Sumário: "Estudo que visa sistematizar princípios gerais que devem reger o processo administrativo-eleitoral de prestação de contas perante a Justiça Eleitoral, enfocando a necessária efetividade desse processo, defendendo-se a importância das prestações de contas enquanto instrumento para controle da arrecadação e gastos de campanha, defendendo-se o prestígio desse controle como forma de garantia do postulado da igualdade de chances entre os candidatos e da democracia substancial."
1. INTRODUÇÃO.
O tema do financiamento e gastos de campanha está mais uma vez na pauta das discussões da sociedade brasileira e conseqüentemente do Congresso Nacional, que novamente está discutindo uma reforma política, sendo que no ano de 2006 já havia sido aprovada a Lei n.o 11.300, a qual, ao lado de Resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, representam o início claro de um processo, ainda que no momento tímido, no sentido de dar-se maior importância e efetividade ao controle do financiamento e gastos de campanha.
Historicamente, as prestações de contas de campanha, que são justamente o principal instrumento para o controle referido, sempre foram vistas e tratadas como uma mera formalidade, desatrelada da preocupação com a realidade dos gastos, desvirtuando-as em um verdadeiro "faz-de-contas", sem a percepção geral de que o processo de prestação de contas poderia e pode se constituir em mais um importantíssimo instrumento de coibição de ofensas às rules of games (regras do jogo) do processo eleitoral, de modo a permitir o combate ao abuso de poder econômico e a outras formas indevidas de interferência na vontade popular e a consectária deslegitimação democrática dos eleitos.
Dentre os pontos abordados nos debates da reforma política no âmbito do Congresso Nacional está o financiamento público de campanha. Um contraponto feito pelos opositores de tal sistema é justamente a inefetividade do processo de prestação de contas, o qual não consegue minimamente impedir a prática de "caixa dois", de modo que o Judiciário Eleitoral não estaria preparado para coibir tal prática, afirmando-se ser inócuo o financiamento pretendido, com grande dispêndio de dinheiro público, se não houver real controle sobre uma contabilidade paralela.
E, realmente, mantidas as antigas pré-compreensões sobre o tema e as bases atuais de parcela da doutrina e da jurisprudência que tratam de forma inutilitarista a prestação de contas, a oposição acima referida é procedente.
Registra com absoluta precisão Sídia Maria Porto Lima [01], estudiosa do tema, que "a prestação de contas de campanha eleitoral, assim como as normas que disciplinam a movimentação de recursos econômicos durante as campanhas, não vêm sendo tratadas com a seriedade que o assunto requer, seja pelos seus elaboradores (diga-se de passagem, também destinatários), seja pelos seus aplicadores e intérpretes (Justiça Eleitoral), seja pelos estudiosos da Ciência Política e do Direito Eleitoral."
Acrescenta ainda que a prestação de contas de campanha eleitoral é "um mecanismo de fiscalização e controle, tão desprestigiado e, até, ridicularizado pela sociedade em geral, embora concebido, originariamente, com a nobre finalidade (ao menos do ponto de vista formal), de regular e emprestar transparência às campanhas eleitorais, instruindo as ações que visam punir e afastar dos cargos eletivos os praticantes de condutas abusivas do poder econômico em suas campanhas." [02]
No presente trabalho busca-se elencar nortes principiológicos com vista a sistematizar o estudo da matéria e sua aplicação prática.
2. Da prestação de contas de campanha eleitoral – princípios norteadores.
2.1. A existência dos princípios constitucionais da prestação de contas de partidos políticos e de campanha eleitoral.
Como cediço, os candidatos a cargos eletivos, eleitos ou não, devem prestar contas, na forma exigida pela legislação pertinente, aí incluída a disciplina normativa exigida pelas Resoluções do Tribunal Superior Eleitoral.
Mais do que isso, a prestação de contas dos partidos – e implicitamente também dos seus candidatos - é princípio previsto na Constituição Federal, que no ponto estabelece:
"Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
(...)
III - prestação de contas à Justiça Eleitoral;"
É dizer, não só a prestação de contas de partidos, mas também a prestação de contas de candidatos é uma cláusula constitucional, esta última de forma implícita, pois o fim primordial dos partidos políticos é a disputa eleitoral com vista à participação democrática no poder. Nesse sentido leciona José Afonso da Silva [03] ao afirmar que "o partido político é uma forma de agremiação de um grupo social que se propõe a organizar, coordenar e instrumentar a vontade popular com o fim de assumir o poder para realizar o seu programa de governo."
No âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também colhe-se lição sobre os fins de uma agremiação partidária, in verbis:
STF: "(...) - A normação constitucional dos partidos políticos - que concorrem para a formação da vontade política do povo - tem por objetivo regular e disciplinar, em seus aspectos gerais, não só o processo de institucionalização desses corpos intermediários, como também assegurar o acesso dos cidadãos ao exercício do poder estatal, na medida em que pertence às agremiações partidárias - e somente a estas - o monopólio das candidaturas aos cargos eletivos. (...)" (MS 26603 / DF - DISTRITO FEDERAL - Relator(a): Min. CELSO DE MELLO - Julgamento: 04/10/2007 - Órgão Julgador: Tribunal Pleno - Publicação DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 - EMENT VOL-02346-02 PP-00318 – Grifos acrescidos).
Assim, quando a Constituição versa sobre a prestação de contas do partido político, realçando a sua importância, aí está implicitamente versando também, galgando-a ao patamar de princípio constitucional, sobre a prestação de contas dos candidatos, que é o meio usado para o partido operacionalizar sua ação com vista a chegar ao poder, o que nada mais é do que sua destinação constitucional.
Sabe-se que princípios constitucionais – tal como ocorre com as famosas cláusulas pétreas implícitas – não existem apenas expressamente.
Os casos clássicos, sempre lembrados na doutrina, de princípios constitucionais implícitos, são os relativos à proporcionalidade e à razoabilidade. Mesmo havendo divergência quanto à norma de decorrência, alguns entendendo que tais postulados decorrem do devido processo legal (doutrina da Suprema Corte Norte-Americana iniciada em 1905 com o caso Lochner versus New York), outros entendendo que são simplesmente princípios constitucionais não-escritos (doutrina alemã) ou outros tendo-os como derivados no princípio da isonomia (Paulo Bonavides [04]), o fato é que tais princípios não têm previsão expressa na Constituição Federal, mas são instrumentos que hoje formam o cotidiano dos operadores do Direito.
