou ao sentimento de nacionalidade. As identidades culturais nacionais, explica ele, é que estão sendo mais duramente afetadas ou "deslocadas" pelo processo de globalização. As culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. "A nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a "nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades" [36]. As identidades nacionais, que foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, estão sendo agora deslocadas pelo processo de globalização. As culturas nacionais, que dominaram o período da modernidade como expressão de uma identidade unificada (cultura de "um único povo"), estão perdendo a importância diante de outras fontes, mais particularistas, de identificação cultural. "Uma maior interdependência global está levando ao colapso de todas as identidades culturais fortes" e está produzindo a fragmentação de códigos culturais, uma multiplicidade de estilos, o "pluralismo cultural". "À medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural" [37].

Além de evidenciar a diminuição do sentimento de nacionalidade como base única (ou principal) da construção identitária, Hall também enfatiza, como fizeram outros autores, a tensão entre o "global" e o "local" na transformação das identidades. Se, por um lado, há uma tendência em direção à homogeneização cultural (global), "há também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da alteridade" [38]. Ele explica que a "globalização" é sobretudo um fenômeno ocidental, um processo de "ocidentalização", consistente na exportação dos produtos e valores ocidentais para o restante do mundo. O processo de homogeneização cultural é produzido, portanto, pelas "indústrias culturais das sociedades ocidentais" [39]. Mas ao lado da homogeneização cultural, também se verifica um fortalecimento das identidades "locais" (comunitárias). Embora possa ser aparentemente contraditório, a globalização promove da mesma forma uma produção de novas identidades. Na verdade, não é propriamente um processo de formação de novas identidades, mas de re-identificação com as culturas de origem, com sentimentos religiosos e outras formas de particularismos. Conquanto o processo de "globalização" indicasse inicialmente que o apego ao local e ao particular daria gradualmente vez a valores e identidades mais universalistas e cosmopolitas ou universais, ocorreu uma virada bastante inesperada dos acontecimentos. A globalização resulta na produção de novas identidades "globais" e novas identificações "locais", de forma simultânea.

A exemplo de Castells, Stuart Hall também aponta no ressurgimento ou reforço das identidades particularistas uma forma de resistência ao processo de globalização. Só que, como a globalização nada mais é do que uma "ocidentalização", a reação ocorre em relação aos valores da cultura capitalista ocidental. Ele não deixa de concluir, no entanto, que, na pós-modernidade (que ele também chama de modernidade tardia), o mundo caminha não para uma divisão estanque entre formas identitárias de conotações e origens diferentes, mas para um hibridismo cultural, no sentido de que as pessoas passam pertencer a diferentes culturas ou culturas híbridas. Sobre a globalização, ele diz que "ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou trans-históricas" [40]. O hibridismo, consistente na fusão entre diferentes tradições culturais, produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia, é fruto "desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizante" [41].


5.

O desenvolvimento de comunidades virtuais segue essa tendência da pós-modernidade, de deslocamento cultural, de fragmentação identitária, com abertura de possibilidades de construção de novas e múltiplas identidades. Como as estruturas comunicativas da rede permitem a uma pessoa relacionar-se com outras situadas a uma grande distância, isso possibilita a que ela seja confrontada com uma diferente gama de culturas e escolher aquelas com as quais mais se identifique. É nesse contexto de perda das referências exclusivamente físicas, que os indivíduos buscam se relacionar com seus semelhantes, selecionando suas marcas identitárias.

Historicamente, o homem sempre sentiu a necessidade de se integrar a grupos sociais, de se envolver com pessoas com quem compartilhe algo em comum, com as quais tenha certa identificação. Esse mecanismo de agregação social guiado pela busca de afinidades permanece no âmbito do ciberespaço, apenas com algumas características próprias decorrentes da natureza das interações nos ambientes desmaterializados. Antecedentemente à introdução das tecnologias da informação no cotidiano da vida das pessoas, a construção de identidades culturais ficava quase sempre presa a limitações decorrentes dos fatores geográficos. Era uma espécie de "processo impositivo", tendo em vista que o indivíduo ficava preso a desenvolver laços sociais com as pessoas que trabalhavam ou viviam na mesma localidade (território físico), tendo que aderir aos símbolos sociais e significações culturais compartilhados pela comunidade geográfica. Sem instrumentos tecnológicos que possibilitassem uma comunicação além dos limites geográficos de sua comunidade original, terminava refém da localidade no processo de formação da sua identidade cultural. Com a aproximação das pessoas por meio das tecnologias comunicativas, elas passaram a poder desenvolver suas relações sociais e construir suas identificações culturais seguindo o critério da eletividade, no sentido que são livres para escolher a que comunidade virtual ou grupo de pessoas se vincular, mesmo que estas estejam muito distantes do ponto de vista geográfico.

