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O devido processo legal substantivo no direito penal sob o prisma das teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas

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Agenda 29/03/2010 às 00:00

4. O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO ENTRE AS TEORIAS DE RAWLS E HABERMAS

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, LIV, dispõe que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Celso Limongi vê tamanha importância no princípio do devido processo legal que, para ele, "todos os demais princípios também relativos ao processo, como o princípio do contraditório, da igualdade das partes, da publicidade dos atos processuais etc. e princípios de vital importância como o da reserva legal e da irretroatividade da Lei, são corolários, os primeiros, do devido processo legal processual, e estes últimos, do processo legal substancial." [35]

O devido processo legal substancial, segundo Limongi, está contido entre os valores constitucionais e serve de guia não só para o Direito Penal (objeto deste estudo), mas também para os outros ramos, como o Direito Civil, Direito Comercial, Direito Administrativo, Direito Tributário, entre os demais. "Francesco C. Palazzo distingue princípios de Direito Penal Constitucional e princípios constitucionais ou valores constitucionais. Estes apresentam conteúdo heterogêneo e, ‘por isso, não exatamente característicos do Direito Penal; impõem-se tanto ao legislador civil, ou administrativo, como ao penal que intervier – não raro de forma necessária – na respectiva matéria’ e, antes, esse autor incluiu o princípio da legalidade do crime e da pena entre os princípios de ‘Direito Penal Constitucional’." [36]

Percebe-se nitidamente o controle judicial, no que tange o aspecto substancial do devido processo legal, com relação a Leis que sejam consideradas irrazoáveis e desproporcionais, já que a própria Constituição não as admite, pois o próprio princípio da reserva legal está subordinado ao princípio do devido processo legal, segundo Limongi. O devido processo legal, portanto, estaria no topo da hierarquia dos princípios, devendo "orientar o legislador, na missão de elaborar a Lei Penal e selecionar as condutas que mereçam ser punidas como crime. E também podem servir para a interpretação da Lei e exclusão da sua aplicação ao caso concreto pelo juiz." [37] A explicação é a seguinte:

"Dir-se-á, então, que se estará aplicando o princípio da legalidade substantiva, pois o que não injuria os valores sociais não pode ser considerado crime.

Ocorre que importamos do Direito Anglo-Americano o devido processo legal substancial, de modo que o princípio da legalidade substantiva igualmente está em nível constitucional inferior ao do devido processo legal substantivo. Afinal, não é sem razão que Celso Bastos, como visto, afirma que o princípio do devido processo legal quase se confunde com o Estado Democrático de Direito.

Em conseqüência, no momento em que o Judiciário vai aplicar a Lei Penal, a ele é lícito examinar a sua razoabilidade, podendo inspirar-se em qualquer outra razão eventualmente presente ao caso concreto. Osfatos se apresentam multifacetários. O legislador não pode prevê-los todos. E não havendo como aplicar os princípios da lesividade, da humanidade, da culpabilidade, aplica-se o princípio de maior amplitude e abrangência que é o devido processo legal substancial." (LIMONGI, 2001a, p. 165)

Tendo fundamento constitucional e preponderância sobre os demais princípios, o devido processo legal é norteador do Direito Penal e proíbe o Poder Legislativo de elaborar Leis Penais incriminadoras retroativas, obrigando, inclusive, a que os crimes sejam tipificados em Lei, no sentido estrito. Ocorre que a Lei é feita por meio do processo legislativo, caso contrário, estará maculada de vícios insanáveis. Ora, o que será isso senão a subordinação do consagrado princípio da legalidade ao devido processo legal?

4.2. Interpretação rawlsiana do devido processo legal substantivo

O devido processo legal como princípio de hermenêutica permite ao magistrado discutir a razoabilidade da Lei, dando-lhe margem para não aplicá-la, caso viole os parâmetros constitucionais. [38] Dessa forma, há congruência com o teoria da justiça como eqüidade de John Rawls, que tece uma crítica ao positivismo jurídico, indo além da mera legalidade, como explica Celso Lafer: ""Com efeito, os dois princípios básicos de Rawls (...) buscam estabelecer, nas estruturas da sociedade, um equilíbrio apropriado entre pretensões opostas, através da eliminação das distorções arbitrárias e das desigualdades dos pontos de partida. Neste sentido, para Rawls o respeito às regras do jogo, característico da legitimidade racional-legal, vai além da legitimação pelo procedimento e da justiça como legalidade, pois tudo se vê continuamente submetido ao escrutínio material da fairness (eqüidade)." [39]

