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Validade jurídica da prorrogação da CPMF?

Agenda 01/07/1999 às 00:00

"Gonzalo: ’Vós haveis falado mais acertadamente do que estava na vossa intenção.’

‘Sebastian: ‘E vós havei-lo entendido mais inteligentemente do que eu pensei."

(W. Shakespeare, "A Tempestade").


I. INTRODUÇÃO

1. As sementes deste trabalho foram lançadas por alguns contribuintes que nos questionaram se o retorno da cobrança da CPMF, a partir de 17 de junho próximo, é válido.

2. Essas dúvidas nasceram em vista das seguintes afirmações: a) a CPMF não poderia ser prorrogada, uma vez que não mais existia; nesse sentido, não poderia o constituinte derivado, por meio de uma emenda constitucional (nº 21/99) prorrogar as Leis 9.311 e 9.539, uma vez que estas também não mais existiam, e se não existiam, nem o legislador constituinte poderia fazer-lhas voltar a existir, daí porque, em vista de inadequada terminologia, a EC 21/99 é inoperante; e b) a E. C. 21/99 é inválida por vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que o projeto oriundo do Senado sofreu uma modificação na Câmara e essa modificação não foi reapreciada pelo Senado, como manda o Texto Constitucional.

3. Para dirimir as dúvidas relativas à validade jurídica da CPMF, feriremos a questão do seguinte modo: a) demonstrar que existência distingue de vigência, no âmbito da validade jurídica; b) surpreender o alcance e os objetivos da interpretação jurídica para os textos legislativos; e c) perspectivar se vícios formais inquinam de inconstitucional os atos legislativos.


II. INSTITUIÇÃO E COBRANÇA DA CPMF

4. A CPMF foi originalmente prevista pela Emenda Constitucional n.º 12, publicada no Diário Oficial da União em 16 de agosto de 1996, que incluiu o art. 74 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, facultando à União instituir a CPMF por um prazo máximo de dois anos, tendo sido observado que tal contribuição teria sua exigibilidade subordinada ao art. 195, § 6.º da Constituição Federal. In verbis:

"Art. 74. A União poderá instituir contribuição provisória sobre movimentação ou transação de valores e de créditos e de direitos de natureza financeira.’

(...)

§ 4º A contribuição de que trata este artigo terá sua exigibilidade subordinada ao disposto no art. 195, § 6º, da Constituição, e não poderá ser cobrada por prazo superior a dois anos".

5. Apesar de a EC 12/96 ter sido publicada no mês de agosto, a CPMF só veio a ser instituída propriamente em 24 de outubro daquele ano de 96, através da Lei 9.311, a qual determinou, em seu artigo 20, que essa contribuição incidiria sobre os fatos geradores verificados no período de tempo correspondente a treze meses, contados após decorridos noventa dias da data da publicação dessa lei. Assim, a CPMF passaria a incidir sobre os fatos geradores praticados a partir de 23 de janeiro de 1997 (90 dias após a publicação da citada Lei 9.311), até os fatos geradores praticados em 23 de fevereiro de 1998, data em que se completariam os 13 meses previstos naquele diploma legal. Eis os enunciados legais:

Lei 9.311, de 24 de outubro de 1996:

"Art. 1º É instituída a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – CPMF.’

‘(...)

‘Art. 20. A contribuição incidirá sobre os fatos geradores verificados no período de tempo correspondente a treze meses, contados após decorridos noventa dias da data da publicação desta Lei, quando passará a ser exigida".

