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Princípio da legalidade e da proporcionalidade como limites à discricionariedade administrativa.

Ordenamento jurídico brasileiro e português

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Agenda 24/02/2010 às 00:00

INTRODUÇÃO

Robert Alexy [01] explicita que os princípios são normas que permitem que algo seja realizado de maneira mais completa possível, tanto no que diz respeito à possibilidade jurídica quanto à possibilidade fática. E segue dizendo que princípios são mandados de otimização, que portanto, no tema em questão, inspiram o modo de agir da Administração Pública, principalmente no plano da discricionariedade.

O princípio da legalidade indica que a atuação do Administrador somente deve estar em conformidade com as diretrizes do ordenamento jurídico. E, o princípio da proporcionalidade utiliza os conceitos de adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito para que o agente público possa atuar da melhor forma e de acordo com o interesse público. Ambos os "mandados de otimização" são utilizados como limites a atuação discricionária do Poder Público.

O Legislador não é capaz de traçar todas as condutas que devem ser realizadas pela Administração. Assim, a própria lei oferece, em certas situações, uma margem de liberdade para que o Administrador possa valorar e ponderar sua escolha diante do administrado ou da própria Administração, com vistas ao interesse público. É o que a doutrina e jurisprudência denominam de discricionariedade administrativa.

Assim, para que não ocorra abuso do poder, quando a autoridade, embora competente para praticar certo ato administrativo, ultrapassa os limites de suas atribuições (excesso de poder), ou se desvia das finalidades administrativas (desvio de finalidade), ou se omite diante dos casos em que deva atuar, os princípios da legalidade e da proporcionalidade atuam como limites externos a discricionariedade permitida por lei.

Por fim, para se alcançar o objetivo do trabalho, tornou-se imperiosa uma pesquisa na doutrina e legislação brasileira, portuguesa e alemã, assim como em decisões judiciais dos principais tribunais. Para tanto, dividiu-se o artigo em quatro partes. Na primeira, estabelecem-se os marcos históricos e conceituais do Princípio da Legalidade. Em seguida, apresentam-se a evolução histórica, doutrinária e jurisprudencial do Princípio da Proporcionalidade. Na terceira parte, analisa-se a Discricionariedade Administrativa, seus fundamentos e sua diferenciação dos conceitos jurídicos indeterminados. E por fim, demonstra-se de que forma estes princípios limitam a Discricionariedade Administrativa na doutrina e na jurisprudência brasileira, portuguesa e alemã.


1. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Nos ensinamentos de Ronald Dworkin [02] as normas jurídicas são classificadas em princípios e em regras. Os princípios são postulados fundamentais de aplicabilidade e são mais abrangentes e mais abstratos do que as regras, isto porque, na hipótese de conflito, eles não se excluem do ordenamento jurídico. São dotados de valor ou razão que admite uma ponderação entre eles, o que não ocorre com as regras, que se aplicáveis em uma mesma situação, apenas uma delas prevalecerá.

Assim, o Princípio da Legalidade, sempre presente no ordenamento jurídico, se intensifica na segunda fase do Estado Moderno, que é o Estado de Direito. Carvalho Filho [03] afirma que esse novo Estado se baseia no fato de que, ao mesmo tempo em que ele cria o direito, deve estar a ele sujeito, consignando o Princípio da Legalidade.

Nesse sentido, Kelsen [04] assegura que "a expressão "Estado de Direito" é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, que seria aquele capaz de satisfazer os requisitos da democracia e da segurança jurídica" ou seja, "uma ordem jurídica centralizada onde a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis".

Na evolução para o Estado Social de Direito tem-se a busca pela igualdade e a ajuda aos mais necessitados no intuito de sobrepor o bem-estar coletivo em detrimento da liberdade e dos direitos individuais. Neste período, o Estado ansiava por soluções práticas e eficazes para a sociedade, contudo sempre pautado no que somente era permitido por lei, ou seja, no respeito ao Princípio da Legalidade.

Por fim, com as influências do ideal de democracia e o fracasso do Estado Social, por não resolver todas as situações sob seu comando, nasce o Estado Democrático de Direito. Tourinho [05] assevera que "a democracia implantada pelo Estado Democrático de Direito é um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, devendo ser exercido em seu proveito...". Ou seja, a essência deste Estado é a possibilidade de o povo eleger os seus representantes de forma direta, secreta e universal, que participam da formulação do ordenamento jurídico, aplicado na atividade estatal, administrativa e na regulamentação da sociedade, o que acentua o devido respeito ao Princípio da Legalidade.