Um princípio decorre implicitamente [05] da Constituição quando sem o mesmo a proteção prevista de modo expresso fica sem amparo eficiente, exatamente como se sucederia no caso ora tratado.
Em suma, o que se defende aqui é que a prestação de contas, tanto de partidos como de candidatos, ambas atreladas à indispensável efetividade, também são princípios constitucionais.
Fixada a premissa de que a prestação de contas à Justiça Eleitoral é um princípio constitucional, vamos ao estudo dos princípios específicos que devem reger o julgamento de um processo de prestação de contas pautado em análise científica.
2.2. Princípios da vedação ao retrocesso e da efetividade.
Uma norma constitucional, sobretudo aquelas que têm natureza principiológica, não pode ser interpretada e nem muito menos aplicada de modo a se esvaziar, nem pode ser objeto de regulamentação por Lei de modo a tornar sem qualquer utilidade prática o seu conteúdo.
Analisamos juntos os princípios da vedação ao retrocesso e da efetividade, por entender que há íntima relação entre ambos, cuja aplicação dos mesmos deve se dar em conjunto e harmonicamente.
Toda previsão constitucional traz em si a condensação de um debate de idéias e a vitória de uma corrente de pensamento na Assembléia Constituinte, que necessita, diante do atingimento da maioria, ganhar as ruas.
Nesse contexto, o legislador e o intérprete, responsáveis que são pela aplicação do postulado constitucional não podem agir como retaliadores da vitória do pensamento majoritário na Assembléia Constituinte, que teve por fim consagrar a norma.
Nestas bases, fica claro que uma regulamentação ou hermenêutica que retire a eficácia prática de um princípio constitucional é tão afrontosa a tal princípio como a edição de uma norma expressa em sentido contrário ou ainda a omissão do legislador.
A doutrina aponta uma série de formas de se fraudar o conteúdo e a supremacia da Constituição. Pela definição clássica de inconstitucionalidade, a colisão entre normas é a base conceitual, narrando André Ramos Tavares [06] que "a inconstitucionalidade das leis exprime ‘(...) uma relação de conformidade/ desconformidade entre a lei e a Constituição, em que o ato legislativo é o objeto enquanto a Constituição é o parâmetro’."
Sobre fraude à Constituição vale citar a doutrina de Marcos Bernardes de Mello [07], que ao tratar das formas de infração às normas jurídicas, destaca duas possibilidades: "(a) Diretamente, quando se infringe norma jurídica cogente, proibitiva ou impositiva, contrariando frontalmente, sem rebuços ou artifícios, as suas disposições./ (b) Indiretamente, quando, por meio que aparenta licitude, se obtém resultado proibido pela lei ou se impede que fim por ela imposto se realize. A essa espécie a doutrina, usual e universalmente, denomina fraude à lei".
Adiante, o mesmo autor, consigna: "Temos, no entanto, a convicção de que não há como negar a aplicação da teoria da infração indireta às normas jurídicas às espécies em que o legislador ''contorna'' norma cogente constitucional através de normas aparentemente compatíveis com a Constituição".
Em resumo, a fraude é uma forma de violação com a mesma relevância da violação direta, só que feita com desvio de finalidade, mediante ardil, "jeitinho brasileiro", ou seja lá qual for o nome que se dê a qualquer outra forma engenhosa que a criatividade do ser humano, em seu uso deletério, possa encontrar, a fim de dar aparente legalidade a uma farsa jurídica.
Na visão de J. J. Gomes Canotilho [08], o princípio da proibição de retrocesso social é "o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial".
Ora, é inequívoco que a prestação de contas, como já demonstrado, é atualmente um importante mecanismo para concretização do sistema de democracia substancial incorporado à Constituição Federal, sendo incabível a reversão do sistema no sentido de dificultar, sem apresentar qualquer medida compensatória, o exercício do controle sob o financiamento e os gastos de campanha.
Entretanto, pode-se dizer, sem dúvida, que o histórico desvirtuamento da prestação de contas, tornando-a um verdadeiro "faz-de-contas", ainda representa uma lamentável praxe de alguns candidatos, tudo por força de uma hermenêutica incorreta que evidencia uma distância entre os gastos reais de campanha e os declarados e a visão de procedimento puramente formal e inútil que se tem desse tipo de processo.
Esse pensamento conduz a prestação contas a um nada jurídico, a um processo regido por normas que se crê repletas de exceções e de lacunas providenciais, o que, aliado à falsa compreensão do que é uma verdadeira democracia - que não é apenas o atingimento de uma maioria matemática de votos -, tornaria o processo uma formalidade vazia. Uma autêntica fraude à Constituição.
Dentro desse contexto, merece revisão certas posições da jurisprudência extremamente contencionistas e complacentes, ante o papel que a Justiça Eleitoral pretende exercer com o processo de prestação de contas e sob pena de "valer a pena" toda sorte de infrações às normas que regem o tema, que não gozaria de uma proteção judicial mínima.
É preciso, destarte, que os operadores do Direito Eleitoral e mesmo o corpo técnico responsável pela subsunção do princípio constitucional da prestação de contas aos casos concretos tenham em mente o princípio da vedação ao retrocesso democrático, a fim de evitar algumas interpretações benevolentes na matéria, assim como a necessidade de dar-se plena efetividade a tal controle.
2.3. Princípio da legalidade.
O clássico princípio da legalidade tem importância vital no estudo presente. É que o cidadão-candidato tem o direito de não ser obrigado a não ser por força de Lei, que é o instrumento pelo qual o Estado congrega a vontade da maioria e exerce a coercibilidade.
Nessa perspectiva, portanto, não se pode jamais perder de vista a garantia fundamental do art. 5.o, inciso II da Constituição Federal, já que também o candidato enquanto destinatário das normas de arrecadação e gastos de campanha não é "obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei."
A garantia também é da sociedade, pois o integral respeito pelos candidatos às rules of games são a base da própria idéia de democracia, que deve se pautar pela igualdade de chances entre os candidatos, violada numa disputada em que um candidato concorre respeitando a Lei e outro infringindo-a, o qual, ainda que matematicamente eleito, não possui legitimidade democrática do ponto de vista substancial.
A discussão aparentemente simplória e batida, na realidade ganha contornos mais complexos, na medida em que os grandes embates da jurisprudência do Direito Eleitoral giram em torno da interpretação de textos positivados, ou seja, as Leis existem e foram regularmente editadas pelo Parlamento, mas a captação do sentido e alcance dessas normas demandam atividade hermenêutica apurada, vislubrando-se de parcela relevante da jurisprudência uma forte tendência de releitura do princípio em testilha.
