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A crise do Poder Judiciário.

Breves reflexões a partir do contraponto entre países centrais e semi-periféricos

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Agenda 23/10/2009 às 00:00

IV. O PODER JUDICIÁRIO NOS PAÍSES SEMI-PERIFÉRICOS

Até agora, este ensaio se preocupou com a evolução e crise do Judiciário nos países centrais, em que os paradigmas liberal e social representaram, de fato, uma realidade.

Nesta parte da análise, porém, a ideia é retratar a situação do Poder Judiciário nos países semi-periféricos, partindo da necessidade de demonstrar que grande parte do discurso até aqui verificado não se aplica aos chamados países de modernidade tardia.

Como escreve Mauro Cappelletti [75] ao abordar a temática dos juízes, a responsabilidade judicial constitui conceitos carregados de implicações valorativas, refletindo uma determinada relação do sujeito (e do juiz em particular) com os valores sociais, valores esses que não são os mesmos em todas as sociedades: mudam de tempo para tempo, de lugar para lugar.

4.1. O Poder Judiciário e os países semi-periféricos

De pronto, é preciso discorrer acerca do que se entende por países semi-periféricos, sendo importante a contribuição dos franceses Bertrand Badie e Guy Hermet [76] sobre o tema.

Segundo tais autores [77], os últimos séculos têm sido marcados pela crescente homogeneização dos âmbitos políticos. Em lugar de se reproduzir isoladamente, os modelos de governo circulam e as relações internacionais propiciam a formação de um código comum para todos os autores do sistema internacional. Os resultados mais evidentes disso são a mundialização da palavra "Estado", sua participação como ator fundamental das relações internacionais e a universalização de alguns aspectos da prática estatal.

A isto se agregam as consequências das relações de dependência – econômica, política e militar – cujo efeito é o de construir ao sul os estados chamados "periféricos" [78].

Tais países se estruturam como se sobre eles devessem se estabelecer as relações de dependência que unem os estados hegemônicos. Mas, a dependência proporciona a territorialização dos âmbitos políticos, a construção de um centro de poder e a formação de estruturas burocráticas, embora, por outro lado, contribuam para limitar a soberania do Estado, a constituição de uma sociedade civil diferenciada e estrutura e o estabelecimento de fórmulas de legitimação bastante sólidas. Isso não ocorre com os países periféricos, que apresentam uma cultura que não tem a menor afinidade com a concepção estatal da ordem política aqui vista.

O Estado periférico, pois, se expõe à perda da legitimidade ao mesmo tempo em que se arrisca a fracassar em seus intentos de penetrar nos âmbitos sociais por não ser atendido, nem compreendido.

Ainda, aduzem Badie e Hermet que o Estado periférico, pende entre duas lógicas: uma "dinâmica externa", que sustenta as relações de dependência e submete seu funcionamento às exigências internacionais, e uma "dinâmica interna", cujo objetivo é evitar a perigosa degradação das relações entre governantes e governados.

A possibilidade e conciliação entre as duas dinâmicas é algo custoso, que põe em perigo a introdução nas sociedades periféricas de um modelo estatal importado.

Com efeito, escrevem os autores que quando o modelo estatal se desvincula da história de que provém e se direciona para outras histórias, não encontra nestas, elementos que o definam. Exemplificando, dizem que a construção do Estado está relacionada com uma história marcada pela decadência da sociedade feudal, a crise do poder senhoril e o reforço dos recursos do centro dinástico.

Já as sociedades dependentes vivem uma história que se orienta em sentido contrário, marcada pela debilitação do poder central, debilitada ou deslegitimada quando tem que se despojar da tutela das grandes potências, precária e com escassos recursos, por ter sido resultado de um problema de descolonização.

Tratam-se, pois, de nações órfãs de modelo, ao contrário dos países centrais, como os europeus, que chegam a poder, inclusive, visualizar uma crise de paradigma.

Retomando a ideia de que os países semi-periféricos se caracterizam por "importar" um modelo estatal, é relevante a colocação de Badie e Hermet [79] quando afirmam que essa importação não se deve somente à consequência de um sistema mantido por uma ordem internacional que reproduza uma estrutura de domínio, mas também é o resultado de um elenco de atores, que é o de "construtores de Estado", inclinados a realizar esta importação devido a seu perfil social e a seus interesses.