6. Nesse ínterim, contudo, foi promulgada a Lei n.º 9.539, de 12 de dezembro de 1997, que dispôs que a CPMF incidiria "sobre os fatos geradores ocorridos no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, contados a partir de 23 de janeiro de 1997". Em nosso entendimento, tal dispositivo mostra-se parcialmente inconstitucional, pois em verdade tratava-se de uma reinstituição da CPMF (cuja cobrança nasceu com prazo certo para terminar: 13 meses), a Lei 9.539 somente poderia gerar efeitos somente após o prazo previsto no art. 195, § 6.º da Constituição, cujo respeito pela CPMF está determinado expressamente pelo art. 74, § 4.º do ADCT. Eis o enunciado legal:

Lei 9.539, de 12 de dezembro de 1997:

"Art.1º Observadas as disposições da Lei 9.311, de 24 de outubro de 1996, a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e de Direitos de Natureza Financeira – CPMF incidirá sobre os fatos geradores ocorridos no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, contados a partir de 23 de janeiro de 1997".

7. Ou seja, tendo sido a Lei 9.539 publicada em 15 de dezembro de 1997, a nova instituição da CPMF somente poderia atingir os fatos geradores ocorridos daí a noventa dias. Quer dizer, os fatos geradores ocorridos a partir de 15 de março de 1998. Assim, entendemos que a CPMF cobrada de 24 de fevereiro de 1998 a 15 de março de 1998 (20 dias) não teve respaldo constitucional, pois a Lei 9.539 violou o art. 195, § 6.º da Constituição.


III. PRORROGAÇÃO DA CPMF VIA E. C. 21/99: VÍCIO FORMAL

8. Em relação à "prorrogação" (na verdade, uma reinstituição) da CPMF (com alíquota majorada) nos termos em que definido pela Emenda Constitucional nº 21, publicada em 19 de março de 1999, vislumbramos, no aspecto formal, que seja inválida ou inoperante. Isso porque o processo legislativo de feitura dessa Emenda está viciado. Explica-se.

7. Dispõe a Constituição Federal que a "proposta de emenda à Constituição será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros" (§ 2º, Art. 60). Ainda em sede de processo legislativo, enuncia o Texto Constitucional que o projeto emendado pela Casa revisora voltará à Casa iniciadora (parágrafo único, Art. 65).

8. Eis o fato para uma possível invalidação da EC 21/99: o projeto aprovado no Senado sofreu uma modificação na Câmara e esta modificação não foi reapreciada pelo Senado, como impõe o Texto Constitucional. Veja-se o quadro abaixo.

Proposta que originou a Emenda Constitucional n. 21 de 19 de 03 de 1999

Projeto aprovado no Senado (origem), em 19 de janeiro de 1999.

Projeto aprovado na Câmara (revisora), em 18 de março de 1999.

"Art. 75 § 1º Observado o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição, a alíquota da contribuição será de trinta e oito centésimos, nos meses subseqüentes, facultado ao Poder Executivo reduzi-la ou restabelecê-latotal ou parcialmente, nos limites aqui definidos.

§ 3º É a União autorizada a emitir títulos da dívida pública interna, cujos recursos serão destinados ao custeio da saúde e da Previdência Social, em montante equivalente ao produto da arrecadação da contribuição, prevista e não realizada em 1999, hipótese em que o resultado da arrecadação verificado no exercício financeiro de 2002 será integralmente destinado ao resgate da dívida pública federal".

"Art. 75 § 1º Observado o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição, a alíquota da contribuição será de trinta e oito centésimos, nos meses subseqüentes, facultado ao Poder Executivo reduzi-la total ou parcialmente, nos limites aqui definidos.

§ 3º É a União autorizada a emitir títulos da dívida pública interna, cujos recursos serão destinados ao custeio da saúde e da Previdência Social, em montante equivalente ao produto da arrecadação da contribuição, prevista e não realizada em 1999".

9. Sendo assim, consideramos que a EC 21/99 padece de vício formal de inconstitucionalidade por desrespeitar o mandamento constitucional que impõe o retorno de projetos emendados pela Casa revisora para a Casa iniciadora. No caso ora em tela isso não aconteceu: a Câmara fez uma modificação e não a submeteu à apreciação do Senado, em flagrante desrespeito ao mandamento constitucional.

