1. CONFLITO DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E O ISS
A competência tributária fixada nos arts. 153 a 156 da Constituição Federal é, em sua essência, técnica de repartição e de individualização de poderes e obrigações entre os entes federados no tocante à aptidão para instituição de tributos.
A eleição de hipóteses de incidência específicas para União, Estados, Municípios e Distrito Federal reflete a expressão máxima desse mecanismo constitucional, cuja preocupação precípua, a par de dotar os citados entes de meios para se autoorganizarem financeiramente, consiste também na prevenção de conflitos de poderes e atribuições, que potencialmente penalizariam o contribuinte com bitributações rechaçadas pela ordem jurídica vigente.
A Constituição Federal deu, assim, o primeiro passo rumo à pacificação de conflitos de competência em matéria tributária. Mas o papel principal de solução de conflitos pertence à lei complementar, visto que, segundo o art. 146, inciso I, da Carta Magna, cabe a esta "dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios."
A função primeira da lei complementar é, portanto, dirimir dúvidas quanto à aplicação das normas constitucionais relacionadas com qualquer aspecto da regra matriz de incidência. Para isso, inevitavelmente, faz-se necessário regular, ainda que de maneira não exauriente, todos os elementos ou critérios normativos aptos a deflagrar a relação jurídica tributária, quais sejam: critérios material, quantitativo, subjetivo, temporal e espacial.
Talvez essa seja a razão pela qual a Constituição Federal também delegou à lei complementar a fixação de normas gerais acerca da definição de tributos e suas espécies, fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos, conforme consigna a alínea "a", do inciso III, do art. 146.
Nesse contexto, é inequívoco que as normas veiculadas nos incisos I e III do dispositivo constitucional em questão se complementam na função de dirimir conflitos de competência. Contudo, no plano fático, a existência de lei complementar nem sempre se mostra suficiente para clarear, com precisão, o âmbito de atuação fiscal de cada ente político. Muitas vezes, ela tem exercido efeito contrário, criando "zonas cinzentas" e obscuras, cuja conseqüência imediata, na maior parte dos casos, é a instauração de tensão entre a materialidade de tributos diversos.
E nenhum outro imposto no atual ordenamento jurídico se revelou tão pródigo em ir de encontro ao aspecto material de outros tipos tributários quanto o ISS – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, previsto no art. 156, III, da Constituição Federal.
O texto constitucional pouco se dedicou ao ISS, restando à lei complementar esmiuçar a estrutura desse tributo, com a árdua tarefa de estabelecer o alcance de seu critério material de incidência: a prestação de serviço.
Desde o advento do Decreto-Lei nº 406/68, o legislador infraconstitucional optou pela técnica de "listagem" para explicitar quais serviços são abarcados pela hipótese de incidência do ISS. Dessa forma, estreitou-se legalmente a interpretação a ser conferida a variadas situações possivelmente tidas como serviço, ao ponto dos Tribunais Superiores aclamarem como numerus clausus a lista anexa aos diplomas complementares sobre o ISS.
Mas nem isso foi capaz de ceifar totalmente os conflitos de competência envolvendo o mencionado imposto.
A evolução tecnológica da economia introduziu na prestação de serviços características antes observadas exclusivamente na seara industrial, tornando dificultoso, em muitos casos, a distinção entre estas duas atividades.
E se não bastasse, para aprofundar a celeuma, a legislação sobre o IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados traz hipóteses de incidência idênticas àquelas previstas para o ISS, como o "beneficiamento", eleito como fato gerador do IPI pelo art. 4º., II, do Decreto nº. 4.544/2002 e do ISS pelo subitem 14.05 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003.
Atualmente, a mais nova polêmica acerca da cobrança do ISS e do IPI foi fomentada pelo Ato Declaratório Interpretativo nº 20/2007, de autoria da Receita Federal do Brasil.
Mediante este instrumento, a União, ao versar sobre a base de cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido, preconiza em seu art. 1º que "considera-se prestações de serviço as operações de industrialização por encomenda quando na composição total dos insumos do produto industrializado houver preponderância dos custos dos insumos fornecidos pelo encomendante."