John Rawls conceitua os elementos constitucionais como sendo: "(1) os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do governo e do processo político; os poderes do legislativo, do executivo e do judiciário; os limites da regra da maioria; e (2) liberdades e direitos básicos iguais dos cidadãos que a maioria legislativa deve respeitar, tal como o direito de votar e de participar da política, liberdade de pensamento e de associação, liberdade de consciência, como a preservação do Estado de Direito." [40] Verifica-se em Rawls uma preocupação em reformular a ordem jurídica como um todo, não havendo na sua teoria uma doutrina voltada especificamente ao Direito Penal, o que é o intento deste trabalho.

Quando Rawls escreve sobre processo político, interpreta-se que incluiu o devido processo legal no âmbito constitucional, servindo, inclusive, para limitar os raios de ação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E mais, um limite contra uma eventual irracionalidade da regra da maioria, geralmente exteriorizada em forma de Lei. A compatibilidade do direito do indivíduo ao mais amplo e adequado esquema de liberdades básicas iguais com o mesmo direito dos demais só se dá via Direito, com a regulamentação por meio de devido processo legal. Essas proibições das ações legislativas também se encontram enunciadas nos dois princípios da Justiça de John Rawls:

"(a) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável ao mais plenamente adequado esquema de liberdades básicas iguais, desde que seja compatível com o mesmo esquema das mesmas liberdades para todos; e

(b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, elas devem estar vinculadas (attached) a cargos e posições acessíveis para todos, sob condições de igualdade eqüitativa de oportunidades, e, segundo, devem primar pelo máximo benefício daqueles membros da sociedade que são os menos favorecidos (princípio da diferença)." [41]

Como bem se sabe, Rawls não fez uma teoria do Direito e do Direito Penal, propriamente dita, mas da Justiça. Arrisca-se dizer que Rawls tentou elaborar uma teoria do Direito com Justiça., no contexto de uma democracia constitucional. Neste texto, se faz uma tímida aproximação da teoria da Justiça de Rawls com o Direito Penal. No primeiro princípio da Justiça (também conhecido como princípio da liberdade, ou liberdade-igual), Rawls remonta à inviolabilidade do indivíduo, protegida constitucionalmente, que se dá por meio do devido processo legal em seus aspectos processual e material. Encontram-se pontos de complementaridade da teoria de Rawls com a teoria do devido processo legal no Direito Penal de Limongi: "Quando se funda um Estado Democrático de Direito, sabe-se imediatamente, que lesão a liberdades e a bens torna imprescindível o devido processo legal em seus dois aspectos, processual e substancial, e, mesmo que os demais princípios dele decorrentes, não se elevem a princípios constitucionais, ou falhem, para o caso concreto, o princípio soberano, máximo, do due process of law atua em benefício dos direitos e garantias individuais, como o princípio geral e de reserva." [42]

4.2.1. O primeiro princípio do Direito Penal na teoria de Rawls

A redação do primeiro princípio da Justiça de Rawls poderia ser adaptada ao Direito Penal da seguinte forma: "Cada pessoa tem o direito irrevogável ao mais pleno e adequado esquema de proteção dos seus Direitos Fundamentais perante a Legislação Penal, na medida da razoabilidade e da proporcionalidade da sua situação (como autor ou réu), desde que em compatibilidade com os mesmos direitos dos demais." Assim, a liberdade-igual do indivíduo seria tratada pela Legislação Penal segundo o devido processo legal em sua face processual e substantiva, de uma forma garantista, para proteger direitos intrínsecos a cada ser humano, sem que, no entanto, isso signifique impunidade para quem transgredir a Lei Penal.

O sujeito ativo da ação penal [43] pode pedir a reparação do transgressor, ao Judiciário, desde que a reparação não seja irracional e desproporcional. E mesmo que essa punição seja amparada pela Legislação Penal, não poderá ser aplicada por ofensa ao devido processo legal substantivo. Estabelece-se, dessa maneira, um impedimento à elaboração de uma Legislação Penal irracional, incoerente e simbólica. Deve haver razoabilidade na elaboração e aplicação da legislação para respeitar as liberdades e os direitos básicos das pessoas. Não se pode afrontar o bom-senso, portanto. Caso a Legislação Penal transgrida isso, o aplicador da Lei poderia esquivar-se do seu imperativo, com base no primeiro princípio do Direito Penal.