O professor Marcos Palácios já destacava a eletividade como sinal distintivo das comunidades virtuais, em relação às comunidades tradicionais (de base territorial), ao explicar que o sentimento de "pertencimento" no ciberespaço não está associado a um território geográfico. Nas comunidades antecessoras ao processo de interconectividade global, o sentimento de "pertencimento" estava indissoluvelmente associado ao território concreto. No ciberespaço, esse sentimento se prende à própria comunidade em si, aos interesses que os integrantes têm nos assuntos em comum. Segundo Palácios, tratando-se de ambientes desmaterializados, existe uma eletividade do pertencimento, no sentido de que é possível escolher a comunidade da qual se quer fazer parte. "O indivíduo só pertence se, quando e por quanto tempo estiver, efetivamente, interessado em fazê-lo" [42].

O aspecto eletivo da busca de novas características identitárias na sociedade em rede, a partir da formação de comunidades virtuais, constitui efetivamente uma das notas distintivas em relação às comunidades tradicionais (desconectadas). Alguns autores já qualificaram esse novo processo de integração social como "privatização da sociabilidade", que caracterizaria a integração social mais fortemente marcada pelo elemento eletivo na aproximação das pessoas. Nas comunidades virtuais, os indivíduos constroem laços sociais com base em identificações; fazem escolhas guiadas por semelhanças de idéias e sentimentos com os demais membros da comunidade. Quem destaca bem essa particularidade da "sociabilidade virtual" é Cynthia Watanabe Corrêa, que aponta a circunstância de que as comunidades virtuais surgem de forma espontânea, quando se estabelecem agrupamentos em torno de afinidades:

"O indivíduo não é obrigado a integrar determinada comunidade, a motivação é individual, é eletiva, subjetiva. Essa possibilidade de optar por traços de identificação é o que a diferencia do modelo tradicional de atribuição de identidades culturais, como o caso da identidade nacional, em que todo um povo era obrigado a aderir a determinados símbolos nacionais, como hino e bandeira, e a manter vínculos a lugares, datas comemorativas, histórias e a tradições específicas, por exemplo.

Na comunidade virtual, o indivíduo escolhe, elege qual comunidade quer fazer parte, sendo a principal motivação seu interesse particular em um ou mais assuntos em que percebe uma identificação e encontra pessoas com quem possa compartilhar idéias e promover discussões públicas, uma vez que a interação mútua, relação recíproca que ocorre entre as pessoas mediadas pelo computador, é fundamental para o estabelecimento e consolidação de comunidades virtuais" [43].

A tecnologia influencia as formas de sociabilidade, como se constata. A utilização das tecnologias da informação provoca mudanças na interação entre as pessoas, fazendo surgir novos meios de sociabilidade, diferentes em alguns aspectos, porém semelhantes em outros, com os agrupamentos sociais antigos. Acima foram evidenciadas duas marcas que distinguem as comunidades virtuais de seus antigos padrões off-line, quais sejam, o deslocamento do sentimento de pertencimento do espaço territorial (lugar físico) e a eletividade na formação dos grupos de interesses. Mas ainda podemos citar uma terceira, consistente na pluralização das identidades nos ambientes virtuais.

Sem estarem mais submetidas a limitações geográficas, em razão do encurtamento das distâncias (noção de espaço-tempo) proporcionado pelas tecnologias comunicativas, as pessoas optam por pertencer a uma ou outra comunidade, mas essa facilidade também leva a que terminem por pertencer a diversas aglutinações sociais. No ciberespaço, é comum a pessoa participar de várias comunidades, ligando-se a vários e separados grupos ou movimentos sociais, dos mais diversos matizes ideológicos, políticos ou econômicos. Trata-se de outra consequência ou desdobramento da universalização da informação e facilidade de comunicação. Encontrando traços identitários em mais de uma comunidade, pela existência de interesse em determinados assuntos, o internauta tende a se aproximar e participar efetivamente de mais de um desses novos agenciamentos da sociedade interconectada. "O indivíduo, ao se inserir em comunidades virtuais, busca na realidade traços de identificação e não uma identidade única. Assim, um mesmo indivíduo pode fazer parte de diversas comunidades, dependendo de seu grau de interesse, adotando uma "pluralização" de identidades, quando a hibridização cultural acontece na prática" [44]. Ocorre uma "potencialização" da capacidade de relacionamentos que um sujeito pode estabelecer no ciberespaço, já que pode se engajar em grupos sociais e fazer parte de quantas comunidades desejar. Portanto, não é sem razão afirmar que a sociabilidade, nos ambientes das redes informáticas, se apóia sobre múltiplas "identificações".

Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. Dinâmica social das tecnologias da informação:: processos de fragmentação e reaglutinação das identidades culturais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2295, 13 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13674. Acesso em: 22 dez. 2024.

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