A dificuldade hermenêutica, em alguns casos, decorre da própria limitação linguística do legislador, que cria conceitos dúcteis, plásticos, ou seja, com grande abertura semântica.
O que seria exatamente, apenas para exemplificar, "normas de arrecadação e gastos de campanha" para os fins do art. 30-A da Lei 9.504/97?
Ou ainda, o que é "uso indevido" dos meios de comunicação social, para fins de investigação judicial eleitoral?
Vê-se, pois, que a legislação eleitoral, como a legislação como um todo, está repleta de conceito abertos e indeterminados, cabendo o esforço pela correta subsunção do fato à norma a cargo do Judiciário.
Mas desde já é importante rechaçar eventual tese da pura inconstitucionalidade de conceitos abertos (ou indeterminados) no ordenamento jurídico, tais como "ordem pública" (do Proceso Penal – requisito da prisão preventiva – art. 312 do Código de Processo Penal), "verossimilhança da alegação" (do Processo Civil – requisito da tutela antecipada – art. 273 do Código de Processo Civil), "relevância e urgência" (do Direito Constitucional – medidas provisórias – art. 62 da Constituição Federal), "relevante valor social ou moral" (do Direito Penal – homicídio privilegiado – art. 121, §1.o do Código Penal), entre inúmeras outras.
Isto é, não é viável simplesmente se alegar inconstitucionalidade desses conceitos, pelo só fato de serem voláteis. Isto, a rigor, seria apto a criar vácuos legislativos no trato de questões fundamentais, com grande instabilidade ao ordenamento jurídico. Esse raciocínio, a nosso juízo, seria válido apenas no campo das normas penais incriminadoras, e mesmo assim destinado a casos pontuais e bastante restritos [09].
Na realidade, a norma jurídica não tem como ser concreta, criada para o caso específico. Abstração, como se estuda desde a disciplina de Introdução ao Estudo do Direito, ao lado da coercibilidade, é um dos caracteres do Direito, que não é uma ciência exata.
Ao Juiz é que caberá fazer a subsunção do fato à norma. Toda norma terá seara aberta à interpretação, porque se assim não for não será norma, será decisão ou sentença, que é a norma aplicada ao caso concreto.
Assim, a abstração e a abertura são inerentes e inafastáveis à norma jurídica. Podem ser inconstitucionais determinadas aplicações práticas dadas a alguns conceitos abertos, mas não genericamente a técnica legislativa da abertura semântica em si, já que a tese contrária levaria à inconstitucionalidade de grande parte do próprio ordenamento jurídico e, pois, à séria insegurança jurídica e mesmo institucional.
Agora, o problema aqui reside em uma só palavra: o EXCESSO. Aliás, essa palavra – o EXCESSO – em todos os campos do Direito e das relações humanas ocupa o centro das discussões, muitas vezes, de forma imperceptível.
O que se quer dizer é que a prática da adoção de textos normativos excessivamente abertos, dúcteis, plásticos ou até líquidos, que a tudo se adaptam, pode sim ser ofensiva à garantia fundamental da reserva legal, criando-se insegurança jurídica.
Como se vê, a preocupação com o relativismo e a interpretação subjetiva da Lei, onde "tudo é tudo e nada é nada" (expressão do jurista Adriano Soares da Costa [10]) é absolutamente legítima, sobretudo no campo do Direito Eleitoral, que ocupa uma seara onde o jogo de forças pelo poder é imenso e é campo fértil o uso da volatilidade semântica e as tentativas de fraude aos sentidos da norma.
O sistema jurídico adotado no Brasil, quer se goste, quer não, é civil law e se rege por normas positivadas. O debate ora exposto, como um todo, entretanto, é antigo. As discussões entre jusnaturalistas versus positivistas são do século XIX, remontando raízes ainda mais remotas.
A evolução do estudo do tema passa pelas ontológicas disputas acadêmicas do século XX, tal como aquela travada entre os pensamentos de Carl Schmidtt em sua Teologia Política e, em outro bordo, a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.
Mais hodiernamente, o tema continua profícuo e tem sido objeto de debates acadêmicos dos mais acalourados, sobretudo entre as correntes chamadas fundamentalistas versus relativistas ou, noutras nomenclaturas, entre ativistas verbus contencionistas, ou normativistas versus realistas sociais, sendo fato, porém, que o aprofundamento dessas correntes de pensamento foge ao objeto deste trabalho e demandaria não só um, mas vários tratados na área da dogmática jurídica, da epistomologia jurídica e mesmo da filosofia do Direito.
Agora, é importante afirmar que é utópica a pretensão de total neutralidade científica do intérprete. Por outras palavras, é impossível a eliminação da pré-compreensão, isto é, das experiências e valores éticos e morais incorporadas ao ser humano antes de ter contato com a norma objeto de pesquisa ou aplicação.
Também nos parece induvidoso que mesmos os pós-positivistas mais convictos não chegam a desprezar por completo os princípios, ainda que como fonte normativa subsidiária, condição mínima indiscutível na atualidade, haja vista serem incontáveis os casos em que os próprios textos legais mencionam princípios da respectiva matéria ventilada.
Voltando à questão da pré-compreensão, que é a passo inicial do processo hermenêutico, ela é pré-juízo e pré-conceito que o intérprete tem do Ser, e o que é o Ser é tema sobre o qual filósofos se debatem através dos tempos. A pré-compreensão é um conceito pré-estabelecido sobre determinado tema, uma primeira impressão, um conceito firmado, porém, sem um estudo acadêmico, sem bases científicas e aprofundadas do assunto.
A respeito de qualquer tema o ser humano possui "pré-compreensões". Ela não é um mal em si mesma, exprimindo sim a carga de valores e da formação intelectual e moral de qualquer pessoa, dentre elas o intérprete. O perigo é ser "escravo" da pré-compreensão, justamente por não ter ela base científica ou metodológica.
Mesmo nas ciências exatas o pesquisador tem suas pré-compreensões, que lhe influenciam. Porém, é indiscutível que o sujeito (intérprete) jamais pode se sobrepor ou até substituir o objeto (norma), fazendo-o à sua imagem e semelhança, o que nada mais seria do que DESVIO, EXCESSO ou ABUSO hermenêutico.