10. Para robustecer nosso entendimento, traz-se à colação o debate travado no Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN nº 574-DF, cujo relator era o Ministro Ilmar Galvão. Eis a ementa desse julgado:

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. NOVA REDAÇÃO DADA PEL ART. 29 DA LEI Nº 8.216, DE 1991, AO ART. 7º E SEUS INCS., DA LEI Nº 3.765, DE 1960. IMPUGNAÇÃO DO CAPUT E DO INC. I, EM RAZÃO DE EMENDA ADITIVA, FEITA PELO SENADO, NO TEXTO DESTE ÚLTIMO, COM A QUAL FOI SANCIONADA A LEI, SEM QUE O PROJETO HOUVESSE RETORNADO À CÂMARA FEDERAL, ONDE TEVE ORIGEM, PARA A DEVIDA REAPRECIAÇÃO, COMO IMPOSTO NO ART. 65, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL" (sic).

11. Nesse julgamento, em que se cuidava de uma modificação feita a um projeto de lei oriundo do Executivo, apreciado inicialmente pela Câmara e revisado e modificado pelo Senado, sem que retornasse à Casa de origem, dentre os argumentos desfilados no Supremo dois calham à nossa discussão: a) a invalidação de toda a Lei e b) a invalidação somente da modificação feita e que não retornou à Casa iniciadora.

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12. Antes, contudo, convém dizer que o Supremo declarou a inconstitucionalidade não só da modificação feita no Senado e que não foi reapreciada pela Câmara, e nem inquinou toda a Lei de inconstitucional por esse vício. A decisão do Supremo se pelas seguintes razões: "Flagrante inconstitucionalidade formal da referida emenda, por sua absoluta impertinência, em face do texto do projeto, originário do Chefe do Poder Executivo, já que pretendeu introduzir matéria relativa a pensão militar, onde se cuidava de antecipação dos efeitos de revisão de vencimentos. Afronta ao art. 61, § 1º, II, c, da Constituição. Nódoa que, neste caso, ultrapassa os limites do texto impugnado para atingir, em sua integridade, o referido artigo 29, que de outro modo, restaria despido de qualquer sentido, na parte remanescente" (Parte da Ementa da sobredita ADIN).

13. Retornando à nossa questão, daquelas duas considerações cogitadas pelo Supremo deve-se, de início, afastar a tese de invalidação total da Lei, posto que é assente em nossa Corte Maior a jurisprudência que manda, na medida do possível, "salvar" as leis. Para este caso não aprofundaremos essa discussão. Em nosso sentir, a consideração que merece ser ferida é a segunda, no sentido de invalidar somente a modificação feita na Casa revisora e que não foi reapreciada pela Casa inciadora.

14. Naquele julgamento, em vista dessa segunda consideração, foi desfilada a seguinte tese para salvar o dispositivo legal: como houve uma emenda aditiva na Casa revisora e esta não mandou o projeto de volta à Casa iniciadora, somente, portanto a adição feita seria inquinada de inconstitucional, pois assim, estar-se-ia respeitando a vontade convergente das duas Casas legislativas, naquilo em houve tal convergência. Ou seja, como a Casa revisora fez uma adição e esta adição não foi submetida à apreciação da Casa iniciadora somente essa adição seria inconstitucional e assim seria punida a Casa que desrespeitou o mandamento constitucional que impõe o retorno à Casa iniciadora dos projeto emendados pela Casa revisora, estaria salva a vontade convergente das duas Casas e invalidada a parcela da vontade da Casa que violou a Constituição. Reitere-se, por oportuno, que essa tese não foi a que fundamentou a decisão daquela Corte. Entretanto foi levantada e pode vir a sê-la novamente.