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Um exemplo concreto pode ser examinado no voto do desembargador Celso Limongi, na revisão criminal nº 260.338.3/0. Um rapaz de 19 anos à epoca dos fatos foi condenado por estupro presumido (artigo 213 c/c artigo 224, "a", e artigo 71, do Código Penal) por manter oito relações sexuais com uma adolescente de 12 anos. A condenação não foi razoável, embora tenha fundamento legal, pois o réu, no entender de Limongi, era relativamente menor. E a pena não foi proporcional, pois sete anos de reclusão em regime integralmente fechado não correspondia à realidade do réu e da suposta vítima. Sua explicação é a seguinte:

"A idade do peticionário deveria ser levada em conta, principalmente por tratar-se de crime sexual, sendo da própria natureza a exacerbação da libido. Ademais, trata-se de trabalhador rural, inculto, de tal sorte que é difícil para ele compreender a gravidade de sua conduta, agravada pela circunstância de que já vive maritalmente com outra mulher e possui um filho.

Por outro lado, a despeito de merecer reprovabilidade a sua conduta, é inegável que as conseqüências dela advindas se mostram totalmente desproporcionais: a pena imposta é elevada e o regime prisional é o mais severo possível, não permitindo promoções.

A desproporção entre a conduta do peticionário e a pena imposta se mostra tão desarrazoada, que, houvesse ele tirado a vida da menor, receberia a pena de seis anos de reclusão (artigo 121, caput, do Código Penal), mais o benefício da promoção com um sexto de cumprimento de pena! Ter mantido relações sexuais consentidas com menor de 12 anos de idade se mostra mais reprovável e recebe tal conduta a qualificação de crime hediondo!

A Lei dos Crimes Hediondos, Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, foi editada às pressas, de afogadilho, pressionado o legislador por movimento feminista que exigia a exacerbação das penas de estupro e atentado violento ao pudor. Daí a imperfeição da lei, que sequer alterou as penas relativas a esses delitos, também previstos no Código Penal Militar, como também não teve a capacidade de imaginar situações semelhantes a dos autos.

De fato, se, como a prova indicou, o peticionário iniciara namoro com a ofendida, mantendo relações sexuais depois de cerca de dois meses desse namoro, tal conduta sem dúvida perde o caráter de hediondez, considerado o senso moral médio da sociedade, diante do consentimento da namorada. Tal dado não pode ser desprezado pelo intérprete, até porque o crime não se contenta com uma definição meramente formal, mas também material." (LIMONGI, 2001b)

Os costumes não revogam Leis no Direito Positivo Brasileiro. Contudo, podem oferecer base hermenêutica, especialmente na avaliação da racionalidade da Legislação Penal. O descompasso entre a Lei e o tratamento desproporcional com relação à pessoa do réu pelo Judiciário demonstram a falta de razoabilidade na prestação jurisdicional. Tendo em vista a liberação dos hábitos sexuais da sociedade em geral, o consentimento da pretensa vítima (que consentiu as relações sexuais, depois de dois meses de namoro) e o nível de instrução do réu, não se considerou, na aplicação da pena, que a Lei de Crimes Hediondos promoveu acentuou de certa maneira o descompasso entre a Legislação Penal e a evolução da sociedade. Note-se que se trata da Lei de Crimes Hediondos, neste exemplo, antes da sua alteração (pela Lei nº 11.464/2007) para adaptar-se ao princípio da individualização da pena.

A condenação e a legislação ferem os Direitos Fundamentais do réu quando lhe impõe a pena de sete anos de reclusão em regime integralmente fechado. A pena seria maior e mais severa que se o réu cometesse um homicídio simples, que é punido com seis anos de reclusão, com possibilidade de progressão de regime depois do cumprimento de um sexto da pena. Havendo bem jurídico violado (a proteção do menor), há de se ter a tutela do Direito Penal com relação ao caso. No entanto, a tutela penal não pode transgredir, em nome do Direito, os Direitos Fundamentais do réu, por maior que seja a ofensa cometida. Há de se compatibilizar os direitos do réu, os da menor e os da sociedade em igual consideração. Assim, há de se salientar que não se defende a impunidade, nem a liberação exacerbada da conduta sexual, mas que se tenha uma punição razoável e proporcional à sua conduta, no caso concreto. Adequada, então, foi a alteração legislativa que enquadrou a Lei dos Crimes Hediondos ao princípio da individualização da pena, justamente para evitar desproporcionalidade e irrazoabilidade da imposição de penalidade às condutas futuras similares à acima descrita.