No âmbito do Direito, que não é ciência exata, essa situação é mais grave, mas é importante destacar que a aplicação mais ortodoxa do princípio da legalidade estrita é essencial no Direito Penal, sobretudo na área das normas penais incriminadoras, sendo diferente a questão no Direito Eleitoral.
De tanto a tanto, é preciso ainda deixar claro que, como sempre, a virtude está no meio, nem tanto aos relativistas, nem tanto aos fundamentalistas, posto que também no Direito Eleitoral da mesma forma que gera insegurança jurídica a possibilidade de conclusão aberta pela ilicitude de algumas condutas, ainda que nos campos cível-eleitoral ou administrativo-eleitoral, também gera a mesma insegurança a inefetividade da proteção legal e judicial de determinados instituitos, como é o caso atual do conjunto de normas relativas à arrecadação e gastos de campanha, as quais não gozam da efetividade mínima necessária.
Dentro da discussão da legalidade, temos a questão dos limites das Resolução do TSE, tema riquíssimo que não poucas vezes cria até tensões entre Legislativo e Judiciário Eleitoral, como ocorreu recentemente com a questão da fidelidade partidária.
O pensamento clássico do Direito Administrativo a respeito do poder regulamentar é no sentido de que o regulamento está abaixo da Lei e esta, logicamente, abaixo da Constituição.
De modo geral, pode-se afirmar que para a maioria, inclusive da jurisprudência, não se tinha como viável a possibilidade de regulamentação direta de dispositivo constitucional em sede de ato infraconstitucional, como é o caso de uma Resolução, havendo, na mesma linha majoritária, repúdio à figura do "decreto autônomo".
Houve, entretanto, um histórico "porém" trazido pelo STF.
Foi o julgamento da ADC 12/DF que enfrentou o problema do nepotismo no âmbito do Poder Judiciário, tendo o STF validado Resolução do Conselho Nacional de Justiça que regulamentou autonomamente o assunto, elencando as hipóteses de vedação do nepotismo no Judiciário do país.
No caso do nepotismo, não havia – como até hoje não há – ato normativo intermediário entre a Constituição Federal e a Resolução do CNJ, tendo o STF (ADC 12/DF – Rel. Min. Carlos Ayres Britto – DJ 1.o/09/2006) validado a Resolução por entender que a mesma retira fundamento de validade direto do Texto Maior.
Após tal decisão, o STF voltou a repetir a mesma linha de pensamento sobre o poder regulamentar em diversos julgamentos relativos ao caso da fidelidade partidária, valendo destacar o julgamento do MS 26.603/DF - Rel. Min. Celso de Mello - DJe de 19/12/2008.
Mais recentemente, no julgamento da ADI 4086/DF o STF mais uma vez afirmou a constitucionalidade da Resolução n.o 22.610/2007 do Tribunal Superior Eleitoral que trata da regulamentação do processo de perda de mandato por infidelidade partidária, cuja Resolução também tem nítido caráter de regulamento autônomo.
Nos exemplos supra, não há ato normativo intermediário, ou seja, a regulamentação é direta do Texto Constitucional, o que representa a convalidação por parte do Supremo Tribunal Federal da tese da admissão do regulamento autônomo, como conseqüência da doutrina denominada "construção judicial do Direito".
Admite-se, claramente portanto, a possibilidade da Justiça Eleitoral editar atos na alçada de sua competência, no exercício do poder regulamentar, como lhe é permitido pelo Código Eleitoral, desde que compatíveis com a Constituição Federal.
2.4. Princípio da verdade material.
Como já dito, o regime jurídico da arrecadação e gastos de campanha sofreu forte alteração legislativa com o advento da Lei 11.300/2006, que trata da chamada mini-reforma eleitoral.
O escopo geral da reforma foi claramente trazer maior transparência e controle às prestações de contas, fazendo-as refletir, fielmente, os gastos reais da campanha e afastando-se qualquer procedimento que seja puramente formal, figurando o regramento jurídico das arrecadações e gastos como mais um instrumento para moralização das campanhas e fiscalização dos abusos e procedimentos aptos a causar desequilíbrio entre os concorrentes ou a privilegiar o capital financeiro como elemento determinante para o sucesso eleitoral.
Logo após a edição da Lei 11.300/2006, o Min. Marco Aurélio de Mello, no discurso de posse na Presidência do Tribunal Superior Eleitoral, declarou:
"Esqueçam a aprovação de contas com as famosas ressalvas. Passem ao largo das chicanas, dos jeitinhos, dos ardis possibilitados pelas entrelinhas dos diplomas legais. Repito: no que depender desta cadeira, não haverá condescendência de qualquer ordem. Nenhum fim legitimará o meio condenável" [11]
Apesar, como já registrado, das sempre presentes concepções contencionistas e inutilitaristas nesse tipo de matéria, em feitos que tenham como interessada a classe social que é destinatária do controle referido e do conseqüente desinteresse de alguns em dotar a prestação de contas da efetividade necessária, o novo modelo jurídico de tal procedimento é claramente na linha de fortalecer o controle judicial.
Uma das gêneses da mudança legislativa, quando se iniciou o movimento para se tratar a questão da prestação de contas com a seriedade que se exige, está presente no julgamento do Tribunal Superior Eleitoral em 2002 quando se revogou a súmula 16 de tal Corte ("A falta de abertura de conta bancária específica não é fundamento suficiente para rejeição de contas de campanha eleitoral, desde que, por outros elementos, se possa demonstrar a regularidade"), cujo teor foi desvirtuado pelos candidatos para se compreender como "facultativa" a abertura das contas, impossibilitando um controle minimamente eficaz dos gastos de campanha.
O postulado dos gastos reais de campanha nada mais é do que uma aplicação do clássico princípio da verdade real (ou material) ao processo administrativo-eleitoral de prestação de contas, que é regido pelo interesse público. Não faz sentido o desenvolvimento de uma atividade estatal, com grande custo de tempo de trabalho de magistrados, membros do Ministério Público e servidores da Justiça Eleitoral, apenas para a consecução de um fim puramente formal, uma satisfação insípida e inodora, distanciada da realidade das ruas e do mundo real.
A Justiça Eleitoral não pode ser tratada apenas como um instrumento de legitimação formal da administração financeira de uma campanha, como se a conquista matemática da condição majoritária de votos implicasse em desnecessidade de observância de outras regras e princípios que regem o processo eleitoral.
