Neste trabalho, pretendo ocupar-me do exame exegético de uma das hipóteses tributárias arroladas no art. 155, I, "b", da Constituição Federal, que autoriza os Estados e o Distrito Federal a "instituir impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior". Cuidarei especificamente da incidência do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços sobre o transporte, incluindo a hipótese de prestação de serviço de transporte de produtos industrializados para a exportação.
A análise e a compreensão do problema pretende - e deve - ser cuidadosa, esquivando-se do lugar comum que envolve as relações tributárias no Brasil: a avidez do aparelho de Estado para arrecadar, por um lado, e a resistência de muitos súditos de Estado em cumprir suas obrigações para com a Fazenda Pública. Afinal, "constitui ponto pacífico, atualmente, a assertiva segundo a qual a relação de tributação é uma relação jurídica e não uma relação de poder." (1)
O primeiro passo para compreensão do problema é o exame do texto da norma constitucional que instituiu o tributo. Neste contexto, recorde-se Pontes de Miranda, que ensina: "Interpretar a lei não é criticá-la: é inserir-se nela, e fazê-la viver. [...] Com antipatia não se interpreta, ataca-se; porque interpretar é pôr-se do lado do que se interpreta, numa intimidade maior do que permite qualquer anteposição, qualquer contraste, por mais consentinte, mais simpático, que seja, do intérprete com o texto. Portanto, a própria simpatia não basta. É preciso compenetrar-se do pensamento que esponta nas regras jurídicas escritas; e, penetrando nelas, dar-lhes a expansão doutrinária e prática que é o comentário jurídico." (2)
Ao contrário dos que querem ler mais do que encontra-se escrito, acredito que a leitura da norma deixa patente que o ICMS, para além das hipóteses que fogem ao âmbito do presente estudo (circulação de mercadorias e serviços de comunicação), incide sobre a prestação "de serviços de transporte interestadual e intermunicipal", ainda que iniciado no exterior. Em razão da ausência de restrição pelo legislador, fica patente que tanto os serviços de transporte de passageiros, quanto os serviços de transporte de bens, mercadorias e valores são tributáveis. Frise-se que o fato gerador, como deixado claro pela norma jurídica, é o serviço de transporte, não o transporte em si. Por óbvio, não há incidência do imposto quando tem-se mero transporte; por conseqüência lógica, é possível traçar como requisito para a incidência do ICMS sobre o transporte de passageiros, bens, mercadorias e/ou valores a onerosidade para o seu beneficiário, sem o que não se teria serviço, no sentido que a norma atribui ao vocábulo. Juridicamente falando, o transporte gracioso não constitui serviço.
Neste sentido, Alencar - dissertando sobre a regulamentação deste tributo em Minas Gerais - ressalta: "desde que o serviço de transporte intermunicipal e interestadual foi incluído na competência tributária estadual, as autoridades fazendárias vêm manifestando o entendimento, aliás, correto, da não ocorrência do fato gerador do ICMS, na hipótese do transporte efetuado por meio de veículo do próprio estabelecimento, quer remetente ou destinatário da mercadoria." (3)
Poder-se-ia argumentar que os vocábulos "interestadual" e "intermunicipal", utilizados na confecção do texto normativo, referem-se a traslados "entre Estados" e "entre Municípios", respectivamente; vale dizer, limitariam a incidência a trajetos que se iniciem em um Estado e terminem em outro ou que se iniciem em um Município e terminem em outro; a tal argumento, poder-se-ía acrescentar que se o legislador constituinte desejasse incluir "serviços de transporte internacional", tê-lo-ia feito de forma expressa.
É este o entendimento de Sacha Calmon Navarro Coelho e Moysez Candini, que retiram 3 conclusões da análise do art. 155, I, "b", da Carta Magna, quais sejam:
"a) serviço de transporte interestadual é o que é prestado entre Estados, isto é, inicia-se dentro dos limites territoriais de um Estado e encerra-se dentro dos limites territoriais de outro Estado;
b) serviço de transporte intermunicipal é o que é prestado entre Municípios, isto é, inicia-se dentro dos limites territoriais de um Município e encerra-se dentro dos limites territoriais de outro Município do mesmo Estado;
c) serviço de transporte internacional é o que é prestado entre países, isto é, inicia-se dentro dos limites territoriais do Brasil e encerra-se dentro dos limites territoriais de outro país. Esta modalidade de transporte, com prestação de serviço iniciada no Brasil, está fora da área de incidência do ICMS."