Quanto à natureza do sistema político nas sociedades periféricas (ou em desenvolvimento), Badie e Hermet [80], tomando por empréstimo a doutrina de Weber, se utilizam do conceito de neopatrimonialismo.

Aduzem que a hipótese de neopatrimonialismo parte da categoria weberiana do patrimonialismo, descrevendo um modo de domínio tradicional, exercido pelo príncipe em virtude de um direito pessoal absoluto. A atuação desta elite consiste em assegurar o monopólio da representação e controlar em seu benefício o processo de modernização econômica.

O estabelecimento desta lógica neopatrimonialista se explica graças à combinação de um duplo efeito das sociedades em desenvolvimento: a valorização excessiva de alguns recursos políticos e a escassa mobilização social.

A valorização excessiva de alguns recursos políticos proporciona a estreita e hegemônica aliança entre o príncipe e a burocracia.

Já a escassa mobilização social indica que a força das resistências comunitárias, ou seja, do comportamento do indivíduo com o grupo a que pertence de maneira natural – a família, o clã, a aldeia ou a tribo – tem como efeito a manutenção de formas tradicionais de autoridade na periferia e uma estrutura muito segmentada da sociedade, o que dificulta a colisão de interesses e de classes [81].

Badie e Hermet [82], por fim, aduzem que o neopatrimonialismo pesa sobre as condições de funcionamento das instâncias político-administrativas. Há um excesso burocrático.

Tal excesso produz um círculo vicioso: desde a perspectiva da modernização, obtém da sociedade os atores que possam empreender uma obra de desenvolvimento econômico, desde o ponto de vista do funcionamento interno da burocracia, provoca a ineficácia e a irracionalidade, ao multiplicar os papeis, a dar a cada um vários titulares ou quando provoca conflitos de competência e atribuição. De outro lado, o aumento incontrolado do número de funcionários, no contexto de uma economia precária, agrava as condições de remuneração dos agentes e, por consequência, provoca um descontentamento latente, e gera corrupção [83].

O que se mostra realmente interessante do cenário descrito acima, é que o mesmo representa os países semi-periféricos sob o ponto de vista de teóricos pertencentes aos países centrais.

A fim de completar a descrição, contudo, vale relatar o que pensa o sociólogo José Eduardo Faria [84], que desenvolve estudo sobre a crise brasileira contemporânea e seus reflexos sobre o Poder Judiciário.

Como aduz o autor [85], desde os anos 70 o Brasil tem sido descrito como uma sociedade industrializada e predominantemente urbana, em cujo âmbito parte do operariado industrial, as classes médias assalariadas e alguns segmentos de trabalhadores rurais, já atingiram um nível mínimo de organização e mobilização na defesa de seus direitos e interesses.

Trata-se, no entanto, de uma sociedade tensa e explosiva, estigmatizada por indicadores sócio-econômicos perversos. Tais indicadores, se por um lado revelam a existência de um dualismo estrutural básico, expresso pelo contraste entre uma pobreza urbana massiva e alguns bolsões de riqueza, por outro são consequência de três grandes crises estruturais.

No plano sócio-econômico, uma crise de hegemonia dos setores dominantes; no plano político, uma crise de legitimação do regime representativo [86]; e, no plano jurídico-institucional, uma crise da própria matriz organizacional do Estado brasileiro, na medida em que este parece ter atingido o limite de sua flexibilidade na imposição de um modelo simultaneamente centralizador e corporativo, cooptador e concessivo, intervencionista e atomizador, quer dos conflitos sociais, quer das próprias contradições econômicas.

Feitas tais considerações, estritamente sob o ponto de vista sociológico, é possível então, enfrentar diretamente a problemática do Poder Judiciário.

Nas sábias palavras de Boaventura de Sousa Santos e outros [87], o nível de desenvolvimento econômico e social afeta o desempenho dos tribunais por duas vias principais. Por um lado, o nível de desenvolvimento condiciona o tipo e o grau de litigiosidade social e, portanto, de litigiosidade judicial. Por outro, embora não se possa estabelecer uma correlação linear entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento político, os sistemas políticos nos países menos desenvolvidos ou de desenvolvimento intermédio têm sido, em geral, muito instáveis, com períodos mais ou menos longos de ditadura alternados com períodos mais ou menos curtos de democracia.