Com isso, colocaram-se em foco novamente acaloradas discussões sobre alguns itens da lista de serviços da Lei Complementar nº 116/2003, já que no cotidiano da atividade fiscal dos Municípios muitos obstáculos para a identificação da real natureza jurídica de algumas situações previstas como hipóteses de incidência de tributária são encontrados, demonstrando a tênue linha que separa a prestação de serviços de outras atividades, como a industrialização.
Diante da problemática exposta, este trabalho tem por finalidade realizar uma sucinta análise da legalidade da incidência do ISS sobre atividades que envolvam industrialização por encomenda, com enfoque na recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.
2.BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ASPECTO MATERIAL DA REGRA MATRIZ DA INCIDÊNCIA DO ISS E DO IPI
Não se poderia admitir o exame de um conflito de competência entre dois impostos sem perquirir antes a materialidade das espécies tributárias cotejadas.
O aspecto material dos tributos corresponde ao ponto central da hipótese de incidência, mormente designado por um estado, situação ou comportamento humano do qual se infere uma presunção de riqueza e de capacidade contributiva.
A doutrina costuma associar a identificação da materialidade dos tributos a um verbo, seguido de um completo. Ilustrativamente, no caso específico do ISS, o aspecto material se revela por meio do verbo "prestar", somado ao substantivo "serviço". Assim, o núcleo da regra matriz de incidência pauta-se na ação de "prestar serviço", expressão sobre a qual fixaremos análise.
A previsão normativa máxima do ISS encontra-se no art. 156, III, da Constituição Federal de 1988, nos seguintes dizeres:
"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
..........................................................
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar;"
A Carta Magna faz uso da palavra "serviço" sem conceituá-la, mas colabora no seu delineamento na medida em que exclui de seu campo de abrangência aqueles já mencionados pelo art. 155, II, a saber: prestações de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. No mais, conferiu à lei complementar a atribuição de definir quais serviços dão ensejo à relação jurídica tributária entre o sujeito passivo e os Municípios.
O atual diploma regulador geral do ISS, a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, identifica os serviços passíveis de tributação por meio de uma lista, onde se individualizam centenas de condutas dos mais diversos segmentos econômicos.
Entretanto, como saber se os serviços listados na lei complementar se harmonizam com o comando constitucional? Para responder a essa pergunta, uma incursão no aspecto material do ISS é imprescindível.
Primeiramente, pondera-se que a hipótese de incidência do ISS é a "prestação de serviço" e não somente o "serviço". Explica José Eduardo Soares de Melo [01]:
"O cerne da materialidade da hipótese de incidência do imposto em comento não se circunscreve a "serviço", mas a uma "prestação de serviço", compreendendo um negócio (jurídico) pertinente a uma obrigação de "fazer", de conformidade com os postulados e diretrizes do direito privado."
Em se tratando de ISS, o delegado constitucional destinado aos Municípios confere-lhes competência para instituir o imposto sobre uma atividade (prestação) e não sobre o resultado dessa atividade (serviço).
Com efeito, a prestação de serviço consiste em uma obrigação de fazer. Frisa-se: não incide o imposto em comento sobre o resultado da obrigação, mas sobre a própria obrigação, mesmo porque nem sempre da atividade contratada se obterá um bem material e concreto. Daí o motivo pelo qual o verbo "prestar" é elemento de inequívoca essencialidade para a correta interpretação da hipótese de incidência do ISS.
O objeto da prestação de serviço é, pois, um comportamento ativo do prestador, uma ação positiva, que visa proporcionar uma utilidade ou comodidade para o seu tomador, acompanhada ou não do fornecimento de bens materiais ou imateriais. Assim, a prestação de serviço pode ainda envolver uma atividade puramente física ou intelectual, ou mesmo mista.