Ainda a respeito do princípio da verdade real, alguns julgados relativos a feitos de diversas naturezas em tramitação na Justiça Eleitoral deixam clara a sua aplicação nesta seara:
TRE/SC : "Tratando-se de prestação de contas, que possui caráter administrativo, a juntada de documentos é permitida em qualquer fase, pois o que se busca é a verdade real e a proteção ao interesse público." (TRE-SC – RAREG 9514/2005 – Rel. Osni Cardoso Filho – Procedência: Itapema-SC - DJESC - Diário da Justiça do Estado de Santa Catarina, Data 05/08/2005, Página 116 – Grifos acrescidos).
TRE/DF:"(...) Inobstante a deficiência probatória, contatando-se veementes os indícios de irregularidades, ainda que a fase instrutória esteja encerrada, a busca da verdade real autoriza, inconteste, sua reabertura, mormente em se tratando de matéria de relevante interesse público." (TRE-DF – IJE 326 – Rel. Nívio Geraldo Gonçalves - DJ - Diário de Justiça, Volume 3, Data 21/05/2002, Página 115 – Grifo nosso).
O princípio em questão determina, em suma, a fixação de um link entre a movimentação efetiva, das ruas, da realidade, com o que vier a ser declarado na prestação de contas, sem omissões ou procedimentos improvisados ou duvidosos.
2.5. Princípio da transparência.
A publicidade irrestrita da movimentação financeira de uma campanha eleitoral e mesmo partidária é um cânone fundamental para que o eleitor tenha real conhecimento em quem votar, porque é induvidoso o comprometimento entre o financiado e sua fonte de recursos.
Sobretudo na era da política dos marqueteiros, onde verdadeiros personagens dignos de premiações teatrais são criados na televisão e demais meios de comunicação social, qualquer discurso ou programa de governo pode ser artificialmente criado e comprado com fins de agradar o eleitor e, guiando-se por pesquisas junto ao eleitorado, levar ao eleitor o que ele exatamente quer ouvir e deseja de um governante.
Não é direito do eleitor apenas ter acesso às propostas assistindo o "guia eleitoral", mas é uma prerrogativa do cidadão saber tudo sobre a vida pregressa de quem lhe faz as proposições e, de suma relevância, ter pleno acesso às fontes de financiamento do candidato. Isto, porque tais dados formarão a base de informações para firmar seu convencimento no sentido de acreditar, ou não, se aquele que apresenta as propostas será realmente idôneo para concretizá-las.
Suponha-se a situação em que um candidato de um partido que defenda a doutrina ambientalista receba recursos de empresas responsáveis por atos de poluição e degradação ambiental. Ou um partido de base e doutrina pela defesa da classe operária, que tenha como proeminentes financiadores patrões e empregadores.
É evidente que a credibilidade das propostas e do discurso passam pelo amplo e irrestrito conhecimento dos financiadores de campanha e partidos. O eleitor tem o direito incondicional de saber quem são as pessoas ou empresas que doam, suas eventuais subsidiárias ou empresas conglomeradas, quem são os sócios na hipótese das empresas doadoras, o ramo de atividade dessas empresas e até mesmo o endereço onde as mesmas desempenham suas atividades.
A nosso sentir, do ponto de vista da democracia sufragada na Constituição Federal e independentemente de qualquer previsão normativa expressa, já não existe qualquer forma de sigilo nessa matéria, isto é, quanto à movimentação bancária de partidos e candidatos (da conta de campanha, é lógico), porque aqui o que se defende é um interesse muito maior do que a "intimidade" (?!) do partido ou candidato, que é um direito que está na essência da democracia, justamente o direito do eleitor de não ser vítima de estelionato eleitoral, de personagens e discursos criados pelo marketing político. Tal ponto é crucial e de ouro para um sufrágio realmente livre, consciente e qualificado.
Por ofensivo ao princípio da transparência é que devem ser repudiados os chamados "recursos de origem não-identificada", ou seja, depósitos que abarquem na conta oficial de campanha sem a qualificação do depositante, que, muito acertadamente no âmbito da Resolução 22.715/2008 do TSE, para as eleições de 2008, foram tratados de modo a não poderem ser usados pelo candidato, devendo, ao final, ser considerados como sobras de campanha e encaminhados à direção partidária para utilização exclusiva em institutos ou fundações de pesquisa e doutrinação política [12].
Também são atentatórias a este princípio doações provenientes de empresas que não têm sede conhecida, que não funcionem no plano dos fatos ("fantasmas") ou que não tenham faturamento regularmente conhecido.
Igualmente e ainda com base no princípio ora em estudo, qualquer procedimento apto a mascarar a fonte de recursos, como a falta de indicação de CPF ou CNPJ dos doadores (a partir dos quais se pode identificá-los) ou, por exemplo, o expediente muito usado no passado de sequer abrir conta oficial de campanha, devem ser repudiados, como bem fez o TSE ao revogar a antiga súmula 16 que representava uma benevolência e mais do que uma janela, configurava-se num verdadeiro e amplo portão para toda sorte de irregularidades, já que a conta bancária é peça-chave para o controle e registro das movimentações e conseqüente viabilidade da posterior investigação de ilícitos.
Dentro do princípio da transparência também se encontra como de fundamental importância a obrigação dos partidos políticos, coligações e candidatos apresentarem as prestações de contas parciais na internet, feitas ainda durante a campanha.
A imposição de tal obrigação decorre do art. 28 da Lei n.º 9.504/97 que estabelece: "Art. 28 (…) §4.º Os partidos políticos, as coligações e os candidatos são obrigados, durante a campanha eleitoral, a divulgar, pela rede mundial de computadores (internet), nos dias 6 de agosto e 6 de setembro, relatório discriminando os recursos em dinheiro ou estimáveis em dinheiro que tenham recebido para financiamento da campanha eleitoral, e os gastos que realizarem, em sítio criado pela Justiça Eleitoral para esse fim, exigindo-se a indicação dos nomes dos doadores e os respectivos valores doados somente na prestação de contas final de que tratam os incisos III e IV do art. 29 desta Lei." [13]
Efetivamente, para se arrecadar e gastar durante uma campanha diversas normas têm que ser observadas e uma delas é o dever de prestar contas, tanto no que se refere à parcial, como no que tange à final, sendo a primeira talvez até mais importante que a última.
Sobre a prestação de contas parcial, a doutrina tem lecionado [14]:
"Então, essa obrigação agora criada – de divulgação de contas parciais em agosto e setembro no sítio eletrônico da Justiça Eleitoral – é mais um passo na direção da transparência das contas das campanhas (leia-se informação), exatamente porque possibilita aos eleitores saber como estão o financiamento e os gastos de campanha de cada um dos candidatos. Não se trata de mais um expediente a ser exigido dos candidatos, uma quase formalidade, porque desta feita a informação é lançada diretamente aos olhos do eleitor, evidenciando-se a intenção do legislador de publicizar os bastidores da campanha até então guardados à intimidade.