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De outra feita, é preciso considerar também uma simples questão histórica, que impede que tais países (de modernidade tardia, ou semi-periféricos) tenham acompanhado a evolução estatal ocorrida nos países centrais.

Como bem colocam Boaventura de Sousa Santos e outros [88], enquanto as nações desenvolvidas experimentavam o modelo liberal, muitos países ainda eram colônias (como os africanos) e outros estavam recentemente conquistando sua independências (como os latino-americanos).

A despeito da questão temporal (ou histórica) é fundamental a referência de que, embora, a maioria das Constituições dos países semi-periféricos tragam, em seu bojo a caracterização de Estados do Bem-Estar Social (como é o caso da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), não é possível afirmar que foi ultrapassado o modelo liberal.

Dito de outro modo, se o Estado-Providência se propõe a ser um Estado que promova tratamento igualitário, melhores condições de trabalho, horas de lazer e descanso, e assim por diante, basta uma breve constatação das desigualdades existentes nos países de modernidade tardia, como o Brasil, para constatar que ainda não se alcançou aquele paradigma.

Nesse sentido, dissertam Boaventura de Sousa Santos e outros [89]:

As sociedades periféricas e semiperiféricas caracterizam-se em geral por chocantes desigualdades sociais que mal são mitigadas pelos direitos sociais econômicos, os quais, ou não existem, ou, se existem, têm uma deficientíssima aplicação. Aliás, os próprios direitos da primeira geração, os direitos cívicos e políticos, têm uma vigência precária, fruto da grande instabilidade política em que têm vivido esses países, preenchida com longos períodos de ditadura.

E são justamente esses períodos de ditadura que fazem com que o tratamento dispensado à independência dos tribunais seja diferenciado em relação aos países centrais, que já experimentaram três momentos bem distintos de democracia.

Se ainda é vivenciado, nos países semi-periféricos, o paradigma estatal liberal (enquanto estrutura de Estado), é preciso recorrer ao papel do Judiciário naquele período, consoante já examinado acima.

De fato, viu-se que no liberalismo o poder político dos tribunais foi neutralizado por certas redes de dependência.

Boaventura de Sousa Santos e outros [90] destacam três dessas redes: o princípio da legalidade que conduz à subsunção lógico-formal confinada à microlitigação; o caráter reativo dos tribunais, que os torna dependentes da procura dos cidadãos; e a dependência orçamental e administrativa em relação ao Poder Executivo e ao Legislativo.

Em nome da independência e imparcialidade, assim, o papel do Poder Judiciário é completamente diminuído na realidade enfrentada pelos países de modernidade tardia que, frise-se, ainda não vivenciaram o modelo de Estado-Providência, já em crise nos países centrais.

Logo, tomando tais elementos como premissa, o presente estudo não escapa à análise da crise vivenciada pelo Poder Judiciário nos países semi-periféricos.

Esta última parte da análise terá como fundamento teórico obra de autoria do Professor Álvaro Filipe Oxley da Rocha, intitulada "Sociologia do Direito. A magistratura no espelho" [91], que se ocupa em fazer uma abordagem sociológica do Poder Judiciário, mais especificamente, da magistratura, sendo uma das poucas literaturas existentes sobre o tema.

A ideia é trabalhar a crise do Judiciário sob um enfoque real ou, melhor dito, que corresponda à realidade dos países semi-periféricos, mais detidamente, ao caso brasileiro. Assim, depois de apresentadas as diversas crise estatais e, consequentemente o problema do Judiciário, não seria científico deixar de abordar a real situação vivenciada pelos países de modernidade tardia, a qual, efetivamente, não condiz com os países centrais, que já estão experimentando um terceiro momento, o da crise do Estado-Providência – Estado esse que sequer foi alcançado em terras brasileiras.

Frise-se, por oportuno, que quando se faz referência à crise do Judiciário, tem-se consciência de que esta, na esteira de Remi Lenoir [92], não se refere apenas aos problemas enfrentados pela magistratura, porquanto existem também outros responsáveis pelas dificuldades a serem aqui enfrentadas, tais como os policiais civis e militares.

No entanto, dado o caráter sintético e monográfico do trabalho e mais, com base nas próprias palavras de Lenoir [93], que justifica o fato de se identificar crise do Judiciário com crise da magistratura em razão da posição de superioridade que esta classe assume perante a sociedade, é que nessa análise será enfocada, privilegiadamente, a crise do Judiciário através dos magistrados, preocupando-se, outrossim, com as "prováveis" causas identificadas pelos próprios magistrados para identificar a crise.

