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As Malvinas são argentinas?

1. Introdução

Recentemente, o governo argentino voltou a reivindicar sua soberania sobre o território das Ilhas Malvinas (ou Falkland). A questão surgiu com o início da perfuração de poços de petróleo por uma empresa inglesa na bacia das Malvinas, arquipélago localizado na costa sudeste da Argentina, com área total aproximada de 12.200 km2, e população em torno de 3.000 habitantes.

Como revide ao início das atividades, a presidente argentina editou um decreto vedando a livre navegação de embarcações entre o território argentino e as Malvinas, que passou a ser condicionada à prévia autorização. Em contrapartida, o governo inglês enviou reforço militar ao local.

Dificilmente haverá um conflito internacional, já previamente rejeitado pela presidente argentina, que declarou ter interesse em pressionar a Inglaterra somente para a retomada das negociações.


2. Antecedentes Históricos

Os problemas na região começaram no Século XVIII: a) em 1764 a França instalou uma base naval no local, denominada de Isles Malouines (inspirado pelo porto de partida, de St. Malo, e de onde derivou o nome Malvinas) pelo navegador Antoine Louise de Bougainville; b) contudo, em 1765 a Inglaterra também alojou uma base naval em uma das ilhas (em expedição comandada por John Byron, avô do poeta Lorde Byron), posteriormente denominadas Falkland; c) no ano seguinte (1766), a França alienou sua base naval para a Espanha (em respeito à Bula papal Inter Coetera, de 1493, que concede aos reis espanhóis as terras descobertas ou a descobrir existentes após cem léguas a partir das ilhas dos Açores e Cabo Verde), que declarou guerra à Inglaterra, pela presença indevida no local (considerando que a Argentina era uma colônia espanhola); d) em 1767 os países chegaram a um consenso, ficando a parte leste para a Espanha, e a região oeste do arquipélago sob o controle britânico; e) porém, em 1769/1770 a Espanha tentou a retirada dos ingleses de Port Egmont, mas recuou após a ameaça de declaração de guerra pelo governo britânico; f) nos anos seguintes, por motivos econômicos, a Inglaterra iniciou um processo de retirada de suas guarnições militares no exterior, e em 20 de maio de 1776 foi feita a saída das ilhas Falkland, porém, a bandeira britânica foi mantida no local, bem como uma placa reivindicando a soberania inglesa; g) apesar de ter um posto militar e uma colônia penal nas ilhas (no Porto Soledad), a Espanha não explorou o interior das Malvinas, tampouco se preocupou em colonizá-la, e retirou seu último governador do local em 1806, contudo, da mesma forma que os ingleses, deixou uma placa no lugar ressalvando sua soberania; h) com a independência da Argentina em 1816, o país reivindicou sua soberania sobre as Malvinas no ano de 1820, fixando a bandeira nacional em Porto Soledad no dia 6 de novembro; i) em 1826, o governo argentino concedeu uma concessão de exploração das ilhas ao francês Louis Vernet, que tinha interesse em capturar e criar o gado selvagem, e que posteriormente obteve permissão para fundar uma colônia, mas sempre pediu visto à Inglaterra para viajar e explorar a parte leste do arquipélago (ou seja, reconhecendo a soberania daquele país sobre parte do território); j) com o êxito da colonização e da exploração das terras por Vernet, Inglaterra e Argentina voltaram a se interessar pelas ilhas, sendo que esta enviou para lá um novo governador, Don Juan Esteban Mestivier, que foi assassinado logo após seu desembarque, sendo substituído por Don José Maria Pinedo; k) como resposta (e também para conter atividades ilegais praticadas por estadunidenses, que aproveitavam a falta de controle e fiscalização), a Inglaterra retomou as ilhas em dezembro de 1832 (Port Egmont) e em janeiro de 1833 (Port Louis), removendo a bandeira argentina de Port Louis e expulsando os militares argentinos, inclusive o governador Don Pinedo; l) as Malvinas ainda presenciaram alguns conflitos em 1833, e a partir de 1839 efetivamente teve início a colonização britânica, com a conclusão das obras e a designação da localidade de Stanley como a nova (e atual) capital em 1845 (nome conferido como homenagem a Lord Stanley, então Secretário de Estado Britânico para as Colônias) [01].

A partir de então, o arquipélago passou por um período de relativa calmaria (com exceção das duas Guerras Mundiais, nas quais foi eventualmente utilizado como passagem por navios), até a década de 1960.

Em 14 de dezembro de 1960, durante a Assembléia-Geral da ONU, aprovou-se a Resolução nº 1514, consistente em uma Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais. Essa Declaração proclama a necessidade de levar o colonialismo (em todas as suas formas e manifestações) a um fim rápido e incondicional, e declara, em seu Artigo 2, que todos os povos têm direito à autodeterminação, podendo livremente definir sua condição política. Além disso, seu Artigo 5 determinava que medidas imediatas deveriam ser tomadas para que todos os territórios que ainda não tivessem alcançado a independência recebessem todos os poderes inerentes a tanto, sem condições ou reservas, de acordo com sua vontade livremente expressa, e sem qualquer distinção de raça, credo ou cor.