15. Para a nossa questão específica, penso que esses argumentos não sejam satisfatórios. Explica-se. Naquele caso, discutia-se uma modificação aditiva feita e que se tornou inválida por desrespeito à regra que impõe o retorno à Casa de origem o projeto que tenha sofrido emenda na Casa revisora. A solução cogitada tem a sua lógica, na medida em que respeita as duas vontades convergentes e inquina de inválida a vontade divergente e que não foi reapreciada. No caso ora em tela aconteceu uma modificação supressiva e esta supressão também não foi reapreciada pela Casa de origem. Se se utilizar da mesma argumentação, ou seja, que somente a supressão deve ser inquinada de inconstitucional e que o restante do dispositivo é válido e deva ser salvo, incorrer-se-á em erro lógico gravíssimo e em desrespeito ao princípio do bicameralismo parlamentar. É que neste caso se se diz que somente a supressão é inválida, por ser divergente, e que o restante do texto deve ser salvo por serem convergentes as vontades das duas Casas, estar-se-ia beneficiando a vontade da Casa que procedeu à modificação supressiva e não remeteu à Casa iniciadora o projeto (ou proposta) legislativo e que o promulgou em desrespeito à norma constitucional que manda que haja o sobrecitado retorno. Ou seja, naquela caso da emenda aditiva se se punisse somente a adição feita realmente estaria salva as vontades convergentes e punida a vontade divergene da Casa revisora e modificadora. Neste atual não, porque se por um lado se salvasse a vontade convergente das duas Casas estar-se-ia beneficiando à vontade divergente da Casa revisora que desrespeitou a norma constitucional que impõe o retorno dos projetos emendados ou modificados.

16. Para melhor ilustrar a questão, tomemos, ao modo de exemplo e meramente figurativo, a seguinte situação: A Casa iniciadora aprova um projeto de lei instituindo um determinado tributo. A Casa revisora aprova esse projeto dispondo que os aposentados estão isentos do pagamento desse tributo, e não manda para a reapreciação da Casa de origem a modificação feita, promulgando essa hipotética lei segundo a redação dada pela Casa revisora. Pois bem, se usarmos da tese de que somente a parte acrescida é inconstitucional, ou seja, a isenção aos aposentados, estar-se-á salvando as vontades convergentes: a cobrança do tributo, e punindo a divergência: a isenção aos aposentados. Pois bem, se fizermos um giro no exemplo sugerido, aproximando-se da nossa questão, observaremos que não pode ser aplicado o mesmo raciocínio. Veja-se. Se a Casa iniciadora aprova um projeto de cobrança de tributo e isenta os aposentados e a Casa revisora aprova esse projeto suprimindo a isenção dos aposentados, e procede do mesmo modo, ou seja, sem retorno do projeto modificado à Casa iniciadora, não poderia dar-se a mesma solução, pela seguinte razão. A vontade da Casa iniciadora era a cobrança do tributo com a isenção aos aposentados, enquanto que a vontade da Casa revisora era também a cobrança do tributo, só que sem isenção para os aposentados. Se se diz que somente a supressão feita (o fim da isenção aos aposentados) é inconstitucional e portanto deve-se respeitar as vontades convergentes: cobrança do tributo, então somente, em verdade, a vontade da Casa iniciadora estará sendo vinculante e punida será a Casa iniciadora pois a sua vontade de que os aposentados sejam isentos não foi respeitada. Ou seja, a Casa revisora atinge o seu desiderato ferindo a Constituição, pois o tributo estaria sendo cobrado inclusive dos aposentados.

17. Portanto, não vislumbramos como possa ser inquinada de inconstitucional a supressão feita sem que todo o dispositivo padeça de validade, por um imperativo de lógica.

18. Ainda na defesa da validade do retorno da CPMF, podem aduzir que o disposto no Art. 65 e em seu parágrafo único só diz respeito a projeto de lei e não menciona a proposta de emenda à Constituição. Aduzir um argumento desses é interpretar de modo pedestre o Texto Constitucional e ignorar o sentido das normas constitucionais aquando da proteção da própria Constituição. Ou seja, o constituinte originário revestiu a sua obra de uma série de garantias, dentre elas têm-se o quorum qualificado (3/5) nas duas Casas do Congresso para que lhe sejam feitas modificações, sem contar as limitações circunstanciais e materiais. Não é porque algo não esteja escrito em um texto legislativo que dele não se possa extrair qual a norma a ser aplicada. Outrossim, o Supremo Tribunal Federal admite ADINs contra emendas constitucionais e contra tratados internacionais, em que pese não estejam textualmente previstas e também admite que a Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal tenha legitimação para ajuizar ADINs, não obstante o Texto Constitucional falar em Mesa de Assembléia Legislativa (Art. 103, IV). Por conseguinte, o argumento de que o Artigo 65 e seu parágrafo único não é aplicável para as propostas de emenda constitucinal e somente aos projetos de lei carece de substância, por inadequada compreensão do sentido da norma constitucional: a proteção ao Texto Constitucional e respeito ao princípio do bicameralismo parlamentar, próprio das Federações.