A pessoalidade da conduta humana é o principal traço característico da prestação do serviço. Marcelo Caron Baptista [02] ressalta essa qualidade, em um precioso ensinamento:
"Este tributo (ISS), portanto, é dirigido preponderantemente à atividade pessoal do sujeito passivo da relação jurídica patrimonial.
O tomador do serviço, quando contrata, objetiva não a apropriação de um bem, mas o resultado do esforço e da capacidade, física ou intelectual, da outra parte, ainda que esse resultado se expresse, no mundo fenomênico, por meio de um bem material. Prestação de serviço, por isso, é prestação jurídica de fazer."
O Superior Tribunal de Justiça [03] tem entendido em vastos precedentes que a prestação de serviço envolve diretamente um esforço humano e não dispensa a idéia de trabalho, somente incidindo sobre obrigações de fazer.
É oportuno lembrar que a prestação de serviço capaz de iniciar a obrigação tributária não pode ser executada a título gratuito, sem a remuneração contraprestativa correspondente, sob pena de se ignorar o signo presuntivo de riqueza do arquétipo tributário e violar o princípio da capacidade contributiva.
Sintetizando, nas palavras de Aires F. Barreto [04], "o aspecto material da hipótese de incidência do ISS é a conduta humana (prestação de serviço) consistente em desenvolver um esforço visando adimplir uma obrigação de fazer."
Por seu turno, o aspecto material do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados – está em primeiro plano encartado no art. 153, IV, da Constituição Federal:
"Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
..............................................
IV – produtos industrializados;"
Diferentemente do ISS, a hipótese de incidência do IPI assenta-se em uma obrigação de dar, que na acepção civilista, corresponde à relação jurídica na qual o sujeito passivo tem o dever ex lege ou convencional de entregar um certo bem ao sujeito ativo. Normalmente, esta entrega perfaz-se com a tradição (entrega de um bem móvel que acarreta na mudança de sua propriedade).
Desse modo, o aspecto material de incidência do IPI corresponde à obrigação de dar um produto industrializado. Mas o que vem a ser considerado um produto industrializado?
O art. 46, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, ao versar sobre o IPI, preconiza que "considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade ou o aperfeiçoe para o consumo."
O Decreto nº. 4.544, de 26 de dezembro de 2002, também versa sobre o conceito de produto industrializado e de industrialização nos seguintes termos:
"Art. 3
ºProduto industrializado é o resultante de qualquer operação definida neste Regulamento como industrialização, mesmo incompleta, parcial ou intermediária.Art. 4
ºCaracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como:I - a que, exercida sobre matérias-primas ou produtos intermediários, importe na obtenção de espécie nova (transformação);
II - a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto (beneficiamento);
III - a que consista na reunião de produtos, peças ou partes e de que resulte um novo produto ou unidade autônoma, ainda que sob a mesma classificação fiscal (montagem);
IV - a que importe em alterar a apresentação do produto, pela colocação da embalagem, ainda que em substituição da original, salvo quando a embalagem colocada se destine apenas ao transporte da mercadoria (acondicionamento ou reacondicionamento); ou
V - a que, exercida sobre produto usado ou parte remanescente de produto deteriorado ou inutilizado, renove ou restaure o produto para utilização (renovação ou recondicionamento).
Parágrafo único. São irrelevantes, para caracterizar a operação como industrialização, o processo utilizado para obtenção do produto e a localização e condições das instalações ou equipamentos empregados."
Mesmo existindo normatização, definir "industrialização" e "produto industrializado" mostra-se, em diversas situações, um trabalho árduo.
CRISTIANO CARVALHO [05] oferece o seguinte conteúdo aos termos em questão:
"O termo "industrializado" é um adjetivo proveniente de "indústria". Uma das acepções da "indústria é "conjuntos de atividades econômicas que produzem bens materiais pela transformação e pelo aproveitamento de matérias-primas.(...) Note-se que os bens produzidos pela indústria são fabricados em grande escala, ou como o próprio nome indica, em escala industrial. (...) Nesse sentido, produto industrializado posto à venda é uma mercadoria. Esses bens de consumo são produzidos indistintamente e colocados à disposição de quem quiser adquiri-los, seja nas prateleiras de supermercados, seja em lojas ou butiques. Os adquirentes desses bens são posteriores à sua produção, sendo que a indústria estima a demanda de tal bem antes de produzi-lo e, se tal cálculo não for acurado, a indústria corre o risco de ter os seus produtos encalhados nas prateleiras."