A República Federativa Brasileira, conforme o preâmbulo de sua Constituição, constitui-se no Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o bem-estar social tem por fundamentos a soberania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º caput e incisos I e II da CRB) e por objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I da CRB) expressa no art. 5º, inciso II o princípio da legalidade.

Assim, a Carta Magna também dispõe que a Administração Pública de qualquer dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) obedecerá ao Princípio da Legalidade (art. 37 da CRB), assim como no art. 2º e inciso I da Lei nº 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo no âmbito da Administração Pública Federal) que dispõe "A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência."

No espaço europeu, o Tratado de Maastricht, também conhecido como Tratado da União Europeia (TUE), assinado dia 7 de fevereiro de 1992, funda-se no Estado de Direito, conforme o art. 6º do TUE, assim como notadamente no princípio da legalidade, dos direitos fundamentais e da democracia. Nesse sentido, a soberana República Federativa Portuguesa, que constitui em um Estado de Direito Democrático baseado na dignidade da pessoa humana, tem por objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 1º e 2º da CRP) e subordina os Estados e as entidades públicas a legalidade democrática, conforme art. 3º e 266, inciso I da CRP.

Também, o Código de Procedimento Administrativo (art. 3º, 1, do Decreto-Lei nº 442/1991) determina "Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos."

Por fim, o Estado Democrático de Direito Alemão (art. 20, §1º, da Lei Fundamental – Grundgesetz) dispõe que "todo o poder estatal emana do povo" e é exercido por ele "por meio de eleições e votações e através de órgãos especiais dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário" (art. 20, § 2º, da Lei Fundamental) e admite em sua ordem jurídica o respeito aos princípios da igualdade, da legalidade e outros próprios do Estado Social e Democrático de Direito [06]. É notória a presença do princípio da legalidade nos Estados Democráticos de Direito, sendo, portanto, importante analisar sua natureza, seu conceito e sua aplicabilidade na Administração Pública.

O Princípio da Legalidade deve ser respeitado por todo agente público e significa que toda e qualquer atividade administrativa deve ser permitida por lei. Isto representa uma garantia para os administrados e um limite para a atuação do Estado contra o abuso de poder (desvio/excesso de poder ou desvio de finalidade), pois, qualquer ato da Administração Pública somente terá validade se estiver em conformidade com lei.

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Nesse sentido, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello [07] que o princípio da legalidade "implica subordinação completa do administrador à lei. Todos os agentes públicos, desde o que lhe ocupe a cúspide até os mais modestos deles, devem ser instrumentos de fiel e dócil realização das finalidades normativas".

Assim, só é legítima e lícita a atividade do administrador público se estiver fundamentada no dispositivo de lei, diferentemente do que ocorre com o particular. Isto porque, o agente público só pode atuar onde a lei autoriza e o particular pode fazer tudo o que a lei não veda. [08]

A supremacia da lei expressa a vinculação da Administração ao Direito, no qual qualquer atuação que contrarie a norma legal é inválida, ou seja, qualquer intervenção na esfera individual, como restrições ao direito de liberdade ou ao de propriedade, deve ser autorizada por lei. [09]

Então, os Estados Democráticos de Direito devem assegurar a aplicação do princípio da legalidade em toda atuação da Administração Pública, ou seja, tanto nas atividades administrativas vinculadas como nas discricionárias [10], sempre em busca do interesse público e em respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais.


2. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O Princípio da Proporcionalidade, emanado das primeiras noções de Direito e concretizado na idéia jusracionalista do Iluminismo originou-se na Suíça e na Alemanha, com fundamento no principio da igualdade, sendo expandido para a doutrina e jurisprudência da Áustria, da Holanda, da Bélgica, dentre outros países europeus [11].

Precisamente teve por causa a margem de livre decisão administrativa e a propósito dos chamados atos de polícia, que na França surgiu na vertente da proibição do excesso, necessidade e indispensabilidade [12]. Este princípio tem por objetivo conter atos, decisões e condutas da Administração Pública que ultrapassem os limites adequados, exigindo que esta intervenha de forma equilibrada, sem excessos e proporcionalmente, sempre com vistas ao interesse público [13].