Com base nessa Declaração, em 1964 a Argentina reivindicou a sua soberania sobre as ilhas ao Comitê das Nações Unidas para a Descolonização, enquanto a Inglaterra argumentou que não se tratava de um caso de descolonização, mas sim de um conflito territorial.

No ano seguinte, o Comitê decidiu que efetivamente era uma situação de descolonização, e que os dois países envolvidos deveriam imediatamente iniciar negociações, a fim de se chegar a uma solução pacífica para o caso, levando em conta o interesse da população do arquipélago.

Também em 1965, a Assembléia-Geral da ONU editou a Resolução nº 2065, convidando os governos dos dois países a prosseguir nas negociações recomendadas pelo Comitê, levando em consideração a Carta da ONU, a Resolução nº 1514 e os interesses da população do arquipélago. A resolução prevê ainda que os dois Estados deveriam apresentar no ano seguinte um relatório, contendo os resultados de suas negociações.

A questão das Ilhas Malvinas (ou Falkland) foi objeto de várias resoluções posteriores da Assembléia-Geral da ONU, principalmente as de nº 3160/1973, 31/49 de 1976, 37/9 de 1982, 39/6 de 1984, 40/21 de 1985, 41/40 de 1986, 42/19 de 1987, e 43/25 de 1988, nas quais se ratificou o pedido de que os países envolvidos chegassem a uma solução pacífica, levando em consideração o interesse da população local.

Porém, a despeito (ou melhor, em virtude da postura omissiva) das manifestações da ONU, em março de 1982, navios militares argentinos, supostamente escoltando navios mercantes, passaram a navegar o arquipélago, o que motivou a exigência, pelo governo britânico, de sua retirada. Como resposta, a Argentina declarou guerra à Inglaterra, e iniciou os ataques às ilhas no dia 2 de abril. Assim, os dois países se envolveram na denominada Guerra das Malvinas, que encerrou brevemente, em 14 de junho de 1982, com a derrota argentina (e o enfraquecimento da ditadura militar então existente).

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A partir de então, as negociações não avançaram, mesmo com a insistência da Argentina, que em 2004 reafirmou a ilegalidade da ocupação inglesa perante o Comitê das Nações Unidas para a Descolonização. Em dezembro de 2008, os Chefes de Estado e de Governo dos países da América Latina e do Caribe publicaram um comunicado, reafirmando a necessidade de uma rápida solução pacífica para a controvérsia.


3. Noções de Soberania

Antes de discorrer sobre os problemas atuais envolvendo as ilhas, é necessário relembras algumas noções de soberania.

O conceito de soberania começou a ser formulado com o surgimento do Estado-território, em um longo período compreendido entre os séculos XIII a XVII.

Já o seu atual significado surgiu com o Estado moderno, em oposição à organização existente na sociedade medieval, de cunho pluralista, com várias fontes e ordenamentos jurídicos, na qual não existia um único centro de poder. Com o aparecimento das igrejas nacionais, e na tentativa de superar as divisões internas para formar uma ordem nacional, nasceram concomitantemente os Estados absolutistas e a soberania dos países, com a concentração do poder em uma única pessoa, que personifica o Estado [02].

Para Bobbio há uma dupla divisão de soberania, a primeira ligada ao interior (limites internos), entre os governantes e os governados; e outra voltada para o exterior (limites externos), que brota das relações entre Estados. Essa limitação permite visualizar que o Estado deve exercer sua soberania de forma ativa internamente e, principalmente, igualitária no âmbito externo [03].

Silva e Accioly realizam classificação semelhante, desmembrando a soberania em interna, como o poder do Estado sobre as pessoas e coisas de seu território (como autonomia), e externa, concretizada na liberdade que o país possui em sua relação com os demais (como independência) [04].

Para afirmar o conceito de soberania em seu liame interno, Jean Bodin refere que a república consiste em um governo de várias castas, sendo-lhes comum o poder soberano, e caracteriza a soberania como a vértebra do Estado, pois é ela que conserva os homens unidos em comunidades em torno deste. Assim, a soberania é um poder absoluto e perpétuo, no qual o soberano exerce o seu poder de forma incondicional dentro dos seus limites, sem a interferência de nenhum outro Estado [05].

De outro lado, na perspectiva externa, constitui um reflexo da busca pelo equilíbrio e respeito mútuo entre os países, considerando-os independentes em relação aos demais quanto às suas atribuições internas. Logo, motiva a existência de direitos reconhecidos entre os Estados, entre os quais estão o de igualdade, de respeito mútuo e de celebrar tratados internacionais.

Francisco Rezek destaca ainda três questões que geram discussões acerca da soberania no cenário internacional: os Estados federados, os territórios sob administração e os micro-Estados [06].

Quanto aos Estados federados, já houve divergências entre Alexander Hamilton, que defendia a tese de que as unidades autônomas (estados, províncias, cantões, etc.) não possuíam soberania e personalidade de direito internacional, e Thomas Jefferson, o qual sustentava que havia um duplo grau de soberania nas federações. Atualmente, confere-se personalidade jurídica de direito internacional ao Estado, mas não se impede a existência de uma atuação "aparente" dos entes federados na ordem jurídica internacional, desde que tenha a anuência do respectivo Estado.

