O direito à compensação de créditos do ICMS sofreu uma dura restrição com a publicação, em 11 de julho último, da Lei Complementar nº 102. Esta altera a Lei Kandir (Lei Complementar 87/96), que regulamenta tal imposto, da competência dos Estados-Membros e do Distrito Federal. O art. 1º da nova lei restringe a compensação de créditos na compra de mercadorias para o ativo fixo das empresas, além das operações de utilização de energia elétrica e telefonia, ferindo o princípio constitucional da não-cumulatividade.
Foram alterados o § 5º do art. 20 e o art. 33. O primeiro tratava das compensações do imposto na compra de mercadorias para o ativo fixo; e o segundo nos casos de utilização de energia elétrica e telefonia, que seguiam o princípio constitucional da não-cumulatividade. Como o ICMS está subordinado a este princípio, o imposto devido em cada etapa da cadeia produtiva deve ser abatido da etapa seguinte de modo que o valor efetivamente recolhido na venda final de um produto seja exatamente a alíquota prevista sobre o seu valor final.
O princípio da não-cumulatividade está expressamente contido no texto constitucional no art. 156, § 2º, I, e segundo a mais abalizada doutrina é amplo e não comporta limitações, principalmente por normas infraconstitucionais.
Questão sempre polêmica é a do direito de crédito do ICMS na compra de mercadorias destinadas ao ativo fixo das empresas, isto é, o bem que não entra diretamente na cadeia produtiva, mas ingressa no patrimônio da empresa. O art. 31, II, do Convênio ICM 66/88, diploma que foi substituído pela Lei Kandir, vedava tal crédito, e sempre foi questionado face a sua inconstitucionalidade. Justamente por isso o art. 20 da referida lei aplicou o princípio da não-cumulatividade na sua amplitude, garantido o direito a tais créditos.
Não obstante a correta técnica do legislador, veio ao lume recentemente a Lei Complementar nº 102/2000 alterando o parágrafo 5º do art. 20 da referida lei. Esta nova lei traz em sua redação a restrição do uso dos créditos em operações com mercadorias destinadas ao ativo fixo. Tais créditos não poderão mais ser utilizados de imediato. Deverão ser compensados em quarenta e oito parcelas mensais, e mais, sem a possibilidade de correção monetária.
No tocante ao art. 33, a nova lei restringe a utilização dos créditos referentes à utilização de energia elétrica e telefonia. Na primeira situação, a partir de agora, apenas poderão ser compensados os créditos provenientes (a) de operação de saída de energia elétrica, (b) quando consumida no processo de industrialização, (c) quando seu consumo resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção destas sobre as saídas ou prestações totais. Na questão da telefonia apenas é permitida a compensação (a) quando os serviços tenham sido prestados na execução de serviços da mesma natureza e (b) quando sua utilização resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção desta sobre as saídas ou prestações totais. O mais inusitado de tudo isso é que tal regime só permanecerá até 1º de janeiro de 2003, quando assumem os novos governadores e presidente.
Diante de tudo o que foi exposto, o que salta aos olhos é a flagrante inconstitucionalidade das novas redações dadas aos artigos da Lei Kandir. A não-cumulatividade é princípio constitucional e não comporta relativização por lei de menor porte. A lei complementar, seguindo atribuição do art. 155, § 2º, "c", da Constituição da República, deve disciplinar o regime de compensação do tributo (ICMS), o que, no entanto, não significa alterar ou reduzir tal direito, mas apenas especificar procedimentos, de forma a preservar os próprios Estados, e de modo a evitar o aparecimento de formas diferentes e conflitantes de compensação nos diversos membros da Federação. Tal lei, frisamos, nunca poderá afrontar dispositivo constitucional.
Reforçando esta opinião, o tributarista Roque Carrazza enfatiza que o "direito ao crédito (em favor do contribuinte e oponível ao Estado ou ao Distrito Federal) brota, inteiro, da própria Constituição e, por isso mesmo, não pode ser alterado, em sua substância, nem pela lei, nem pela Fazenda Pública. Também independe, para ser desfrutado, da efetiva cobrança do ICMS nas operações ou prestações anteriores. Ainda que tal cobrança não se dê, o direito ao crédito é indiscutível". (In: "ICMS", 6º ed. Malheiros, p.224)
Como não bastassem as ofensas aos preceitos constitucionais acima expostos, o art. 7º da Lei Complementar 102/2000 prevê que os seus dispositivos entram em vigor no primeiro dia do mês subseqüente ao da sua publicação. Esta disposição afronta diretamente o princípio da anterioridade tributária, insculpido no art. 150, III, da Constituição da República, que veda a exigência de tributo no mesmo exercício em que este tenha sido criado ou aumentado. Tal princípio abrange não apenas o aumento do tributo, mas a criação de qualquer alteração que venha a causar reflexo negativo no patrimônio do contribuinte, como no caso do aumento indireto. A restrição da compensação de crédito do ICMS é uma forma de aumentar o imposto de forma indireta, isto é, ao restringir a compensação o fisco passa a exigir um recolhimento maior, e tal medida precisa respeitar o princípio da anterioridade.
Diante do exposto acima, a conclusão a que se pode chegar é que estamos diante de novos abusos por parte do fisco que, na ânsia voraz de aumentar a arrecadação, mais uma vez despreza a Constituição da República e enfraquece ainda mais a ordem jurídica de nosso país. Ao contribuinte resta apegar-se à esperança de que o Judiciário, neste caso, dê a única resposta correta à sociedade, declarando a inconstitucionalidade dos novos dispositivos.