Parece-nos apressado e irrefletido dizer, como já se vê em alguns julgados, que a inobservância dessa regra é irregularidade sem conseqüências, pelo só fato de o dispositivo legal em comento (art. 28, §4.º, da Lei n.º 9.504/97) estar desacompanhada de sanção específica.
Na verdade, o que a lei instituiu foi a obrigação de prestar contas durante a companha eleitoral e, mais importante, diretamente aos que delas devem se inteirar (os eleitores) para, como dito, decidir sobre o voto. Só isso já é o suficiente para se afastar qualquer tentativa de desqualificação destas contas parciais, porque não se concebe que as contas finais apresentadas à Justiça Eleitoral, depois das eleições, sejam mais importantes que aquelas acessíveis aos eleitores durante a campanha, porque divulgadas na Internet. Enquanto as contas levadas à Justiça Eleitoral abrem oportunidade ao exame de sua adequação à legislação – o que é sem dúvida importante instrumento de detecção de ilícitos –, as parciais de agosto e setembro que se dirigem ao eleitor, têm como objetivo tornar consciente o exercício do voto e legítimos substancialmente os resultados consagrados nas urnas, afirmando-se a democracia como governo do povo."
E a jurisprudência segue a mesma linha:
TRE/AL: "PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CAMPANHA. AVALIAÇÃO REALIZADA PELO ÓRGÃO DE CONTROLE INTERNO. AUSÊNCIA DE PRESTAÇÕES DE CONTAS PARCIAIS PARA DIVULGAÇÃO NA INTERNET. AUSÊNCIA DE DOCUMENTOS. DILIGÊNCIAS. IRREGULARIDADES NÃO SUPRIDAS. CONTAS REJEITADAS. DECISÃO UNÂNIME. Impõe-se a desaprovação das contas de candidato que, notificado para sanar as irregularidades apontadas, deixa transcorrer, sem manifestação, o prazo que lhe fora concedido, de acordo com o art. 35, caput, da Resolução TSE n. 22.250/06."
(TRE-AL – PC 2677/2006 – Rel. Leonardo Resende Martins – PSESS em 21/03/2007 - Destacamos).
Acrescente-se que o TSE ao disciplinar por meio da Resolução n.º 22.868/2008 a prestação de contas parcial para as eleições de 2008, previu expressamente que não é possível a apresentação da mesma de forma intempestiva, de modo que não apresentadas nos dias 06 de agosto e 06 de setembro do ano da eleição, considera-se desatendida a obrigação (art. 4.º da Resolução).
Assim, na mesma linha da doutrina do Dr. Edson de Resende Castro refutamos a corrente de jurisprudência que existe no sentido de considerar como um "nada jurídico" a não apresentação das parciais, exatamente por inutilizarem o sentido da norma, prejudicando o princípio da transparência e ferindo o direito de informação do eleitor, o qual, uma vez não apresentada a parcial durante a campanha, já estará ferido, devendo as contas serem rejeitas independentemente de outros vícios.
Outra situação prática – a título ainda de exemplo – que acarreta ofensa ao princípio da transparência é o chamado "saque na boca do caixa".
Sabe-se que toda a movimentação financeira deve se dar por meio de cheques nominais e cruzados e depósitos identificados, justamente para possibilitar o controle. Sacar "na boca do caixa" esvazia essa tentativa de controle e equivale à não-abertura de conta, pois a conta, admitida a movimentação em "dinheiro vivo" não faz os registros comprobatórios que são a teleologia da imposição de sua abertura e que possibilitam investigação eficaz posterior.
Nestas condições, a prática é manifestamente ilícita, violando normas expressas, dispondo no ponto a Resolução 22.715/2008-TSE:
"Art. 10. É obrigatória para o candidato e para o comitê financeiro a abertura de conta bancária específica para registrar todo o movimento financeiro da campanha, inclusive dos recursos próprios dos candidatos e dos oriundos da comercialização de produtos e realização de eventos, vedado o uso de conta bancária preexistente (Lei nº 9.504/97, art. 22, caput).
(...)
§ 4º A movimentação bancária de qualquer natureza será feita por meio de cheque nominal ou transferência bancária." (Destacamos)
Com efeito, a prática não permite a comprovação efetiva de que o dinheiro sacado ingressará na conta do credor e mesmo facilita esquemas de notas frias, de falsificações de recibos e outros documentos pouco idôneos e até de possível utilização dos recursos da conta para fins não-eleitorais, ou seja, despesa fora do rol taxativo do art. 26 da Lei 9.504/97.
Por outras palavras, só é possível movimentação de recursos da conta de campanha por meio de cheque nominal ou transferência e para fins de gastos de campanha, sendo que saque em espécie fere a transparência (e também a legalidade), pois não se terá a comprovação, por fonte fidedigna, de que o credor recebeu a quantia, como faz prova de qualidade, p. ex., um microfilme de cheque nominal sacado pelo credor.
No sentido de considerar ilícita a prática de "saque na boca do caixa" é tranqüila a jurisprudência:
TRE/GO: "PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CANDIDATO. ELEIÇÕES 2006. REGISTRO DE IRREGULARIDADES QUE, NO CONJUNTO, CONTAMINAM A PRESTAÇÃO DE CONTAS. REJEIÇÃO DAS CONTAS.
1. Esta Corte já firmou entendimento de que o ''saque na boca do caixa'' para pagamento de várias despesas, implica em irregularidades que acarretam a rejeição das contas.
2. Existência de falhas insanáveis, jungida a outros vícios que não foram supridos por completo, são motivos que maculam a prestação de contas.
3. Rejeição das contas, nos termos do art. 39, III, da Resolução TSE n.º 22.250/06."
(TRE-GO – PC 1390/2008 – Rel. Vitor Barboza Lenza – Goiânia/GO - DJ - Diário de Justiça, Volume 15322, Tomo 01, Data 11/09/2008, Página 01 – Grifos acrescidos).
Não poucas vezes, o "saque na boca do caixa" acontece no fechamento e, por incrível que pareça, até como forma de impedir a remessa da sobra de campanha ao Diretório Partidário, o que é mais uma violação frontal à Lei das Eleições [15].