4.2.2. O segundo princípio do Direito Penal segundo a teoria de Rawls

Numa interpretação adaptada ao Direito Penal do princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades, de Rawls, pode-se dizer que o acesso ao Judiciário deve ser igual em termos não somente formais, mas também materiais, e que as Leis Penais devem promover um balizamento de modo a evitar tratamento igual em situações desiguais. Assim sendo, para o Direito Penal o princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades [44] poderia ser chamado de princípio da igualdade eqüitativa de acesso à Justiça, com a seguinte redação: "A desigualdade de tratamento provocada pela aplicação da Lei Penal só será admitida se realmente promover à pessoa maior acesso à prestação jurisdicional (como autor ou réu), sob condições de igualdade eqüitativa de consideração (razoável e proporcional) pela legislação e das autoridades pertinentes, para a preservação dos Direitos Fundamentais."

Um exemplo claro da falta de igualdade eqüitativa de acesso à Justiça e de prestação jurisdicional era o crime de estupro, em regra, ser de ação penal privada. Porém, poderia ser de ação penal pública condicionada à representação se a vítima ou seus pais não tivessem condições econômicas de bancar as custas judiciais. Atualmente, ademais, o crime de estupro é de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, conforme alteração promovida pela Lei nº 12.015/2009, sendo de ação penal pública incondicionada se cometida contra menores e vulneráveis.

Só era crime de ação pública incondicionada, pasmem, se o autor do crime se fizesse prevalecer, para a prática do estupro, do pátrio poder, ou se for padrasto, tutor ou curador. Havia entendimentos, ademais, que admitiam a ação pública incondicionada em caso de estupro com violência real [45].

Enfim, o que se critica é que o estupro, por menor violência ou ameaça que sejam empregadas, fosse concebido como um crime cujos processamentos policial e judicial eram postos como sendo da esfera privada da vítima. Se ela "quisesse", poderia processar (por queixa ou representação) o estuprador. Mas o crime de furto (art. 155, CP) é de ação pública incondicionada. A liberdade sexual da mulher, mesmo que implicasse numa lesão maior que num crime de furto – ainda que não acarretasse em violência real à vítima –, por exemplo, estava relegada a segundo plano. Assim, a proteção constitucional da privacidade e da intimidade familiar era utilizada, para justificar a impunidade. A vítima era aterrada na esfera privada, junto com o crime que sofrera, livrando o criminoso de ser processado e julgado na esfera pública do sistema patriarcal.

A opção de uma ação penal pública incondicionada a ser iniciada de ofício pelo Ministério Público (tal como o é hoje) enquadraria o crime sexual contra a mulher como uma lesão publicamente intolerável, mas, vertentes feministas teriam na ação penal privada um instrumento de proteção da autonomia feminina, de deixar a cargo da vítima a decisão de levar o crime ao conhecimento das autoridades e, se quiser, processar o criminoso. Parece que a esfera privada servia mais para se jogar embaixo do tapete as ofensas que, apesar de juridicamente criminalizadas e penalizadas, seriam convenientes ao sistema patriarcalista, que para proteger o indivíduo da interferência indevida do Estado. A desigualdade apresentada neste caso em tela desobedeceria o segundo princípio do Direito Penal de acordo com a teoria de Rawls. Por isso, não poderia ser aceita pelo ordenamento jurídico, por apresentar uma desigualdade que não serviria para promover maior acesso à Justiça. Portanto, nessa ótica, no passado, uma ação promovida pelo Ministério Público, em caso de estupro do artigo 213 (CP), jamais poderia ser fulminada por ilegitimidade de parte.

