1. Critério de Direito (o Direito como uma técnica social específica)
Todas as ordens sociais chamadas Direito têm uma característica comum.
1.1. Motivação direta e indireta
A função de toda ordem social é motivar certa conduta reciproca dos seres humanos: fazer com que eles se abstenham de certos atos que, por alguma razão, são considerados nocivos à sociedade, e fazer com que executem outros que, por alguma razão, são considerados úteis à sociedade.
Há vários tipos de ordens sociais que se caracterizam pela motivação específica.
A motivação pode ser direta ou indireta. A ordem pode vincular certas vantagens à observância de certa conduta e certas desvantagens à sua não observância e, por conseguinte, fazer com que o desejo pela vantagem prometida ou o medo da ameaça de desvantagem atue como motivação de conduta.
A única diferença é que certas ordens sociais estabelecem, elas mesmas, sanções definidas, ao passo que, em outras, as sanções consistem numa reação automática da comunidade não expressamente estabelecida pela ordem.
1.2. Sanções transcendentais e socialmente organizadas
As sanções podem ter caráter transcendental, religioso ou então social-imanente.
O dualismo do aqui e do além é desconhecido do homem primitivo.
A retribuição realmente emana da divindade, mas é tornada real no aqui.
A ordem social primordial possui um caráter absolutamente religioso. Originalmente, não conhece outras sanções que as religiosas, ou seja, as que emanam de uma entidade sobre-humana.
As sanções socialmente imanentes, organizadas, sanções a serem executadas por um indivíduo determinado pela ordem social de acordo com as disposições dessa ordem.
No curso posterior do desenvolvimento religioso, a divindade é concebida como pertencente a um domínio bastante diferente do aqui, como removida para longe dele, e a realização da retribuição divina é protelada para o além-mundo
Além-mundo = céu e inferno.
A ordem religiosa funciona apenas como suplemento e apoio para a ordem social. As sanções da última são exclusivamente atos de indivíduos humanos regulados pela própria ordem social.
1.3. Punição e recompensa
O responsável pela preservação da ordem social é o medo da vingança dos espíritos, o medo de uma punição que tem origem divina, mas que tem lugar aqui.
No que diz respeito à organização do grupo, leva-se em conta essencialmente apenas um método de obtenção do comportamento socialmente desejado: a ameaça de aplicação de um mal no caso de comportamento contrário – a técnica da punição. A técnica da recompensa desempenha um papel significativo apenas nas relações privadas dos indivíduos.
1.4. O Direito como ordem coercitiva
O mal aplicado ao violador da ordem consiste numa privação de posses – vida, saúde, liberdade ou propriedade. Como as posse lhe são tomadas contra a sua vontade, essa sanção tem o caráter de uma medida de coerção. Isso não significa que a força física deva ser aplicada na execução da sanção.
Uma ordem social que busca efetuar nos indivíduos a conduta desejada através da decretação de tais medidas de coerção é chamada ordem coercitiva. Ela o é porque ameaça atitudes socialmente danosas com medidas de coerção, porque decreta tais medidas de coerção. Ela apresenta um contraste com todas as outras ordens possíveis.
A obediência voluntária é em si mesma uma forma de motivação, ou seja, de coerção, e, por conseguinte, não é liberdade, mas coerção no sentido psicológico.
Ordens sociais tão extraordinariamente diferentes em seus teores prevalecem porque a palavra se refere à técnica social específica de uma ordem coercitiva, a qual, apesar das enormes diferenças entre o Direito da antiga Babilônia e o dos Estados Unidos de hoje, entre o Direito dos "ashanti" na África Ocidental e o dos suiços na Europa, é, contudo, essencialmente a mesma para todos esses povos que tanto diferem em tempo lugar e cultura: a técnica social que consiste em obter a conduta social desejada dos homens através da ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada em caso de conduta contrária.
1.5. Direito, moralidade, religião
O Direito é um meio, um meio social específico, e não um fim. O Direito, a moralidade e a religião, todos os três proíbem o assassinato.
As sanções que as normas religiosas formulam têm um caráter transcendental, pressupõem a crença na existência e no poder de uma autoridade sobre-humana.
A sanção socialmente organizada é um ato de coerção que um indivíduo determinado pela ordem social dirige, da maneira determinada pela ordem social, contra o indivíduo responsável por uma conduta contrária a essa ordem (delito).
A sanção é a reação da ordem jurídica contra o delito ou, o que redunda no mesmo, a reação da comunidade, constituída pela ordem jurídica, contra o malfeitor, o delinqüente
1.6. A monopolização do uso da força
A força é empregada para prevenir o emprego da força na sociedade.
O Direito com certeza, é uma ordenação que tem como fim a promoção da paz, na medida em que proíbe o uso da força nas relações entre os membros da comunidade.
O Direito é uma organização da força. Porque o Direito vincula certas condições para o uso da força nas relações entre os homens, autorizando o emprego da força apenas por certos indivíduos e sob certas circunstâncias.
O Direito autoriza certa conduta que, sob todas outras circunstâncias, deve ser considerada "proibida"; ser considerada proibida significa ser a própria condição para que tal ato coercitivo atue como sanção.
1.7. Direito e paz
A paz é uma condição na qual não há o uso da força. Nesse sentido da palavra, o Direito assegura paz apenas relativa, não absoluta, na medida em que priva os indivíduos do direito de empregar a força, mas reserva-o à comunidade.
Afinal, uma comunidade só será possível se cada indivíduo respeitar certos interesses – vida, saúde, liberdade e propriedade – de todos os outros, ou seja, se cada um se abstiver de interferir pela força nas esferas de interesses dos outros.