Sob outro prisma, mas também valorizando a necessária abordagem da crise do Poder Judiciário através dos juízes, Boaventura de Sousa Santos [94] se refere à importância dada pela sociologia jurídica àquilo que chamou de "sociologia dos tribunais".

Disserta Santos que o interesse da sociologia pelo processo e pelos tribunais é constituído pela eclosão, na década de 60, da chamada crise da administração da justiça. As lutas sociais aceleraram a transformação do Estado Liberal no Estado-Providência, um Estado ativamente envolvido na gestão dos conflitos e concertações entre classes e grupos sociais, e apostado na minimização possível das desigualdades sociais. Surgiram, assim, novos conflitos e, com isso, uma ampliação do papel do Poder Judiciário.

A consequência dessa explosão de litigiosidade trouxe a discussão de temas polêmicos no âmbito jurisdicional, tais como o acesso à justiça, sua administração e a organização de pessoal, incluindo, por óbvio, os protagonistas desse Poder – os magistrados.

E é com base em todos os argumentos até aqui expendidos, que se justifica a opção desse estudo pela análise do enfoque da crise do Judiciário através dos juízes.

Por oportuno, ainda antes de adentrar na "crise do Judiciário", é mister entender alguns conceitos que estão na base da obra do Professor Álvaro da Rocha – que, conforme ressaltado, será referência na pesquisa em tela –, trazidos pelo teórico francês Pierre Bourdieu.

4.2. As necessárias noções de campo e habitus jurídico

Para entender a crise do Poder Judiciário e, mais detidamente da magistratura em países de modernidade tardia como o Brasil, se faz importante investigar, muito brevemente, as noções de campo e habitus jurídico trazidas pelo autor Pierre Bourdieu.

Com efeito, o campo jurídico, no dizer de Bourdieu [95], é o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, no qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica, que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legitima, justa, do mundo social. É com esta condição que se podem dar razões quer da autonomia relativa do Direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento, que resulta da ilusão da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas.

Na verdade, verifica-se que o campo, em Bordieu, é um espaço social que é criado na medida em que existem grupos com uma certa relação entre si. Todo campo social é formado por legitimação intelectual e, portanto, não se discute a legitimidade do próprio campo. O discurso do campo sempre será o discurso da visão fechado do campo.

E assim, retomando o campo jurídico, nas palavras de Álvaro da Rocha [96], aquele se estrutura em torno da concorrência pelo monopólio de dizer o direito. De fato, os concorrentes, dentro do campo, se reconhecem por esse monopólio, que estabelece uma relação de competição gerando um desgaste e um atrito dentro do campo, embora nenhum deles coloque em cheque a validade e a existência do campo, visto que da existência desse depende, muitas vezes, a própria sobrevivência do agente.

Os juristas, assim, convivem dentro de um campo e concorrem pelo monopólio de dizer o direito.

Mas, não basta a consciência da noção de campo jurídico. É preciso também conhecer o habitus em Bordieu. Com efeito, o habitus representa a incorporação de um sistema de crenças.

No dizer de Álvaro da Rocha [97], a noção de habitus aponta para uma explicação do comportamento dos agentes em relação ao campo ou de que modo os mesmo assumem as posturas adequadas à manutenção desse, reinterpretando o mundo dentro da lógica que o estrutura.

Mais especificamente no que tange ao conceito de habitus, trazido por Bourdieu [98], o teórico francês afirma que é aquilo que se adquiriu, mas que se encarnou no corpo de forma durável, sob a forma de disposições permanentes.

O habitus é um produto dos condicionamentos, mas introduzindo neles uma transformação: é uma espécie de máquina transformadora, que faz com que nós "reproduzamos" as condições sociais de nossa própria produção, mas de uma maneira relativamente imprevisível, de uma maneira tal que não se pode passar simplesmente e mecanicamente do conhecimento das condições de produção ao conhecimento dos produtos.

Apresentadas assim, as definições de campo jurídico e habitus em Bourdieu, se faz agora relevante analisar os principais elementos que apoiam o habitus judicial e contribuem para o que se pode chamar de "mordomias" do Judiciário.