A despeito desses entraves, as normas acima citadas deixam patente que a industrialização não se exaure na obrigação de dar, mas também envolve prévia conduta positiva.
Dar um produto industrializado, portanto, pressupõe uma obrigação de fazer, consistente na modificação ou aperfeiçoamento de um dado objeto. Se assim não fosse, impossível seria se cogitar o adimplemento de uma obrigação de entrega de bem não retirado da natureza em seu estado puro, sem que houvesse uma ação humana anterior de criação, transformação ou aprimoramento da matéria prima.
O caráter misto do fenômeno da industrialização levou o ordenamento tributário em vigor a tradicionalmente diferenciá-lo da prestação de serviço segundo o critério de relevância atribuída a cada uma das obrigações que o compõe. Logo, no caso do IPI, a legislação considera mais relevante para delinear o seu fato gerador a entrega do bem industrializado, ou seja, o "dar", não obstante o "fazer" seja imprescindível para obter o produto cuja tradição perfaz a materialidade desse imposto.
A grande inovação trazida pela jurisprudência, em especial pelo STJ, consiste em alterar essa tradicional ótica de relevância das diversas obrigações que dão origem à industrialização, sobrepondo, para efeito de tributação, a obrigação de fazer à obrigação de dar, o que será visto pormenorizadamente a seguir.
3.A "INDUSTRIALIZAÇÃO POR ENCOMENDA" COMO HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ISS
Em 4 de novembro de 2008, a 1ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 888.852, decidiu por unanimidade reconhecer a "industrialização por encomenda" como hipótese de incidência do ISS. Eis a ementa do referido julgado:
"TRIBUTÁRIO. ISSQN. "INDUSTRIALIZAÇÃO POR ENCOMENDA". LEI COMPLEMENTAR 116/2003. LISTA DE SERVIÇOS ANEXA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO (OBRIGAÇÃO DE FAZER). ATIVIDADE FIM DA EMPRESA PRESTADORA. INCIDÊNCIA.
1. O artigo 153, III, da Constituição Federal de 1988, dispõe que compete aos Municípios instituir impostos sobre prestação de serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar.
2. O aspecto material da hipótese de incidência do ISS não se confunde com a materialidade do IPI e do ICMS. Isto porque: (i) excetuando as prestações de serviços de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal, o ICMS incide sobre operação mercantil (circulação de mercadoria), que se traduz numa "obrigação de dar" (artigo 155, II, da CF/88), na qual o interesse do credor encarta, preponderantemente, a entrega de um bem, pouco importando a atividade desenvolvida pelo devedor para proceder à tradição; e (ii) na tributação pelo IPI, a obrigação tributária consiste num "dar um produto industrializado" pelo próprio realizador da operação jurídica. "Embora este, anteriormente, tenha produzido um bem, consistente em seu esforço pessoal, sua obrigação consiste na entrega desse bem, no oferecimento de algo corpóreo, materializado, e que não decorra de encomenda específica do adquirente" (José Eduardo Soares de Melo, in "ICMS - Teoria e Prática", 8ª Ed., Ed. Dialética, São Paulo, 2005, pág. 65).
3. Deveras, o ISS, na sua configuração constitucional, incide sobre uma prestação de serviço, cujo conceito pressuposto pela Carta Magna eclipsa ad substantia obligatio in faciendo, inconfundível com a denominada obrigação de dar.
4. Desta sorte, o núcleo do critério material da regra matriz de incidência do ISS é a prestação de serviço, vale dizer: conduta humana consistente em desenvolver um esforço em favor de terceiro, visando a adimplir uma "obrigação de fazer" (o fim buscado pelo credor é o aproveitamento do serviço contratado).