2.6. Princípio da lisura.
Desse postulado decorre a reprovação a qualquer espécie de procedimento que possa caracterizar inidoneidade de dados ou documentos, como pré ou pós-datação, emissão de cheques sem provisão de fundos, juntada de notas fiscais inidôneas e outras práticas de notícia e suspeitas comuns em prestações de contas. Também informações duvidosas e sem plena comprovação não podem ser aceitas.
Uma suspeita muito presente em processos de prestação de contas diz respeito à datação retroativa de recibos de doação.
Com efeito, como será adiante melhor detalhado, há forte corrente jurisprudencial que vislumbra o recibo prévio de doação como documento indispensável e insubstituível para comprovar uma doação em campanha, levando a ausência de tal documento à desaprovação das contas.
Para as eleições de 2008 o TSE [16] não só sufragou esse pensamento, como também dificultou a prática de preenchimento de recibos de doação com data retroativa ao exigir que as doações, mesmo de bens estimáveis em dinheiro, fossem documentadas em recibos padronizados e numerados, emitidos pela direção partidária.
Na prática, contudo, o que ocorre é que muitas vezes os candidatos tão logo escolhidos em convenção iniciam sua campanha do ponto de vista financeiro sem qualquer preocupação com a organização de sua futura prestação de contas, a qual fica para o "contador resolver depois", tendo o profissional que ser um verdadeiro mágico, já que os fatos contábeis não foram registrados cronologicamente a partir de cada ocorrência.
Outro caso muito comum de violação ao princípio de lisura é a emissão de cheques sem provisão de fundos. A emissão de cheques sem fundos é um ilícito inclusive penal (art. 171, §2.o, VI do Código Penal), não podendo igualmente ser tolerada pela Justiça Eleitoral.
Obviamente, voltando sem fundos o cheque na primeira apresentação, mas sendo compensado na segunda, não há qualquer dificuldades e nem mesmo ilícito penal, talvez apenas ilícito civil em razão da mora, a depender das condições contratuais, contudo entendemos que o fato não gera conseqüências para a regularidade das contas.
O problema é a situação a partir da segunda devolução, quando a partir da qual o banco não mais aceitará a reapresentação. Em primeiro lugar, a preocupação do candidato deve ser com o adimplemento ao credor e, para tanto, a jurisprudência é clara ao esclarecer o caminho simples e correto que deve ser trilhado para adimplir o cheques sem fundos já reapresentados:
TRE/GO: "ELEIÇÕES 2006. PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATO. DISPOSIÇÕES DA LEI N.º 9.504/97 E DA RESOLUÇÃO TSE N.º 22.250/2006. IRREGULARIDADES.
(...Omissis...)
4. Não é possível que o candidato realize saques com cartão magnético, a teor do que dispõe o artigo 10, § 4º, da Resolução TSE 22.250/2006.
5. Emitido o cheque, este deve ser compensado até a data da prestação de contas, em não ocorrendo isso, deve o candidato apresentar justificativas. Em todo caso é dever seu relacioná-lo no Relatório de Despesas Efetuados, o que não ocorreu no presente caso.
6. Os cheques devolvidos por insuficiência de fundos devem ser resgatados mediante a troca por outro cheque, devendo este último ser compensado até a data da prestação de contas. Não havendo o resgate presumisse que a dívida encontra-se não quitada e contraria o artigo 19, § 1º, da Resolução TSE nº 22.250/2006.
7. Tendo em vista que a prestação de contas apresentada não respeitou os dispositivos da Lei n. 9.504/97 e da Resolução TSE n.º 22.250/2006, a rejeição das contas é medida que se impõe." (TRE/GO – PC 1263/2006 - Rel. ALVARO LARA DE ALMEIDA - SESSAO - Publicado em Sessão, Data 17/12/2006 - Destacamos).
Em suma, o candidato deve emitir um novo cheque e quitar a dívida em primeiro lugar, resgatando o título. Depois, anexar o cheque que voltou duas vezes sem fundos em original à própria prestação de contas e, por fim, fazer uma justificativa para o descontrole, que deverá ser analisada pelo Juiz Eleitoral.
Se for comprovado algum fato extraordinário, como um despesa não-prevista e urgente, p. ex., tudo devidamente provado por documentos, pelo menos em tese é defensável uma aprovação com ressalvas, a depender do caso concreto.
Agora, o grande problema é que além de cometer-se um ilícito, a emissão de cheques sem fundos por duas vezes implica no pagamento – com desconto bancário automático – de uma série de taxas e multas que não são gastos eleitorais, na forma do rol taxativo do art. 26 da Lei 9.504/97.
Então, tudo dependerá do caso, todavia, temos que de regra a emissão de cheques sem fundos, na hipótese de reapresentação, implica em desaprovação das contas, por violar também o princípio da destinação específica (art. 26 da Lei 9.504/97) em razão do valor das taxas e multas cobradas, salvo se o valor de tais taxas se enquadrar no conceito de princípio da insignificância, o que deve ser visto em cada caso.
Na realidade, o que deve ser rechaçado pela Justiça Eleitoral é aquele procedimento de juntada de recibo de quitação por parte do credor do cheque sem a devida transparência da fonte de recursos que originou aquela quitação. Isto porque tal procedimento caracteriza trânsito de recursos por fora da conta de campanha e implica em clara violação ao art. 22, §3.º da Lei 9.504/97 que estabelece:
"Art. 22. (...)
§ 3o O uso de recursos financeiros para pagamentos de gastos eleitorais que não provenham da conta específica de que trata o caput deste artigo implicará a desaprovação da prestação de contas do partido ou candidato; comprovado abuso de poder econômico, será cancelado o registro da candidatura ou cassado o diploma, se já houver sido outorgado." (Destacamos).
Sobre o tema vale citar precedente:
TRE/AC : "Prestação de contas – Eleições Gerais de 2006 – Utilização de quantia em dinheiro de origem desconhecida – Emissão de cheques sem fundos – Desaprovação.
1. A utilização de quantia em dinheiro de origem desconhecida, que deveria compor as sobras de campanha, bem como a emissão de cheques sem a devida provisão de fundos são causas suficientes a ensejar a desaprovação das contas e, ainda, a determinação de intimação do requerente para restituir os valores indevidamente utilizados na campanha eleitoral.
2. Prestação de contas desaprovada."
(Prestação de Contas n. 710 – classe 24; rel.: Juiz Wellington Carvalho; em 20.6.2007 - DESTACAMOS).