4.3. Elementos que apoiam o habitus judicial e as "mordomias"

Álvaro da Rocha [99] sustenta que alguns elementos são relevantes no sentido de fundamentar o habitus dentro do campo jurídico: a linguagem jurídica, a retribuição econômica e a oposição entre juízes e outros juristas.

Aqui, entretanto, se trabalhará com apenas um desses elementos, entendido como responsável por aquilo que se chamou de "mordomias" – a retribuição econômica. Os demais serão entendidos como causas para a crise e, assim, objeto de análise a seguir.

Álvaro da Rocha [100] remete à Bourdieu para afirmar que, no que tange aos salários ditos privilegiados da magistratura, é preciso ter presente a noção de "lucros da universalização", no sentido de retribuição buscada pelos agentes do Estado em troca de sua submissão ao interesse coletivo.

A importância dos lucros da universalização, ou das altas remunerações pagas pelo Estado está no "interesse pelo desinteresse". Como sustenta Rocha [101], a posição oficial é a de que, para evitar que apenas pessoas privilegiadas economicamente assumam estes cargos, o que é pouco provável, ou que ocorra o mais provável, ou seja, que venha a ressurgir oficialmente a venalidade dos serviços judiciais, o Estado toma a seu cargo a manutenção destes agentes. Assim, a retribuição prometida a este agentes tem origem e fundamentação no Estado, e tem uma dupla natureza: material e simbólica.

É preciso ainda acrescentar, que, além da retribuição econômica, também as garantias constitucionais conferidas aos magistrados se incluem na categoria de "mordomias" que apoiam o habitus. São a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos.

Retomando várias linhas anteriores, verifica-se, ao falar do Judiciário nos países semi-periféricos, que este ainda vivia atrelado a uma rede de dependências que o neutralizavam politicamente.

Pois tais "mordomias" têm justamente a função de torná-los neutros, ou independentes de pressões externas. Mas, obviamente que tal situação não é vista de modo tão tranquilo como possa parecer porquanto, na realidade, diversos juízes, ao exercerem seu oficio, não conseguem se manter desatrelados nos problemas sócio-econômicos que infestam a sociedade. Nesse caso, são compelidos a justificar os problemas sofridos pelo Judiciário, os quais denominam de crises, através de diversas "causas".

4.4. As prováveis causas da crise

Álvaro da Rocha, em sua pesquisa, calcada em diversas entrevistas com magistrados, encontra algumas prováveis causas para a crise, fruto de apontamentos trazidos justamente por aqueles profissionais, que a seguir serão examinadas.

4.4.1. A oposição entre juízes e outros profissionais

O autor retrata a dificuldade que enfrentam os magistrados em se relacionarem com outros membros do campo jurídico, citando o impacto da convivência entre juízes tradicionais e juízes alternativos, juízes e advogados, juízes de carreira e juízes do quinto constitucional, e juízes e representantes do Ministério Público.

O primeiro obstáculo, entre juízes tradicionais e juízes alternativos, reside nos diferentes comportamentos desses dois segmentos em face da lei. Como disserta Álvaro da Rocha [102], o juiz, diante de um texto de lei a ser aplicado, pode ter duas atitudes: uma tradicionalmente conservadora, insensível às novas demandas sociais, e outra atenta às mudanças de seu tempo, agindo politicamente, opinando sobre o conteúdo da lei que aplica e buscando adaptar sua interpretação para produzir decisões que melhor atendam as demandas sociais. Este é o juiz "alternativo", ao passo que aquele é o juiz "tradicional".

Quanto à dificuldade de convivência entre juízes e advogados, esta também se mostra como algo que emperra o desenvolvimento do Poder Judiciário porquanto, como os advogados não recebem remuneração do Estado, não se consideram e não são considerados membros do campo jurídico, o que os leva a viverem em constante terminologia de batalha, conduzindo ao estabelecimento de vencidos e vencedores [103].

Outro importante conflito mencionado pelo autor ocorre entre juízes de carreira e juízes oriundos do Quinto Constitucional (egressos da Ordem dos Advogados do Brasil e membros do Ministério Público). A oposição aparece, nesse caso, através da dificuldade de aceitação dos juízes do Quinto pelos demais. Constantemente são considerados incompetentes juridicamente

Por fim, é preciso destacar a problemática causada entre juízes e membros do Ministério Público. Segundo Rocha [104], através desse embate não há o reforço da legitimidade e estabilização do campo na medida em que o trabalho dos promotores é frequentemente inutilizado pelos juízes.