5. É certo, portanto, que o alvo da tributação do ISS "é o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto. Não as sua etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias à obtenção do fim. (...) somente podem ser tomadas, para compreensão do ISS, as atividades entendidas como fim, correspondentes à prestação de um serviço integralmente considerado em cada item. Não se pode decompor um serviço porque previsto, em sua integridade, no respectivo item específico da lista da lei municipal nas várias ações-meio que o integram, para pretender tributá-las separadamente, isoladamente, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo, independente. Isso seria uma aberração jurídica, além de construir-se em desconsideração à hipótese de incidência do ISS."
(Aires Barreto, no artigo intitulado "ISS: Serviços de Despachos Aduaneiros/Momento de Ocorrência do Fato Imponível/Local de Prestação/Base de Cálculo/Arbitramento", in Revista de Direito Tributário nº 66, Ed. Malheiros, págs. 114/115 - citação efetuada por Leandro Paulsen, in Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, 8ª ed., Ed. Livraria do Advogado e Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul - ESMAFE, pág. 457).
6. Assim, "sempre que o intérprete conhecer o fim do contrato, ou seja, descobrir aquilo que denominamos de ''prestação-fim'', saberá ele que todos os demais atos relacionados a tal comportamento são apenas ''prestações-meio'' da sua realização" (Marcelo Caron Baptista, in "ISS: Do Texto à Norma - Doutrina e Jurisprudência da EC 18/65 à LC 116/03", Ed. Quartier Latin, São Paulo, 2005, pág. 284).
7. In casu, a empresa desenvolve atividades de desdobramento e beneficiamento (corte, recorte e/ou polimento), sob encomenda, de bloco e/ou chapa de granito e mármore (de propriedade de terceiro), sendo certo que, após o referido processo de industrialização, o produto retorna ao estabelecimento do proprietário (encomendante), que poderá exportá-lo, comercializá-lo no mercado interno ou submetê-lo à nova etapa de industrialização.
8. O Item 14, Subitem 14.05, da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003, ostenta o seguinte teor: "14 – Serviços relativos a bens de terceiros. (...) 14.05 – Restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos quaisquer."
9. A "industrialização por encomenda" constitui atividade-fim do prestador do aludido serviço, tendo em vista que, uma vez concluída, extingue o dever jurídico obrigacional que integra a relação jurídica instaurada entre o "prestador" (responsável pelo serviço encomendado) e o "tomador" (encomendante): a empresa que procede ao corte, recorte e polimento de granito ou mármore, de propriedade de terceiro, encerra sua atividade com a devolução, ao encomendante, do produto beneficiado.
10. Ademais, nas operações de remessa de bens ou mercadorias para "industrialização por encomenda", a suspensão do recolhimento do ICMS, registrada nas notas fiscais das tomadoras do serviço, decorre do posterior retorno dos bens ou mercadorias ao estabelecimento das encomendantes, que procederão à exportação, à comercialização no mercado interno ou à nova etapa de industrialização.
11. Destarte, a "industrialização por encomenda", elencada na Lista de Serviços da Lei Complementar 116/2003, caracteriza prestação de serviço (obrigação de fazer), fato jurídico tributável pelo ISSQN, não se enquadrando, portanto, nas hipóteses de incidência do ICMS (circulação de mercadoria - obrigação de dar - e prestações de serviço de comunicação e de transporte transmunicipal).
14. Recurso especial provido."
No voto do Ministro Relator, Desembargador Luiz Fux, restou consignado que quando a industrialização por encomenda elencada na lista de serviços da Lei Complementar nº 116/2003 constituir atividade fim de quem a desempenhe, caracteriza-se a prestação de serviço (obrigação de fazer), fato jurídico tributável pelo ISS.
Para chegar a essa conclusão, foram consideradas, precipuamente, as seguintes razões: a) as materialidades das hipóteses de incidências do IPI e ISS; b) a distinção entre atividade meio e atividade fim e c) o art. 1º do Ato Declaratório Interpretativo nº 20/2007 da Receita Federal do Brasil.