IV. INTERPRETAÇÃO DA E. C. 21/99: RENOVAÇÃO DA CPMF

19. Na esteira de argumentos aduzidos para a invalidação do retorno da CPMF há aqueles infirmam esse tributo por outras razões, no sentido de dizer que a CPMF seria inválida porque a EC 21/99 prorrogou a vigência de leis inexistentes. Em nosso sentir, essa tese é de difícil sucesso. Justifica-se.

20. Essa Emenda Constitucional adicionou ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o art. 75, que prorroga por três anos a cobrança da CPMF. Este mesmo artigo dispõe expressamente que a vigência das Leis 9.311 e 9.539 também fica prorrogada pelo mesmo prazo e majora as alíquotas, in verbis:

"Art. 75. É prorrogada, por trinta e seis meses, a cobrança da contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e de direitos de natureza financeira de que trata o art. 74, instituída pela Lei n.º 9.311, de 24 de outubro de 1996, modificada pela Lei n.º 9.539, de 12 de dezembro de 1997, cuja vigência é também prorrogada por idêntico prazo." (Grifos nossos).

21. Com efeito, respeitado o prazo de 90 dias contido no art. 195, § 6.º da Constituição, a CPMF voltaria a incidir sobre os fatos geradores a partir de 17 de junho de 1999, já com a alíquota majorada. É o que se extrai numa primeira leitura desse sobrecitado dispositivo constitucional.

22. Entretanto, se houver um apego ao excessivo rigor de linguagem jurídica, ou seja, à literalidade do texto, pode-se concluir que a EC 21/99 está mal redigida, pois utilizou a expressão "prorrogada" para algo que não mais vigia: a CPMF. Nesse sentido, em vez de "prorrogada", deveria ter sido escrito "reinstituída" ou "renovada". Isso porque prorrogar tem uma significação distinta desses outros termos mencionados.

23. Eis a exposição do jusdicionarista De Plácido e Silva (1):

"PRORROGAÇÃO. Do latim prorogatio, de prorogare (alongar, dilatar, adiar, ampliar), exprime, originalmente, o aumento de tempo, a ampliação do prazo, o espaçamento do tempo, prestes a extinguir, para que certas coisas possam continuar, em seguimento, sem solução de continuidade.

‘Nesta razão, a prorrogação pressupõe prazo ou espaço de tempo, que não se extinguiu nem se finou, e que é ampliado, dilatado, aumentado, antes que se fine ou se acabe.

‘Não se prorroga o que já se mostra terminado ou acabado, isto é, fora da vigência ou do exercício de um prazo, que não mais existe. Aí, ocorreria coisa nova, iniciar-se-ia um novo espaço de tempo, pela solução de continuidade entre o prazo antigo e o novo, revelando-se, portanto, renovação, não prorrogação. (Grifamos).

(...)

‘RENOVAÇÃO. Do latim renovatio, de renovare, é repetição ou a nova execução de alguma coisa.

‘Desse modo, renovação é a recomposição, o revigoramento ou o restabelecimento do que havia sido destruído, desfeito ou havia terminado".

24. Para desatar esse nó interpretativo podem ser encontradas soluções a partir de duas ordens: a) o lógico-gramatical, e b) o teleológico.