Afirma Luís Felipe Colaço Antunes [14] que o princípio da proporcionalidade "veio permitir a transformação do princípio da legalidade em princípio da juridicidade – regulador de toda a atividade administrativa – e com isso o abandono de um positivismo que tantas vezes nos oferece o entendimento monolítico do interesse público". Pode-se dizer que trouxe uma maior flexibilidade na análise das decisões do administrador público - seja por meio do controle administrativo ou jurisdicional [15] - ao serem ponderados os motivos de fato e de direito que levaram àquela atitude, diante de um caso concreto.

Importante ressaltar as diferenças existentes entre o princípio da razoabilidade, mais utilizado nos ordenamentos anglo-saxônicos e na Itália, e o princípio da proporcionalidade, difundido no ordenamento jurídico brasileiro, português e alemão. O primeiro princípio nasceu com perfil mais hermenêutico, subjetivista, abstrato, formal, mais utilizado no controle de legalidade, exigindo da Administração uma ponderação quantitativa e qualitativa dos direitos e interesses envolvidos [16].

Diferentemente do princípio da proporcionalidade que surgiu com direcionamento mais objetivo, material, na busca do balanceamento de valores, como a segurança, a liberdade e a justiça. Ele demonstra toda a sua relevância no controle concreto e incisivo do poder discricionário da Administração, ou seja, na intensidade e na adequação da análise do mérito administrativo [17].

Ademais, este princípio pode ser analisado em duas perspectivas: uma subjetiva e outra objetiva. A objetiva "reporta-se ao motivo ou causa da relação de proporcionalidade na tomada de decisão. Trata-se, então, de emanar um acto administrativo que permita atingir de forma idónea e adequada a realização do fim público". E a subjetiva "adquire tonalidades mais garantísticas, atenta a função relacional, e destina-se a evitar ou mitigar a compreensão dos direitos e liberdades individuais por parte da Administração, sem, contudo, perder de vista o objectivo a atingir" [18].

Na doutrina alemã, também utilizada na doutrina portuguesa e brasileira, pode-se ainda desdobrar o princípio da proporcionalidade em três subprincípios: o princípio da conformidade ou adequação de meios (Geeignetheit), o princípio da exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit) e princípio da porporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit). O primeiro exige que as medidas adotadas pela Administração Pública devem ser apropriadas à realização do interesse público, sendo necessário controlar a adequação medida e fim, ou melhor, o fim das leis diante da liberdade de conformação do legislador, principalmente nos casos da atuação discricionária da Administração [19].

O subprincípio da exigibilidade ou da necessidade expressa a idéia de que o cidadão tem de obter a menor desvantagem possível em qualquer atuação administrativa, ou melhor, que a Administração Pública deve adotar meios menos onerosos ao particular na obtenção do fim público. Limitando, portanto, o âmbito de intervenção do Estado, o tempo da medida coativa adotada e a qualidade ou quantidade de pessoas que devem ser sacrificadas em prol do bem coletivo [20].

E na concepção de Canotilho, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito é o princípio da justa medida, o qual é analisado se o resultado obtido com a intervenção da Administração Pública é proporcional a intensidade da coação empregada, como ocorre nas medidas [21] de polícia quando há restrição dos direitos individuais em detrimento do interesse público.

Sabe-se que o princípio da proporcionalidade tem por fundamento o princípio da igualdade, contudo, apesar de ambos visarem asseguar a justa medida e o equilíbrio dos atos do Estado, pressupondo uma base comum da racionalidade, não devem ser confundidos [21]. Na proporcionalidade em sentido estrito a Administração compara um ato com os objetivos por ela visados, ou seja, analisa uma relação meio-e-fim, ao passo que no princípio da igualdade há uma relação de meio-e-fim, mas sua comparação se dá entre dois ou mais atos administrativos [22].