Também é importante destacar a repulsa a juntada de documentos fiscais inidôneos, já tendo no ponto decidido a Justiça Eleitoral:
TRE/RN: "REPRESENTAÇÃO - PARTIDO POLÍTICO - PRESTAÇÃO DE CONTAS ANUAL - EXISTÊNCIA DE DOCUMENTOS FISCAIS INIDÔNEOS - IMPROPRIEDADES QUE MACULAM A LISURA DAS CONTAS APRESENTADAS - DESAPROVAÇÃO - SUSPENSÃO DE QUOTAS DO FUNDO PARTIDÁRIO.
Desaprova-se a prestação de contas do Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB, tendo em vista que as impropriedades constatadas pela Coordenadoria de Controle Interno deste Regional, relativas à utilização de notas fiscais inidôneas pelo Partido para comprovar despesas, prejudicam a regularidade e lisura das contas analisadas." (TRE/RN – PC 852/2007 – Rel.a Juíza Soledade Fernandes - DJ - Diário de justiça, Data 25/08/2007, Página 56 – Sem destaques no original).
É de se concluir que quem almeja um cargo eletivo, sabedor que irá lidar também com prestações de contas de dinheiro público, desde logo tem de demonstrar organização, probidade e lisura nos procedimentos a cargo da Justiça Eleitoral, devendo indispensavelmente contar com uma assessoria contábil perene durante a campanha.
2.7. Dos princípios da contabilidade [17].
Alguns princípios técnicos da ciência contábil também devem ser aplicados ao processo de prestação de contas, passando-se a analisar resumidamente cada um deles.
O princípio da entidade é uma espécie de impessoalidade no relacionamento da empresa com seus sócios, ditando que a contabilidade deve ter plena distinção e separação entre pessoa física e pessoa jurídica. Isto é, o patrimônio da pessoa jurídica jamais se confunde com o dos seus sócios. A contabilidade da empresa (ou partido ou candidato, na hipótese do presente estudo) registra somente os atos e os fatos ocorridos que se refiram ao patrimônio da empresa e não os relacionados com o patrimônio particular de seus sócios. Não se misturam transações de uma empresa com as de outra (ou do partido com o candidato), mesmo que ambas sejam do mesmo grupo empresarial, é respeitada a individualidade.
Uma aplicação prática desse princípio ocorre quando o candidato deixa de elencar determinando bem na prestação de contas, aduzindo que já houvera apresentado na declaração de bens anexa ao pedido de registro de candidatura.
É o caso por exemplo da prestação de contas que possui gastos desconexos, como gasolina sem veículo. Não é incomum nessas situações vir a alegação de que o carro houvera sido declarado na relação de bens feita por ocasião do pedido de registro. Ora, não se confundem os bens pessoais do candidato com os de sua campanha, não se eximindo o mesmo da obrigação de informar no âmbito da prestação de contas o veículo, até porque não pode a Justiça Eleitoral presumir que o veículo pessoal foi utilizado e assim como o patrimônio privado não poderá futuramente (se eleito) se confundir com o público, também durante a campanha o privado não pode se confundir com o partidário, já que o candidato é um instrumento do partido para chegar ao poder e não o contrário, como já estudado.
Pelo princípio da oportunidade, entende-se que a integridade dos registros é de fundamental importância para a analise dos elementos patrimoniais, pois todos os fatos contábeis devem ser registrados, incluindo os das filiais, sucursais e demais dependências de um a mesma entidade. Este principio tem forte correlação com a tempestividade, pois implica registrar os fatos contábeis quando eles acontecem.
Já o princípio da tempestividade (ou do registro pelo valor original) implica em que os registros contábeis sejam feitos no momento em que o fato ocorra (tempestividade) e pelo seu valor completo (integralidade). Portanto, este princípio determina que o registro seja feito no momento da transferência de propriedade, através da emissão da Nota Fiscal (oportunidade), e pelo seu valor total (totalidade).
Os elementos patrimoniais devem ser registrados pela contabilidade por seus valores originais, expressos em moeda corrente do país. Assim, os registros da contabilidade são efetuados com embasamento no valor de aquisição do bem ou pelo custado de fabricação, incluindo-se, ainda, todos os gastos que foram necessários para colocar o bem em condições de gerar benefícios presentes ou futuros para a empresa; caso ela efetue transações em moeda estrangeira, os valores correspondentes devem ser convertidos à moeda nacional.
No campo eleitoral, deve-se ater que o registro dos fatos contábeis devem se dar sucessivamente no tempo real em que ocorrem ou o mais próximo possível dele. O profissional de contabilidade passa a ser, destarte, um assessor direto e indispensável durante toda a campanha.
Não é possível – pois do contrário certamente problemas virão – procurar um contador após as eleições, entregar-se documentos e informações e "montar" uma prestação de contas que não se baseia em fatos contábeis oportuna e cronologicamente registrados.
O princípio da competência estabelece que "as despesas e receitas devem ser contabilizadas como tais, no momento de sua ocorrência, independentemente de seu pagamento ou recebimento". Este princípio está ligado ao registro de todas as receitas e despesas de acordo com o fato gerador, no período de competência, independente de terem sido recebidas as receitas ou pagas as despesas. Assim, é fácil observar que o princípio da competência não está relacionado com recebimentos ou pagamentos, mas com o reconhecimento das receitas auferidas e das despesas incorridas em determinado período.
Expressamente, o Tribunal Superior Eleitoral consagrou tal princípio na Resolução 22.715/2008-TSE, que prevê:
"Art. 1.º (…)
§ 4.º Os gastos eleitorais efetivam-se na data da sua contratação, independentemente da realização do seu pagamento."
A regra é fundamental para evitar uma válvula de escape para encobrir o "caixa 2". Imagine-se a hipótese em que uma despesa "X", executada durante a campanha, deixou de ingressar numa prestação de contas que foi apresentada antes do prazo final de 30 dias (faltando 10 dias, suponha-se). Constatado o fato pela análise técnica e uma vez intimado para se manifestar sobre o tema, o candidato junta declaração do credor dando quitação e afirmando que antes do prazo de 30 dias após as eleições recebeu o valor. A alegação é irrelevante, pois a despesa deveria ter ingressado na própria prestação de contas, à luz do princípio da competência e da norma acima transcrita.
Outros princípios contábeis são os prudência, da continuidade e o da atualização monetária, os quais, porém, por terem por base uma contabilidade de longo prazo possuem pouca utilidade para o presente estudo.