25. Em um primeiro momento, pode-se dizer que não é permitido ao legislador (nem que seja o constituinte derivado) modificar o sentido das palavras. Assim sendo, a obra do legislador que desrespeita o sentido técnico das coisas e das palavras padece de vícios, sendo portanto inválida. Essa visão é denominada de interpretação literal ou gramatical, embora imbuído de um sentido também lógico (lógico-gramatical), pois tem como principal referência o sentido técnico das palavras.

26. Em reforço desse mecanismo interpretativo tem-se a Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a elaboração e redação das leis e atos normativos federais. Eis os dispositivos dessa citada lei relativos à questão:

"Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

I - para a obtenção de clareza:

a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando;

(...)

II - para a obtenção de precisão:

a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma; (...)".

27. Em que pese a necessidade de rigor terminológico dos textos legislativos, há de se considerar dois aspectos para tais textos: 1º) o legislador não está necessariamente obrigado a conhecer todos os sentidos unívocos das palavras, pois isso é tarefa da ciência, não da política; 2º) a denominada interpretação literal é muito mais um ponto de partida do que de chegada, no sentido de que quando se vai compreender um texto não se deve ater-se completamente à literalidade do mesmo, mas sobretudo aos seus objetivos. (2)

28. Para ilustrar esse aspecto da busca pelo sentido da lei, em vez de apegar-se aos rigores da linguagem, veja-se o disposto no art. 85, do Código Civil pátrio: "Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem".

29. Com efeito, tendo em vista os objetivos da lei, o intérprete pode corrigir eventuais equívocos constantes no texto, desde que não modifiquem demasiadamente o sentido perseguido pela vontade do legislador, mediatizado pela lei. (3)

30. Em relação ao argumento de que seria necessária a edição de nova lei ordinária para viabilizar a cobrança da CPMF, pois não poderia uma Emenda Constitucional prorrogar a vigência de leis que não mais existiam, entendemos ser o mesmo inaplicável. Explica-se.

31. As sobrecitadas leis 9.311 e 9.539, à época da promulgação da EC 21/99, não eram inexistentes. Elas haviam perdido o seu vigor, pois expirara o seu prazo de vigência, conforme nelas disposto. Ou seja, elas estavam revogadas por decurso de seu prazo de vigência, o que é possível em nossa ordem jurídica, visto o que dispõe a Lei de Introdução ao Código Civil, que é válida para todos os diplomas normativos do nosso sistema jurídico, in verbis:

"Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

(...)

§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência." (Grifos nossos).

32. Nesse sentido, leciona Vicente Ráo: "A lei revogada só pode renascer se uma nova disposição legal expressamente o determinar. Em princípio e sem essa disposição nova, a revogação é sempre definitiva, ainda quando nenhum outro preceito se substitua ao que se continha na lei suprimida." (4)

33. Em reforço de argumentação leia-se Eduardo Espínola (5):

"... salvo o caso de ter sido, determinadamente, estabelecida para um período certo ou para um efeito essencialmente transitório, a lei subsiste enquanto não é revogada ou derrogada por outra.’

‘Adolfo Ravà assim se pronuncia: ‘Da mesma forma que a lei começa a ter vigor em determinado momento, assim também acaba de tê-lo em outro momento. A cessação da eficácia da lei pode verificar-se de dois modos, segundo tem ela, já em si, um elemento, pelo qual a sua eficácia se extingue em certo ponto, naturalmente, ou ao contrário , é destinada a duração indeterminada, devendo interferir um fato novo para fazê-la cessar.’

‘No primeiro caso, se fala de fim da lei por causas intrínsecas; no segundo, em virtude da revogação.

‘Como acabamos de assinalar, a cessação da obrigatoriedade da lei pode resultar de causas intrínsecas à mesma.

‘É o que se verifica, quando, pela própria natureza da lei, a sua vida se limita a determinado tempo, ou a certo fim, caso em que traz ela, em si mesma, um limite de duração, para a sua validade.