Os territórios sob administração surgiram principalmente com a independência dos países-colônia de suas metrópoles. Aqueles, que não eram reconhecidos como sujeitos de direito no plano internacional, passaram por um processo de descolonização, administrados principalmente pela ONU (no caso da África), e somente após alcançarem sua total independência passaram a ter soberania e personalidade próprias.

Os micro-Estados, como Mônaco e Andorra, em virtude de suas reduzidas dimensões territorial e demográfica, conferem parcelas de suas soberanias a outros países, geralmente contíguos, como a segurança externa e o sistema monetário. Porém, o fato de um micro-Estado delegar parte de suas atribuições a outro, tendo em vista que não há um "núcleo irredutível" de soberania, não permite classificá-lo como "soberano ou semi-soberano".

Por fim, tanto a Carta da ONU, a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), a jurisprudência internacional e a Corte de Haia declaram ser a soberania um princípio norteador da igualdade entre os Estados, sendo a ordem internacional constituída pelo respeito mútuo a esse instituto.


4. Conclusões

Voltando à controvérsia, aparentemente simples, torna-se complexa com as peculiaridades existentes na ocupação das Ilhas Malvinas.

Relembrando a Resolução nº 1514/60 da ONU (Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais), por um lado seu Artigo 2 declara a autodeterminação dos povos, que podem livremente definir sua condição política, e de outro lado seu Artigo 6 preceitua que "qualquer tentativa que almeja a interrupção parcial ou total da unidade nacional, e a integridade nacional de um país, é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas".

Assim, levando em conta que as Malvinas foram colonizadas principalmente por ingleses, seus habitantes são (em regra) contrários à soberania argentina [07]. Em consequência, pergunta-se: prevalece a autodeterminação dos povos prevista no Artigo 2 (e mais: podem os moradores das ilhas serem considerados um povo – cidadãos ligados política e juridicamente a um Estado –, para a aplicação do dispositivo, ou somente uma população, ou seja, o conjunto de pessoas existente naquele território?) ou o respeito à unidade territorial genericamente abrangida pelo Artigo 6?

Como visto, as resoluções da ONU relativas ao Caso Malvinas/Falkland sempre destacam o interesse dos habitantes das ilhas. Porém, pode-se afirmar que exclusivamente a opinião da maior parte da população definirá que país tem soberania sobre as ilhas?

Por outro lado, não se pode ignorar outro dispositivo da Declaração da ONU sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais: seu Artigo 5 assegura que medidas imediatas deveriam ser tomadas para a imediata independência dos territórios colonizados. Desde 1960 (ou seja, há 50 anos) não foi definido se as Ilhas Malvinas/Falkland devem se tornar independentes (única medida viável prevista na resolução), manter-se vinculadas à Inglaterra, ou pertencer à Argentina.

Relembra-se ainda que em 1965 o Comitê das Nações Unidas para a Descolonização decidiu que a ocupação das Malvinas pelos ingleses era uma situação de descolonização, logo, em princípio a segunda alternativa resta inviável, restando a independência das ilhas, ou sua reintegração à Argentina.

Destaca-se, por fim, que não constitui novidade ou uma "luz no fim do túnel" o fato de a Argentina buscar junto à ONU uma solução para a Questão das Malvinas. Como visto, a organização internacional procura um fim pacífico e consensual para o caso desde 1965.

Levando em conta que há 35 anos os países envolvidos, por meio de negociações diplomáticas, não chegaram a um consenso sobre o problema, devem ser buscados outros meios, como a arbitragem, a mediação, ou até mesmo a submissão do caso à Corte Internacional de Justiça.


Notas

  1. Sobre o assunto: http://www.falklands.info/history/narra.html.
  2. Nesse sentido: SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy. Introdução ao direito internacional público. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 61.
  3. BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 4ª ed., 1992, p. 101-102.
  4. ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. de Nascimento. Manual de direito internacional público. São Paulo: Saraiva, 13ª ed., 1998, p. 103.
  5. BODIN, Jean. Los seis libros de la República. Disponível em: <www.der.uva.es/constitucional/materiales/libros/Bodino_cap_VIII.pdf>. Acesso em: 20 out. 2009.
  6. REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 235-247.
  7. Sobre o assunto: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/internacional/2010/02/22/nao-queremos-ser-colonizados-pela-argentina-diz-representante-do-governo-das-malvinas.jhtm.
Sobre os autores
Oscar Valente Cardoso

Professor, Doutor em Direito, Diretor Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF da 4a Região, Palestrante, Autor de Livros e Artigos, e Juiz Federal

Camila Daros Cardoso

Advogada. Pós-graduada em Direito Processual Civil e Comércio Internacional e pós-graduanda em Direito Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Oscar Valente; CARDOSO, Camila Daros. As Malvinas são argentinas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2443, 10 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14478. Acesso em: 8 nov. 2024.

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