Na primeira delas, abordada no tópico anterior, desponta a dicotomia entre as obrigações de dar e de fazer, preponderante, no primeiro caso, no aspecto material do IPI e, no segundo caso, no aspecto material do ISS.
Nesse aspecto, a encomenda é encarada como um fator essencial para descortinar a correta hipótese de incidência observada no caso concreto, servindo como instrumento para distinguir as obrigações de fazer e de dar. Vale registrar que um dos primeiros fundamentos utilizados no acórdão em exame consiste no conceito de "produto industrializado" elaborado por José Eduardo Soares de Melo, para quem a encomenda específica feita pelo adquirente exclui a qualificação industrial da obrigação, sobrelevando o seu caráter in faciendo.
Para o STJ, o conceito de industrialização não se coaduna com a existência de pedidos por encomenda feitos pelo adquirente. Segundo o posicionamento daquele tribunal, na caracterização da industrialização é primordial que haja a padronização e a massificação do produto fabricado, destinado a um público consumidor indeterminado. Contudo, uma vez elaborado um produto que atenda a necessidades específicas de quem o encomenda, a obrigação de dar, essência original do fato gerador do IPI, é superada pela obrigação de fazer, transformando a elaboração do produto encomendado em um ato preponderante à sua mera entrega.
Quanto a esse contexto, é fundamental relembrar que o fato gerador do IPI, tal como o do ISS, também envolve uma obrigação de fazer prévia à tradição do produto industrializado. Entretanto, o que os diferencia é a circunstância de que no ISS, exige-se uma alta dose de pessoalidade na execução do serviço, porquanto o contrato de prestação de serviço objetiva não a apropriação de um bem, mas o resultado do esforço e da capacidade, física ou intelectual, da outra parte, ainda que esse resultado se expresse, no mundo fenomênico, por meio de um bem material.
O esforço humano empregado na prestação de serviço deve ser direcionado ao atendimento das necessidades específicas do tomador. Portanto, o pedido do cliente, na prestação de serviço, condiciona a natureza desse negócio jurídico, que é celebrado com o intuito de atender uma demanda certa e individualizada.
Já na industrialização, via de regra, o industrial elabora o produto e assume os riscos quanto à sua comercialização, que não se direciona a um cliente em especial, sobressaindo-se, assim, a obrigação de dar. Assim, na industrialização pura e simples, o processo de elaboração do produto leva em consideração padrões determinados pelo próprio industrial, com o escopo de atingir as necessidades do maior número possível de pessoas. O produto, portanto, é fabricado para um mercado geral; daí porque sua produção ocorre em larga escala e de forma padronizada, sem distinção entre o produto a ser entregue ao adquirente A ou B.
Com efeito, para a industrialização pura e simples, a elaboração do produto é mero antecedente da prestação principal do negócio jurídico, identificada pela tradição desse bem.
Assim, se a atividade rotulada como "industrialização" encontrar correspondência com algum item descrito na lista de serviços do ISS e constituir atividade principal da empresa, estará caracterizada a prestação de serviço, sendo, inexoravelmente, devido o imposto municipal.
A distinção entre atividade fim e meio também é outro argumento destacado pelo STJ.
Nem sempre a existência da obrigação de fazer garantirá per si a incidência do ISS. É consenso doutrinário que, para o surgimento do fato gerador do imposto sobre serviços, o cerne do pacto contratual celebrados entre as partes deve ser um comportamento do devedor em benefício do credor – um "esforço humano", como propaga a jurisprudência pátria. Porém, se o foco contratual voltar-se para a simples entrega de um bem corpóreo, não interessando ao credor "o que" e nem "como" fará devedor para obter o objeto do contrato, a prática de uma eventual prestação de serviço servirá apenas como instrumento (meio) para permitir a entrega esperada pelo credor, prevalecendo, assim, a obrigação de dar (prestação fim).
O interesse das partes contratantes, nesse diapasão, é de extrema relevância para identificar a ocorrência de uma prestação meio ou fim, cabendo a cobrança do ISS neste último caso.