‘Contemplando a situação, Stolfi anotara que, além dos modos de revogação das leis, previstos no art. 5º das disposições gerais no Código italiano, outras há que, derivando de razões intrínsecas, assim se enumeram:

‘a) o decurso do tempo para o qual a lei foi decretada, quando se trata de leis temporárias, a não ser que o seu império seja expressamente protraído por meio de outra lei;

‘b) o fato de haver a lei alcançado o fim a que se propõe;

‘c) a cessação do estudo de coisas ou do instituto jurídico pressuposto pela lei".

34. Nesse sentido, não há que se fazer confusão entre lei inexistente e lei não vigente. A lei inexistente é aquela que nunca dispôs de aptidão para produzir efeitos jurídicos, que não poderia revestir-se de validade, vigência e de eficácia, porque o seu ingresso no mundo jurídico não respeitou os requisitos necessários e indispensáveis para a sua validade, como acontece com as leis que são inconstitucionais. Em nosso sistema jurídico, as leis declaradas inconstitucionais são consideradas, regra geral, como inexistentes, incapazes de produzir efeitos jurídicos válidos.

35. A lei que não é mais vigente não é necessariamente inexistente. A lei que perde o seu vigor, o perde por ter expirado o seu prazo de vigência ou porque uma nova lei a revogou. Contudo, como acima visto, as leis revogadas (por decurso de prazo de vigência ou por outra lei) podem renascer, desde que uma outra norma de igual ou superior hierarquia assim o disponha.

36. Daí porque não nos parece correta a afirmação de que as Leis 9.311 e 9.539 não mais existiam no ordenamento jurídico brasileiro: o fato de uma lei não mais estar em vigor (pois promulgada para viger por prazo certo) não segue que ela não mais exista; e se a lei continua existindo, não há como negar ao legislador constituinte derivado a competência de restaurar ou renovar o prazo de vigência que já se esgotara. O âmbito de atuação do legislador constituinte derivado é o mesmo do legislador constituinte originário, ou seja, a reserva do possível no mundo jurídico. Tudo aquilo que for possível de ser juridicamente disciplinado pode sofrer a interferência do constituinte derivado, salvo expressa disposição do constituinte originário. Em nosso sistema jurídico é o constante do § 4º, do art. 60, da Constituição da República e as limitações de natureza procedimental e circunstancial.

37. Com relação à possibilidade da própria Emenda Constitucional instituir tributo, sem necessidade de lei nova ordinária específica, também há precedente no tocante ao PIS das instituições financeiras. Também podem ser dados os seguinte exemplos: Emenda Constitucional de Revisão n. 1, de 1º de março de 1994 e Emenda Constitucional n. 10, de 4 de março de 1996. Eis os dispositivos constitucionais pertinentes:

Emenda Constitucional de Revisão nº 1:

"Art. 1º Ficam incluídos os arts. 71, 72 e 73 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com a seguinte redação:

‘(...)

‘Art. 72. Integram o Fundo Social de Emergência:

‘(...)

II – a parcela do produto da arrecadação do imposto sobre propriedade territorial rural, do imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza e do imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários, decorrente das alterações produzidas pela Medida Provisória n. 419 e pelas Leis ns. 8.847, 8.849 e 8.848, todas de 28 de janeiro de 1994, estendendo-se a vigência da última delas até 31 de dezembro de 1995;" (Grifo nosso).

Emenda Constitucional nº 10:

"Art. 2º O art. 72 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 72. Integram o Fundo Social de Emergência:

‘(...)

‘III – a parcela do produto da arrecadação resultante da elevação da alíquota da contribuição social sobre o lucro dos contribuintes a que se refere o § 1º do art. 22 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, a qual, nos exercícios financeiros de 1994 e 1995, bem assim no período de 1º de janeiro de 1996 a 30 de junho de 1997, passa a ser de trinta por cento, sujeita a alteração por lei ordinária, mantidas as demais normas da Lei 7.689, de 15 de dezembro de 1998;" (Grifo nosso).