Por tais razões, entendem aqueles tributaristas que o serviço de transporte internacional de produtos destinado à exportação não está onerado pelo imposto, face ao "espírito constitucional de não se exportar tributos." (4)
O argumento, contudo, não procede. Com efeito, os vocábulos "interestadual" e "intermunicipal" também podem traduzir as idéias de "através dos Estados" e "através dos Municípios", ou seja, referir-se a trajetos que desbordem os limites de um Estado e de um Município, respectivamente. Em abono a este entendimento está a parte final do texto normativo: "ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior". Como se verifica, a primeira atribuição de sentido avençada ("entre estados" e "entre Municípios") não se sustenta diante da hipótese traçada na norma de um trajeto iniciado no exterior. Tem-se, por conseqüência, que também os serviços de transporte internacional constituem fato gerador para o ICMS.
Há uma outra linha exegética possível: o art. 155, I, "b", da Constituição da República permitiria tão-somente a tributação dos serviços de transporte internacional quando iniciados no exterior; os serviços de transporte iniciados em território nacional e com destino fora do território nacional estariam excluídos da hipótese de incidência traçada. Tal interpretação busca apoio na parte final do dispositivo, mas - creio - não corresponde à melhor leitura do que se encontra ali previsto; observe-se, a propósito, o núcleo normativo que se refere à hipótese aqui examinada:
"Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre [...]prestações de serviços de transporte interestadual e internacional [...], ainda que [...]as prestações se iniciem no exterior."
Sem dúvida, trata-se de um período composto, sendo que a segunda oração ("ainda que as prestações se iniciem no exterior") está subordinada à primeira; trata-se de uma oração subordinada adverbial (funcionam como advérbios, ou seja, exprimem as circunstâncias em que se desenvolve o processo verbal ou intensificam uma qualidade) concessiva. O elemento conectivo "ainda que", destarte, não está marcando uma exceção à regra estampada na oração principal, mas, isto sim, ampliando a autorização ali constante; gramaticalmente, esta ampliação da base de incidência não dá margem a uma leitura que leve à exclusão do serviço de transporte internacional iniciado no território nacional.
Destarte, a partir de uma exegese gramatical, é forçoso reconhecer que o legislador constituinte incluiu também os serviços de transporte internacional como fato gerador para a cobrança do ICMS, como, aliás, atesta (e não contesta) a parte final do art. 155, I, "b", da Lei Maior (que em lugar de restringir a incidência do tributo, cuidou de ampliá-la, como visto).
Há um outro argumento que poderia ser manejado para afirmar-se que o ICMS não incide sobre os serviços de transporte internacional de mercadorias quando iniciados no Brasil: uma pretensa exegese sistemática do inciso I, "b", do art. 155 da Constituição Federal, referenciado por seu parágrafo 2°, X, "a", que determina que o referido imposto "não incidirá sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados".
A interpretação sistemática da norma jurídica, como se sabe, parte da constatação de que o Direito constitui "uma unidade de composição de elementos distintos, correlacionados entre si, sendo essa composição essencial à função exercida pelo todo" (6). Ensina Coelho "consistir a chamada interpretação sistemática, simplesmente em considerar o preceito jurídico interpretando como parte do sistema normativo mais amplo que o envolve." (7)
O argumento sistêmico, contudo, não vinga na hipótese; na verdade, cuida-se, quando muito, de um denodado esforço retórico que parte da premissa equivocada de que também o dispositivo anotado no art. 155, §2°, X, "a", da Lei Maior, retiraria os serviços de transporte de produtos destinados à exportação da hipótese de incidência do ICMS. A tese, já de princípio, determinaria um limite à interpretação do inciso I, "b", do art. 155, pois, se adequada, limitaria a não-incidência apenas aos serviços de transporte de produtos industrializados que se destinem ao exterior; estariam, por conseqüência, excluídos os serviços de transporte de passageiros, bens, valores e de outras mercadorias que não fossem produtos industrializados, mesmo que se tratassem de produtos semi-elaborados (entendendo-se como tais os que fossem definidos em Lei Complementar) (8).