Obviamente que, todos os entraves de relacionamento aqui comentados vão de encontro ao próprio Poder Judiciário, que é prejudicado pela divergência de esforços.

4.4.2. O papel da mídia

A mídia é vista e aceita pelos magistrados como um agente politicamente importante, especialmente em um contexto de democracia em que, através do debate político, é possível atender ou não aos interesses de uma classe.

O Professor Álvaro da Rocha [105], interessado no papel que a mídia exerce em um contexto de crise do Poder Judiciário, colheu diversas entrevistas acerca do tema, aduzindo que o campo jornalístico transmite à população informações falseadas, superficiais e errôneas, algumas vezes por desconhecimento da lei e da organização interna dos Tribunais, outras porque tem em mente interesses diversos.

Com efeito, salienta o autor [106] que a busca de legitimação do Judiciário por intermédio da mídia conduz, na realidade, apenas à legitimação da mídia como agente político, o que, conforme já apontado, é o principal objetivo desses órgãos.

Ainda, a função institucional judiciária não admite, em razão de sua formação histórica, a popularidade superficial fornecida pela mídia, onde todos os produtos divulgados precisam ser rapidamente compreendidos e aceitos pelo público-alvo, características incompatíveis com o Judiciário [107].

De um modo ou outro, porém, o fato é que atualmente o campo jurídico sabe da influência exercida pelo campo jornalístico na sociedade, o que o leva a uma situação contraditória, não obstante, na maioria das vezes, os juízes acabem se curvando àquilo que alguns denominam de "quarto poder" [108].

Há, na verdade, uma grande dificuldade por parte dos magistrados no entendimento da expressão "democracia".

Acreditam que abrindo espaço para a mídia, ou mesmo deixando que a mesma "invada" o campo, estão sendo democráticos. Indo mais além, crêem que democracia significa todos terem uma opinião e todas as opiniões terem valor [109].

Contudo, na esteira de Álvaro Rocha [110], a democracia pressupõe critérios e tal ideia está presente desde seu conceito clássico, como se percebe em "A Política", de Aristóteles.

Logo, ainda que os juízes aceitem a intervenção da mídia no Judiciário, em nome da democracia, seria preciso retomar conceitos clássicos a fim de não se deixar contaminar por ideias distorcidas e completamente desprovidas de significado teórico.

4.4.3. O nepotismo

No afirmar de Álvaro da Rocha [111], o nepotismo é apontado pelos juízes como uma das principais razões para seu descrédito.

O autor [112] aponta o argumento da maioria dos magistrados, no que tange ao nepotismo, aduzindo que tal se apoia, principalmente, na legalidade, e é senso comum entre os juízes, cujo habitus leva a reputar e aceitar como válido tudo o que passou pelo processo estatal de legalização. Desse modo, os cargos e critérios de preenchimento legais estariam fora de discussão. Os critérios de invalidação são relegados ao plano da moralidade, que devem ser avaliados pelo detentor do cargo em relação àquele que nomeará para ocupá-lo. É preciso verificar o grau de "confiança" e "competência".

Tal avaliação, por óbvio, é dotada de extrema subjetividade, o que gera, assim, o descrédito, posto que salvo as partes envolvidas, jamais se saberá se efetivamente os níveis de competência são satisfatórios.

De outro lado, conclui Álvaro da Rocha [113] que a prática do "nepotismo" reflete uma concepção particular de Estado, que não se coaduna com o modelo ocidental, apoiado numa burocracia fria e automática, em moldes weberianos, que deveria trabalhar de modo neutro e eficiente, não importando quem sejam os ocupantes dos cargos políticos de decisão. O que se percebe, na verdade, é um conflito de lógicas: de um lado, surge a lógica de Estado e, de outro, impõem-se estratégias relacionadas à lógica pessoal de sobrevivência, agregando a elas a lógica da reprodução social.

Quanto a esta "provável" causa das dificuldades sofridas pelo Poder Judiciário, é preciso enfatizar que o maior problema, na realidade, não está localizado no nepotismo e sim, na existência do cargo em comissão.

Embora a legislação pátria (constitucional e infraconstitucional) preveja que o acesso a cargos públicos se dará através de concurso público de provas e títulos, a figura do cargo em comissão surge como uma ótima forma de "burlar" a lei.