Esta diferenciação pode ser exemplificada no seguinte sentido: quando uma medida de polícia é demasiadamente restritiva ao direito de propriedade ou ao direito de liberdade do particular, tem-se a violação do princípio da proporcionalidade, em virtude de a medida não ter sido adequada, exigível e vantajosa, no caso concreto. Contudo, se dois particulares estão na mesma situação jurídica e fática e uma medida de polícia é aplicada apenas a um deles, verificamos a violação do princípio da igualdade, mesmo que esta seja proporcional ou não ao fim perseguido.

A legislação brasileira prevê no caput do art. 2º da Lei 9784/1999 (Lei do Processo Administrativo no âmbito da Administração Pública Federal) que a Administração Pública abedecerá ao princípio da proporcionalidade, que para a doutrina majoritária [23] está expresso no inciso VI do mesmo artigo, qual seja "VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;". A jurisprudência segue nas palavras do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes:

O princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito [...]. Assim como há de perquirir-se na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto [...] [24].

Diferentemente da Constituição Brasileira, onde não há previsão expressa sobre este princípio, Guerra Filho [25] afirma que no artigo 18º da Constituição Portuguesa consagra o princípio da proporcionalidade presente na "força jurídica" dos preceitos constitucionais dos direitos fundamentais, assim como em "devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".

Também, no art. 266, inciso II da Carta Maior dispõe que "os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé."

E no art. 5º do Decreto-Lei nº 442/1991, o Código do Procedimento Administrativo Português prevê expressamente a aplicação do princípio da proporcionalidade à atuação do agente público, no sentido de que "As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar".

Grande inspirador da legislação e da doutrina lusitana e brasileira, o ordenamento jurídico alemão dispõe sobre a proporcionalidade no Código de Procedimento Administrativo da República Federal Alemã e na construção doutrinária da tríade Geeignetheit, Erforderlichkeit e Verhältnismässigkeit, ou seja, adequação, necessidade e proporcionalidade. Importando considerar os direitos fundamentais presentes na Lei Fundamental Alemã (Grundgesetz) como a proteção da dignidade do ser humano pelo Estado, das liberdades individuais (garantia do desenvolvimento da personalidade individual sem interferências do Estado ou de terceiros); da igualdade perante a lei, da inviolabilidade do domicílio e da propriedade, dentre outros que limitam a discricionariedade administrativa.

Assim, o princípio da proporcionalidade tem por escopo exigir que o administrador analise se há necessidade da prática de determinado ato ou procedimento administrativo, se serão adequados os meios utilizados por ele na busca do interesse público e se o resultado obtido com a intervenção foi proporcional ao ônus sofrido pelo particular ou até pela sociedade, em certos casos.


3. DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

Segundo Di Pietro [26] os poderes vinculado e discricionário são concedidos para garantir a posição de supremacia da Administração sobre o particular, sem os quais o fim público não seria atingido. E assim prossegue no sentido de que a vinculação se apresenta quando a Administração deve agir de forma determinada/específica diante dos requisitos previstos em lei e quando a lei estabelece a única solução possível diante de uma situação de fato, sem qualquer margem de apreciação subjetiva.

Contudo, o ordenamento jurídico de qualquer Estado não é capaz de regulamentar todas as situações fáticas da sociedade, por isso o Legislador define certos parâmetros aos quais a Administração Pública irá utilizar durante sua atividade. Assim, quando não há previsão legislativa delimitadora de um certo caso a própria Lei permite que o Administrador o valore por meio de critérios de conveniência e oportunidade, sempre em busca dos interesses coletivos. É o que a doutrina denomina de Poder Discricionário.

Segundo a doutrinadora, o fundamento jurídico à Discricionariedade no ordenamento brasileiro é a Teoria da formação do direito conforme a Pirâmide de Kelsen [27], pois a Constituição (norma pressuposta) que representa o escalão mais elevado do Direito Positivo, ou seja, o ápice da pirâmide kelseniana, serve de fundamento de validade das normas postas. Assim, a variação das normas postas ou a junção de novos elementos a estas normas é justificada por meio da discricionariedade [28].

No que concerne a natureza jurídica do instituto, acredita-se ser uma autonomia pública administrativa, conceituada por Afonso Queiró [29] definindo ser uma faculdade concedida pelo legislador à Administração para a escolha dentre uma série de bens jurídicos adequados à satisfação da necessidade pública tutelada pelo Direito.

Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles [30] conclui que a justificativa da atividade discricionária é a impossibilidade de o Legislador arrolar na Lei absolutamente todos os atos que a prática administrativa exige, ou seja, diante da diversidade dos fatos que pedem solução do Poder Público, só há regulamentação de atos de maior relevância, deixando o cometimento dos demais ao prudente critério do Administrador.

Para Carvalho Filho [31] o poder discricionário é "a prerrogativa concedida aos agentes administrativos de elegerem, entre várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse público". Isto porque a norma legal, adequada as circunstâncias do caso concreto, almeja a melhor solução dentre as permitidas pela lei, então caberá ao agente público aplicá-las razoável e racionalmente, satisfazendo a finalidade pública.

Importante ressaltar a concepção de Marcello Caetano [32] "o seu exercício (da discricionariedade) fica entregue ao critério do respectivo titular, deixando-lhe liberdade de escolha do procedimento a adoptar em cada caso como mais ajustado à realização do interesse público protegido pela norma que o confere". E mais especificamente nesta doutrina portuguesa, Sérvulo Correia [33] a caracteriza como a ponderação de interesses conflituantes, optando-se pela satisfação de algum deles, conforme dispõe a lei e com base em um raciocínio da prognose, ou melhor, um juízo de previsão de ocorrências futuras sociais, econômicas, técnicas, dentre outras.

Por fim, a definição da discricionariedade de Ernst Forsthoff [34] aceita na doutrina e na jurisprudência no Brasil, na Alemanha e em Portugal, consiste no "espaço livre de actuação e de decisão, de escolha entre vários tipos de conduta igualmente possíveis". Sem dúvida o conceito mais restrito, contudo, exato.

No ordenamento jurídico brasileiro, há a discricionariedade na atividade administrativa permitida por lei. Os exemplos de previsões expressas estão no § 2º do art. 51 da Constituição Federal e no art. 17 da Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitações Públicas) no que diz respeito a alienações de terras públicas, senão vejamos:

Art. 51. Serão revistos pelo Congresso Nacional, através de Comissão mista, nos três anos a contar da data da promulgação da Constituição, todas as doações, vendas e concessões de terras públicas com área superior a três mil hectares (..)

§ 2º - No caso de concessões e doações, a revisão obedecerá aos critérios de legalidade e de conveniência do interesse público."

E a Lei 8.666/1993:

Art. 17.  A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:

II- (...)

a) doação, permitida exclusivamente para fins e uso de interesse social, após avaliação de sua oportunidade e conveniência sócio-econômica, relativamente à escolha de outra forma de alienação;"

Também, a Lei 9784/1999 determina, no que se refere aos atos administrativos, que a "Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos."

A legislação lusitana prevê os casos em que o Administrador deve atuar com os princípios da boa-fé, da proporcionalidade, da igualdade, dentre outros, que servem de parâmetros à sua atuação discricionária, dependendo do caso concreto. Como por exemplo, os princípios fundamentais da Administração pública definidos no art. 266 da CRP e o art. 159 do CPA em que "salvo disposição em contrário, as reclamações e os recursos podem ter por fundamento a ilegalidade ou a inconveniência do acto administrativo impugnado".

Outro exemplo está no Código dos Contratos Públicos, senão vejamos o art. 337, nº 2:

Os contratos pelos quais o contraente público se vincula a praticar, ou não praticar, um acto administrativo com certo conteúdo extinguem-se por força da alteração ou da impossibilidade superveniente de concretização dos pressupostos que ditariam o exercício da discricionariedade administrativa no sentido convencionado."

Há doutrinadores [35] que distinguem a discricionariedade com caráter administrativo e a com caráter técnico. A primeira ocorre quando a Administração tem oportunidade de atuar ou não, e de escolher dentre as diversas soluções para o caso concreto. Entretanto, na discricionariedade de caráter técnico, há livre apreciação por meio de um perito, contudo, em ambas nunca o ato administrativo é inteiramente livre. Creio que nos dois casos hé discricionariedade administrativa que será limitada pela legalidade e pelo princ´pio da proporcionalidade.

Seguindo a análise doutrinária, na alemã, a discricionariedade contém elementos de natureza diferentes. Na concepção de Stahl [36] um elemento é a escolha do administrador "entre vários tipos de conduta igualmente possíveis" e o outro, seria "o espaço de livre actuação e de decisão". Ocorre que esta segunda concepção não é compatível com o Estado Democrático de Direito, pois deve haver limites legais no espaço de decisão do agente público.