Mas nem mesmo para os serviços de transporte de produtos industrializados destinados ao exterior serve o argumento, pois a norma constitucional excepciona apenas "operações que destinem ao exterior produtos industrializados", e não o "serviço de transporte de produtos industrializados destinados ao exterior". É preciso observar que há uma distinção entre "operações" e "serviços" e que os vocábulos, ao contrário do que se poderia obter de uma leitura desavisada, não são sinônimos. As operações - e só elas - eram o núcleo do antigo Imposto de Circulação de Mercadoria, tributo que a Constituição outorgada em 1988 transformou no vigente ICMS. Geraldo Ataliba, em parecer publicado em 1975, bem o demonstrava, criticando os que pretendiam repousar o núcleo e o cerne da hipótese tributária na circulação ou nas mercadorias, que para ele seriam meros adjetivos das operações realizadas. (9)
Em artigo publicado 20 anos depois, Geraldo Ataliba ratifica o entendimento acima transcrito, complementando-o à luz do novo Texto Constitucional. "Operação é sinônimo, nesse contexto, de negócio jurídico, no caso, mercantil." Esse negócio, frisa o autor, apoiando em Baleeiro, necessita da "presença de duas pessoas". Assim, "sempre que haja relação jurídica negocial, de um lado, e mercadoria, de outro (como objeto daquela) - relação na qual um dos sujeitos (o que detém mercadoria) é titular dos direitos de disposição sobre ela e os transfere (operação) a outrem - haverá circulação." (10)
A tal hipótese tributária, o vigente Texto Constitucional, como visto, adicionou outra: "prestação de serviços de transporte", cuja extensão já foi, aqui, objeto de análise. Patente que este outro núcleo tributário não se confunde com o primeiro, vale dizer: não se confundem operação e serviço, tornando-se inequívoco que a isenção tratada pelo art. 155, §2°, X, alcança apenas as primeiras.
O Desembargador Xavier Ferreira, da Segunda Câmara Cível, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, destacou, quando examinava a apelação cível 84.262-2, a letra do inciso XII, "e", do mesmo art. 155, que estabelece: "cabe à lei complementar excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, a ". Assim, também esposando entendimento de que o serviço de transporte internacional, mesmo quando de produtos industrializados destinados à exportação, constitui fato gerador do ICMS, ressalta que, se assim não fosse, "estaríamos sendo conduzidos ao absurdo de se aplicar, por lei complementar, isenção a prestações de serviços que já estavam imunes pela lei hierarquicamente maior, que é a Constituição." (11)
Do que se examinou, a conclusão necessária é a da plena incidência do ICMS sobre o serviço transporte em geral (de passageiros, bens, valores, bem como de mercadorias de qualquer gênero), seja intermunicipal, seja interestadual, inicie-se no território nacional ou no exterior. Isto, frise-se, em qualquer hipótese. Desta forma, é certo afirmar que, observada a hipótese de não-incidência definida no art. 155, §2°, X, "a", da Constituição Federal, tem-se que as operações que destinem produtos industrializados ao exterior não constituem fato gerador da tributação; entretanto, eventuais serviços de transporte prestados ao longo destas operações são tributáveis. Apenas as operações, em si (ainda que incluam transporte por veículo próprio, do remetente ou do destinatário), não o são.
(1) MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991; p. 11.
(2) Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967; tomo I, p. 5.
(3) ALENCAR, Adão Nilton. "ICMS - Serviço de Transporte - Inovações". Eficaz, n° 88/89, março de 1993; p. 7.
(4) COELHO, Sacha Calmon Navarro. CANDINI, Moysez. "Subcontratação de frete internacional e ICMS". Eficaz, n° 132, junho de 1994; p. 3.
(5) Cf. CUNHA, Celso Ferreira. Gramática da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: FAE, 1986; p. 499, 562/563.
(6) MELO FILHO, Álvaro. Direito: Fundamentos Teóricos e Práticos. Rio de Janeiro: Forense, 1981; p. 6.
(7) COELHO, Luís Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 1979; p. 80.
(8) Sobre a questão da definição de produtos semi-elaborados, conferir REALE, Miguel. "ICM - Semi-elaborados". Igualmente, ATALIBA, Geraldo. "ICMS- Semi-elaborados". Ambos na Revista dos Tribunais n° 48, abril/junho de 1989; p.8/13. Igualmente, ATALIBA, Geraldo. "ICMS- Semi-elaborados".
(9) ATALIBA, Geraldo. Parecer publicado na Revista Forense n° 250, abri./mai/jun de 1975; p. 114/120.
(10) ATALIBA, Geraldo. "ICMS - Competência impositiva na Constituição de 1988". Revista de Direito Administrativo. N° 195, janeiro/março de 1994; p. 26/27.
(11) Revista Jurisprudência Mineira. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de Minas Gerais. n° 114, p. 196.