A técnica social que chamamos "Direito" consiste em induzir o indivíduo a se abster da interferência imposta na esfera de interesses dos outros através de meios específicos: no caso de tal interferência, a própria comunidade jurídica reage com uma interferência similar na esfera de interesses do indivíduo responsável pela influência prévia.
1.8. Compulsão psíquica
Diz-se que a sanção é eficiente se os indivíduos sujeitos à lei – a fim de evitar o mal da sanção – se comportam "legalmente" ou se a sanção é executada no caso de sua condição, o delito, ter sido concretizada.
"Sujeito" é o indivíduo que obedece ou não à lei; "órgão" é o indivíduo que executa a sanção e que, por fazê-lo, aplica a lei.
1.9. As motivações do comportamento lícito
É bem provável, contudo, que as motivações da conduta lícita não sejam, de modo algum, apenas o medo das sanções legais ou mesmo a crença na força de obrigatoriedade das regras jurídicas.
Na verdade, é um benefício relacionado com a conduta humana lícita, e, freqüentemente, o desejo de obter tal benefício funciona como motivação para a conduta lícita.
1.10. Argumentos contra a definição do Direito como ordem coercitiva
1.10.1. A teoria de Eugen Ehrlich
O jurista, naturalmente, está pronto a fazer a objeção de que todos os homens cumprem seus deveres apenas porque sabem que os tribunais poderiam, por fim compeli-los a isso.
1.10.2. A série infinita de sanções
Se é necessário garantir a eficácia de uma norma que prescreve certo comportamento por meio de outra norma que prescreve uma sanção para o caso de a primeira não ter sido obedecida, é inevitável uma série infinita de sanções, um "regressus ad infinitum".
Já que a ordem jurídica pode ser constituída apenas por um número definido de regras, as normas que prescrevem sanções pressupõem normas que não prescrevem sanções.
Uma regra é uma regra jurídica porque ela prevê uma sanção. A sanção a eficácia do conteúdo das regras, de modos que todas as ordens dessa ordem jurídica são normas coercitivas.
2. Considerações finais
A posição de Kelsen, que se funda na concepção do Direito como ordem coativa da conduta humana, se subsume num entendimento de ordem racionalista.
O Direito contém normas que se encontram graduadas em escalões dentro de uma pirâmide hierárquica. Toda interpretação depende, em última análise, da colocação da norma na estrutura hierárquica. Uma norma depende de outra conforme a posição hierárquica. A norma fundante é que dá origem à fundada e esta passa a ser a fundante relativamente à inferior, e assim sucessivamente.
É a dinâmica jurídica. De início, temos a norma fundamental. Esta é diferente de todas das demais, por ser uma norma básica, não positiva, simples ponto de partida para a sustentação lógica das demais normas. É simples hipótese de ordem gnoseológica.
A norma fundamental só diz que o primeiro legislador age com legitimidade e juridicidade. É apenas, uma norma pensada, hipoteticamente. Não tem existência objetiva. Para que os mandamentos legais possam ser considerados obrigatórios é indispensável supor a existência de uma norma fundamental, que admita a legitimidade do poder e o dever de obediência da comunidade.
A ordem coativa da conduta humana, como sistema de normas obrigatórias, promana do referido axioma da teoria formal do Direito.
À norma fundamental seguem-se as normas constitucionais. Ocupam estas o segundo plano. Dizem respeito à organização do Estado, bem como as competências dos poderes legitimamente constituídos e suas relações com os membros da comunidade. A estes últimos são atribuídos direitos e garantias individuais.
Em terceiro lugar, surgem as normas ordinárias, isto é, todas as leis que prevêem as relações sociais básicas. Dizem respeito ao equacionamento dos poderes e deveres dos membros da comunidade, referentes às diversas situações de vida.
Ao lado destas normas ordinárias devem ser colocadas as normas costumeiras. O costume, embora fonte subsidiária, opera na falta da lei, pertencendo, ambos, ao ordenamento jurídico.
Em quarto lugar, encontramos as normas regulamentares, elaboradas pelos órgãos administrativos. Estas visam disciplinar e complementar preceitos das normas ordinárias quando os mesmo não são auto aplicáveis. São provenientes de delegação expressa das próprias normas ordinárias para especificar os preceitos ou simplesmente para suprir as omissões legais.
Em quinto lugar, estão as normas individualizadas. São normas que concretizam situações prospectivamente previstas nas normas anteriores. Têm caráter secundário e descendente relativamente às normas genéricas. Permitem transpor, para a situação convivencial concreta, as previsões das normas genéricas.
Decorrem de uma sistema de delegações (complementação autorizada), sendo sua elaboração conseqüência da atribuição concedida, pelas normas superiores, aos agentes públicos (juizes e órgãos da administração) e membros da comunidade para a disciplina de determinadas relações jurídicas específicas.
Assim sendo, as normas individualizadas são imperativos autorizantes específicos. Através delas se opera a passagem do plano abstrato ao concreto com as implicações que a simples dedução deste último com relação ao primeiro pode operar.
3. Bibliografia
KELSEN, Hans – Teoria geral do direito – Ed. Martins Fontes – São Paulo, 1998
MARITAIN, Jacques - Elementos de Filosofia II: a ordem dos conceitos, lógica menor (lógica formal) - 10 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1983.
OS PENSADORES - História da Filosofia - São Paulo, Editora Nova Cultural, 1999.
SICHES, Luis Recaséns - Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho - 3 ed. México: Editorial Porrua, 1980