O último dos argumentos suscitados pelo STJ tem por base a legislação o Ato Declaratório Interpretativo nº 20/2007, cujo art. 1º assim dispõe:
"Art. 1º. Considera-se prestação de serviço as operações de industrialização por encomenda quando na composição total dos insumos do produto industrializado houver preponderância dos custos dos insumos fornecidos pelo encomendante."
O Ato Declaratório Interpretativo, conforme aponta sua nomeclatura, é ato administrativo auxiliar na interpretação da legislação tributária federal, unificando e homogeneizando entendimento sobre determinada matéria no âmbito do Ministério da Fazenda. Embora se refira à regulamentação do imposto de renda de pessoa jurídica, o Ato Declaratório Interpretativo nº 20/2007 oferece uma segura diretriz para identificar e segregar fatos que, a princípio, poderiam ensejar conflito de incidência entre IPI e ISS.
E, mais uma vez, a tônica interpretativa adotada pela União valeu-se da pessoalidade presente na prestação de serviços para distingui-la da industrialização, pessoalidade esta representada pela encomenda feita pelo adquirente do produto industrializado.
Ratificando as linhas esboçadas anteriormente, o STJ abraçou de forma clara tese há tempos defendida por parte da doutrina quanto à relevância jurídica da pessoalidade na concepção e na confecção de um produto, determinada em função da encomenda feita pelo adquirente.
MARCELO CARON BAPTISTA [06], comentando ao alcance do art. 46, parágrafo único, do CTN, é um dos precursores deste entendimento:
"A interpretação isolada desse artigo efetivamente conduz à idéia de que toda e qualquer ação sobre materiais dá nascimento à relação tributária do IPI, mas, sistematicamente considerado, resta superado para aplicação em casos de industrialização por encomenda, por prevalecer a regra maior, pela qual foi reservada aos titulares da competência tributária do ISS a instituição de imposto sobre prestações-fim de fazer."
CRISTIANO CARVALHO [07] também endossa o cabimento do ISS na ocorrência da industrialização por encomenda:
"Destarte qualquer produto feito sob encomenda, ainda que industrializado, consubstancia-se numa obrigação de fazer, ainda que essa só se perfaça com a entrega do produto ao tomador. O imposto incidente nessa situação é o Imposto sobre Serviços, de competência municipal e não o IPI ou o ICMS."
KIYOSHI HARADA [08], por fim, corrobora este enfoque:
"A fronteira entre o IPI e o ISS, também, não é sempre clara. Não basta o simples esforço humano aplicado sobre bens móveis de qualquer natureza, resultando no acréscimo ou modificação de sua utilidade pela alteração de algumas de suas características, para afirmar que houve industrialização a legitimar a incidência do IPI. A moderna doutrina não dispensa do conceito de industrialização a produção de bem material em grande escala, em série, pela transformação e pelo aproveitamento de matérias-primas. Na chamada produção por encomenda, feita a partir das especificações ditadas por determinado cliente, sobressai-se a característica de ser o produto encomendado o único do mesmo gênero, ou seja, a produção encomendada é personalizada. Não se presta à exposição para venda ao público em geral. Sãos os casos, por exemplo, de cartões de visita e de softwares específicos para uso em determinada empresa. Nesses casos, há incidência do ISS."
Um breve adendo merece ser feito: nem toda a industrialização feita por encomenda constituirá hipótese de incidência do imposto municipal sobre serviços. O sistema de listagem taxativa adotado pela Lei Complementar nº 116/2003 em atendimento à parte final do art. 156, III, da Constituição, somente legitima a cobrança do ISS quando a industrialização por encomenda encontrar descrição correspondente em item incluído na lista anexa a este diploma legal, a exemplo da jurisprudência analisada neste singelo trabalho. Assim, a autoridade fiscal municipal, ao verificar a ocorrência de industrialização por encomenda e realizar o lançamento, deverá apontar o item de lista da Lei Complementar nº116/2003 que abrange o objeto do lançamento, sob pena de nulidade do ato. Por este motivo, também está excluída a possibilidade de utilização da analogia para equiparar a industrialização por encomenda à prestação de serviço, sem que haja previsão na Lei Complementar nº 116/2003 para tanto.