38. Por conseguinte, consideramos que se o Judiciário interpretar restritiva e literalmente a expressão "prorrogada", ou seja, em seu sentido técnico, sob o argumento de que não é permitido ao legislador adulterar os sentidos unívocos e técnicos das palavras, pode haver alguma chance de êxito judicial, no sentido de obter o reconhecimento da ineficácia ou inoperância da EC 21/99.

39. Contudo, em vista da questão meramente terminológica, é provável que o Judiciário interprete o termo "prorrogada" como "renovada" ou "reinstituída", sob o argumento de que o sentido da EC 21/99 não foi prejudicado pela falta de rigor terminológico do legislador. Ademais, pode o Judiciário lançar mão do critério histórico para alcançar esse objetivo, uma vez que o processo legislativo de feitura dessa citada Emenda teve início enquanto vigia a "antiga" CPMF, daí que o legislador, na redação inicial da proposta de Emenda usou a expressão prorrogada, pois naquela época era o termo adequado, pois se objetivava realmente prorrogar o que ainda não tinha se expirado. De outro giro, a mens legis (intenção da própria lei manifestada no seu contexto) e não do legislador, necessariamente, também aponta para o sentido da expressão "prorrogada" como renovada ou reinstituída, o que legitimaria a sua cobrança a partir de 17 de junho do corrente ano.

40. Entretanto, se se atacar o vício formal existente no processo legislativo do qual resultou a EC 21/99, visto que houve uma emenda na Câmara ao projeto oriundo do Senado e essa emenda não foi reapreciada pelo Senado, como impõe o Texto Constitucional, entendemos que grandes seriam as chances de êxito judicial, no sentido da invalidade do retorno da CPMF, por vício insanável no processo legislativo.


CONCLUSÃO

1ª) a CPMF cobrada no período de 24 de fevereiro de 1998 a 15 de março do mesmo ano (20 dias) não teve respaldo constitucional, pois a Lei 9.539 violou o art. 195, § 6º, da Constituição da República;

2ª) a denominada interpretação lógico-gramatical é um critério inicial para atingir o real sentido da norma, cuja significação depende de uma série de outros critérios, sobretudo o teleológico, inclusive lançando-se mão do histórico para atribuir o adequado sentido normativo do enunciado jurídico, por conseguinte, o argumento de que o uso inadequado da expressão "prorrogada", em vez de "renovada" ou "reinstituída", não seria obstáculo ao retorno de cobrança da CPMF;

3ª) a inexistência jurídica não se confunde com a não vigência jurídica: esta acontece quando a norma já não produz mais efeitos por ter deixado de vigorar por decurso de tempo ou porque as razões que motivaram a sua feitura já não mais existem ou porque outra norma de igual ou superior hierarquia a revogou; aquela acontece quando a norma jurídica não se revestiu dos requisitos necessários de validade para a produção de efeitos jurídicos, portanto a tese de que as Leis 9.311 e 9.539 não poderiam ter a sua vigência restaurada porque eram inexistentes é falsa, pois sobreditas leis eram existentes, só não produziam mais efeitos, posto que não mais vigoravam por decurso de tempo;

4ª) a cobrança da CPMF a partir de 17 de junho próximo é inválida, pois a EC 21/99 foi promulgada com vício que a macula de inconstitucional, visto que o projeto oriundo do Senado sofreu uma modificação na Câmara e esta modificação não foi reapreciada pelo Senado, como manda o Texto Constitucional, em respeito ao princípio do bicameralismo no Legislativo nacional.


NOTAS

  1. Cf. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

  2. Cf. Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, pp. 385 e ss.

  3. Cf. Karl Engish. Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 165 e ss.

  4. Cf. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: RT, 1991, p. 343

  5. Cf. A Lei de Introdução ao Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, pp. 57 e ss.

Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Validade jurídica da prorrogação da CPMF?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. -1462, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1377. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Tese aprovada no III Congresso Nacional da Associação Brasileira de Direito Tributário, realizado na Cidade de Belo Horizonte.

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