Com efeito, é preciso ressaltar que a crítica aqui posta não se refere à existência dos cargos em comissão, uma vez que os mesmos parecem úteis nas diversas esferas do Poder Público. O grande problema, contudo, é o modo como tais cargos se difundiram nas esferas estatais, o que representa gastos vilipendiosos, especialmente porque o que se verifica são excelentes compensações financeiras para essas "funções de confiança".

Logo, ao se falar de nepotismo é preciso considerar que o mal parece estar na proliferação dos cargos em comissão, os quais se tornaram regras, não obstante devessem ser exceção.

4.4.4. A morosidade do Judiciário

Depois de analisadas prováveis causas como o conflito interno entre juízes e demais profissionais, a convivência entre Judiciário e mídia e o nepotismo, não é possível se esquivar de um outro fator que é alvo de inúmeras críticas ao Poder jurisdicional: a morosidade.

De início é preciso ressaltar na esteira de Álvaro da Rocha [114], que os juízes já se acostumaram a "supervalorizar" a problemática da morosidade, atribuindo a maioria das falhas do Poder Judiciário a ela, que, na visão desses profissionais, seria ocasionada por problemas externos ao campo. No entanto, tal é apenas um dos problemas de ordem prática que atinge os magistrados.

O dilema da falta de agilidade jurisdicional decorre de diversos fatores, que se aglutinam em torno da problemática do acesso ao produto da atividade judicial: a intervenção estatal no sentido da justiça e/ou paz social [115].

De acordo com pesquisa elaborada pelo Idesp em 1994, 73,2% da morosidade da justiça se deve ao alto número de recursos, 58,4% ao interesse dos advogados, 53,5% ao interesse das partes, 49,1% à lentidão dos Tribunais, 48,2% ao interesse do Executivo, 43,7% ao comportamento da polícia, 40,7% ao comportamento dos cartórios, 35,6% à lentidão dos juízes e 17,9% à intervenção dos promotores [116].

Mas, além das causas suso referidas, é preciso destacar que o problema da morosidade está estreitamente vinculado ao acesso à justiça, mais especificamente à terceira fase de acesso [117]. Com efeito, aduz Rocha [118] que somente se observará a celeridade na prestação jurisdicional a partir de profundas alterações nas leis do processo e da maior utilização dos Juizados Especiais Cíveis, previstos no artigo 98 da Constituição Federal.

Ainda, é extremamente interessante a colocação final de Rocha [119] acerca do problema da morosidade posto que o mesmo conclui que sempre que se alegar a falta de presteza do Judiciário se estará, ainda que implicitamente, afirmando a importância e necessidade deste.

Todos os problemas aqui referidos – conflito entre juízes e outros profissionais, intervenção da mídia, nepotismo e morosidade – foram apontados pelos próprios magistrados, na tentativa de encontrar "prováveis" causas para as dificuldades encontradas pelo Poder Judiciário.

O fato, contudo, é que se torna extremamente complicado vislumbrar causas infortúnios que não se sabe, sequer, se podem ser chamados de crise. Com efeito, retomando o conceito de crise visto no segundo capítulo, se afirmou que aquela representa uma brusca mudança na evolução de um processo sentida como uma experiência geralmente não prevista e, por isso, perigosa e incerta.

Ora, para existir a crise, portanto, é preciso que exista um modelo a ser superado, o que não ocorre com as nações periféricas e semi-periféricas, como o Brasil. Embora burocrática e legalmente se possa afirmar a presença do modelo liberal, faticamente não é esse o paradigma e não se sabe, ao certo, o que efetivamente é presenciado em países de modernidade tardia.

Há, de fato, uma zona gris, nebulosa, e não se sabe exatamente de que modelo se parte e para que modelo se vai.

Em meio a tais afirmações, pois, é preciso registrar que o momento é de total incerteza e que a intenção não foi apresentar soluções (o que não se considera nada possível) e sim, patologias, plantando dúvidas e inquietações, todas necessárias para semear novas sementes.

Sobre a autora
Silvia Resmini Grantham

Advogada. Professora de Direito Constitucional e Direito Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRANTHAM, Silvia Resmini. A crise do Poder Judiciário.: Breves reflexões a partir do contraponto entre países centrais e semi-periféricos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2305, 23 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13725. Acesso em: 22 dez. 2024.

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