CONCLUSÃO
O julgamento do Recurso Especial 888.852 pelo STJ representou um importante marco para solucionar a longa discussão sobre a incidência do ISS ou do IPI em relação à industrialização por encomenda, amparado em tese já defendida há algum tempo pela doutrina, agora fortalecida pelo Ato Declaratório Interpretativo nº 20/2007.
Dentre todos os critérios considerados por aquele Tribunal, o que certamente desponta como o principal elemento diferenciador entre os fatos geradores destes dois impostos é a personificação do produto industrializado, levada a cabo pela encomenda feita pelo adquirente.
Conforme visto anteriormente, a encomenda possui o condão de transmutar a natureza jurídica da obrigação de dar para a obrigação de fazer, acarretando também na modificação da materialidade do imposto incidente sobre esta situação.
Na prática, tudo isso equivale a excluir a incidência do IPI – dando margem à cobrança do ISS – sobre a elaboração de produtos industrializados que atendam a exigências de um consumidor específico, ou de um grupo deles, já que sem a padronização e a massificação inerentes ao processo industrial clássico, desaparece a impessoalidade presente na concepção e na fabricação de bens de consumo destinados ao público em geral.
Frisa-se que a jurisprudência sobre a qual se enfocou o presente trabalho não é propriamente uma novidade no âmbito no STJ. Em vastos precedentes, o Tribunal assentou o entendimento pela incidência do ISS sobre a composição gráfica sob encomenda, prevista no item 13.05 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003, considerando-a como serviço mesmo que executada sob o rótulo de atividade industrial. Entretanto, o acórdão do Recurso Especial 888.852 é significativamente mais emblemático do que a jurisprudência acerca da composição gráfica, posto tratar da industrialização por encomenda com mais generalidade, possibilitando estender sua aplicação a qualquer item da lista de serviço com o qual se ajuste.
Finalizando, é possível afirmar atualmente que a industrialização por encomenda está pacificada como hipótese de incidência do ISS, tendo o STJ definido parâmetros importantes para dirimir conflitos de competência que rondavam as esferas tributárias dos municípios brasileiros e da União.
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CARVALHO, Cristiano. O IPI e a industrialização por encomenda. In: IPI – Aspectos jurídicos relevantes. Coordenação: Marcelo Magalhães Peixoto. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
DE MELO. José Eduardo Soares. ISS – aspectos teóricos e práticos. 4ª Edição. São Paulo: Dialética, 2005.
HARADA, Kiyoshi. Industrialização por encomenda: IPI/ICMS ou ISS?. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1702, 28 fev. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10992>. Acesso em: 27. set. 2009.
_____________. ISS: doutrina e prática. São Paulo: Atlas, 2008.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
Notas
- DE MELO. José Eduardo Soares. ISS – ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS. 4ª Edição. São Paulo: Dialética, 2005.
- BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: DO TEXO À NORMA. São Paulo: Quatier Latin, 2005.
- Nesse mesmo trilhar são os seguintes precedentes: REsp 838968 / SC, REsp 912388 / SC, REsp 912036 / RS, EDcl no AgRg no REsp 912388 / SC, REsp 771809 / MG, AgRg no REsp 877658 / RS, REsp 665476 / MG, REsp 615161 / PB.
- BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei. 2ª Ed. São Paulo: Dialética, 2005.
- CARVALHO, Cristiano. O IPI E A INDUSTRIALIZAÇÃO POR ENCOMENDA. In: IPI – ASPECTOS JURÍDICOS RELEVANTES. Coordenação: Marcelo Magalhães Peixoto. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
- Obra citada. P. 322.
- Obra citada. p.55.
- HARADA, Kiyoshi. Industrialização por encomenda: IPI/ICMS ou ISS? . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1702, 28 fev. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10992>. Acesso em: 27 set. 2009.