Nesta linha, na doutrina e na jurisprudência da Alemanha Federal, de Portugal, do Brasil e de todos os países do sistema continental europeu aceitam os dois elementos para estudo e análise doutrinária. É a denominada "discricionariedade limitada", porém, se são Estados Democráticos de Direito seria exigível que a discricionariedade seja a escolha entre vários tipos de conduta, e não o espaço de livre decisão.

Se fossemos adotar a discricionariedade como livre espaço de decisão, o ato não estaria totalmente pré-determinado por uma lei, nem poderia ser controlado pelo tribunal ou pela própria administração (Autotutela Administrativa), como ocorre no Brasil, visto que não há Tribunal Administrativo (contencioso administrativo). Entretanto, a doutrina e jurisprudência Autríaca, Sueca e Alemã admitem a independência da discricionariedade do Poder Legislativo e do Poder Judicial, pois não estaria limitada somente a legislação, nem seria totalmente controlada pelo judiciário [37].

Seguindo a doutrina alemã, Bullinger [38] discorre que com a teoria da essencialidade, a discricionariedade administrativa se torna um instrumento essencial à flexibilidade e dinâmica moderna e ao fortalecimento dos direitos e interesses dos cidadãos. Isto porque a essencialidade da Administração é a possibilidade de reagir eficaz e rapidamente ao caso concreto, sem que o Tribunal a delimite e desde que o Legislador permita tal flexibilidade.

Há questionamentos se nesta teoria há discricionariedade ilimitada (liberdade ao administrador), porém reafirmo que se não houver o mínimo de vinculação, ou melhor, a mantença do núcleo essencial [39] regulamentado, não há Estado de Direito. Deve haver expressa vontade do Legislador, seja por meio de cláusulas discricionárias [40], como as expressões "pode", "está autorizado", seja quando dispõe "de acordo com os critérios de oportunidade e conveniência".

Resumindo a Teoria da essencialidade tem-se que a Administração deve analisar o fim especial da lei, deve conceder ao Administrador uma ampla liberdade de criação, deve proteger em especial os direitos fundamentais atingidos e, sobretudo, deve concretizar os preceitos da Lei.

Este doutrinador também distingue os diferentes tipos [41] de discricionariedade: a discricionariedade tática, as autorizações de exceção, a discricionariedade de planificação e a discricionariedade de gestão. A primeira ocorre quando é atribuída pela lei à Administração um espaço livre de decisão própria para que ela possa concretizar os fins da lei, tendo em vista as circunstâncias do caso concreto [42]. Penso que este conceito é o mais adequado ao Estado de Direito.

As autorizações de exceção (Dispensermessen) ocorrem nos casos em que a lei autoriza, de acordo com pressupostos previstos em lei, a dispensa de circunstâncias que ela prevê o rigor, como a dispensa de licitação pública nos casos de urgência, dentre outros. Depois, a discricionariedade de planificação (Planungsermessen) significa que em um determinado plano administrativo torna-se necessária a análise e ponderação dos fins e interesses de relevância jurídica. E enfim, a discricionariedade de gestão determina que deve ser atribuído ao órgão administrativo uma liberdade para que se possa realizar os fins da Administração Pública, utilizando a lei apenas para fixar limites externos a sua conduta [43].

Diante do exposto, discricionariedade não é arbitrariedade, não é liberdade ao extremo, pois a Administração atua dentro do espaço de livre decisão conferido pelo bloco de legalidade [44], na qual o Administrador competente atua no melhor caminho para a única decisão justa e juridicamente possível, com base num juízo de prognose e na composição de interesses em jogo ao bem da coletividade.

Sobre a autora
Natalia Mascarenhas Simões

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará, Brasil. Advogada. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco/ CPC Marcato (lato sensu), Goiânia, Goiás, Brasil. Mestranda em Direito na área de especialização jurídico-política pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Portugal. Doutoranda na área de especialização de Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIMÕES, Natalia Mascarenhas. Princípio da legalidade e da proporcionalidade como limites à discricionariedade administrativa.: Ordenamento jurídico brasileiro e português. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2429, 24 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14402. Acesso em: 23 dez. 2024.

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