4.2.2.1. A desigualdade compensatória no Direito Penal

O segundo princípio do Direito Penal segundo a teoria de Rawls, apesar de discriminar desigualdades, pode legitimar alguns tipos de desigualdades, por meio da legislação, desde que busque implementar igualdade eqüitativa de acesso à Justiça ou prestação jurisdicional. Por exemplo. A maior parte da legislação penal sexual dispõe que o elemento objetivo dos delitos de estupro é constranger a vítima a determinados atos sexuais com emprego de violência ou grave ameaça. Alguns doutrinadores, escreve Ana Lúcia Sabadell, defendem que basta a mera recusa da vítima para caracterizar uma ação sexual ilegal. Devido a séculos de dominação masculina, a autodeterminação sexual das mulheres não é, diante do prisma patriarcalista, evidente.

Não basta, no Direito Penal brasileiro, que a mulher, vítima de estupro, não queira submeter-se a uma relação sexual indesejada, ela deve ser oferecer alguma forma de resistência à agressão ou à grave ameaça. Seria uma maneira de legitimar, aos homens, o acesso ao corpo das mulheres e das crianças?

A violação da dignidade das mulheres e das crianças só seria punida, então, se houvesse emprego de violência ou grave ameaça? Por que essa lógica, se no crime de violação de domicílio (art. 150, CP), não há necessidade de emprego de grave ameaça ou violência à vítima? O mesmo ocorre no crime de cárcere privado (art. 148, CP), que não prevê como elemento objetivo do tipo a violência ou grave ameaça. Mais uma vez, parece que se tenta empurrar para o tapete, para a esfera privada, algumas ofensas à liberdade sexual das mulheres. Não basta ser crime, tem que ser evidentemente crime, aos olhos de todos. O Direito Constitucional contemporâneo concebe a sexualidade como ato voluntário da pessoa, que não deve ser, jamais, monopólio dos homens.

Sabadell, diante disso, salienta que os crimes sexuais contra as mulheres devem ser desmistificados e tratados de forma igual a outros crimes. Em vez de serem elementos normativos do tipo, a violência ou grave ameaça deveriam ser enquadradas legalmente como qualificadoras, em vez de elementos objetivos do crime de estupro. [46] Para a configuração do estupro, seria apenas necessária a expressão da recusa da vítima em manter uma relação sexual contra sua vontade livre. O tratamento das mulheres de modo diferenciado, caso vítimas de estupro, seria promovido de forma desigual para compensar séculos de subserviência. Aí, o instrumento de promoção da desigualdade compensatória seria tornar a violência e a grave ameaça, no crime sexual contra a mulher, como qualificadoras, com a devida guarida do segundo princípio do Direito Penal segundo a teoria de Rawls.

Atente-se que ambos princípios formulados neste artigo com base na teoria da Justiça de John Rawls constituem uma tentativa de se evitar o tratamento de situações diferentes com o mesmo critério, pois em nome de uma legalidade cega e uma suposta igualdade, cometer-se-ia uma injustiça muito maior, em nome do Direito, que promover a Justiça, propriamente dizendo.

Outro crítico voraz da instrumentalização excessiva do Direito é o alemão Jürgen Habermas, cuja aplicação da sua teoria da ação comunicativa e suas conexões com o devido processo legal substantivo se examinam no tópico seguinte.

4.3. Habermas contra a razão instrumental do Direito

A técnica característica dos meios de produção capitalista, geralmente com o suporte das ciências exatas e biológicas, invadiu a seara das ciências humanas, priorizando a razão instrumental. A razão instrumental, das relações meio-fim, dá vestimenta científica às ações humanas de transformação da natureza, por meio do trabalho, na obtenção de bens necessários à sua sobrevivência. No entanto, a razão instrumental – típica das ciências – converte as outras pessoas em meios para que se atinjam fins. Esse tecnicismo instrumental se transfere do plano de domínio da natureza para as relações humanas em si, como a dimensão ético-jurídica.

O Direito contaminado pelo tecnicismo jurídico, por exemplo, serviu para justificar – do pondo de vista jurídico – o Direito Positivo empregado na Alemanha nazista para cometer as atrocidades contra seus desafetos. Dentro do esquema de Kelsen [47], os carrascos agiram segundo o Direito, amparados pelo devido processo legal. Devido processo legal processual, diga-se de passagem. Pois de forma alguma, no Estado nazista, se considerou o devido processo legal em seu aspecto substantivo, de verdadeira garantia dos Direitos Fundamentais.

O devido processo legal desprovido de conteúdo substantivo, considerado somente em sua vertente processual, marca o domínio da ciência com a exclusão total da ética do Direito. O Direito parece limitar-se ao campo formal da lógica matemática, num dogmatismo lógico-instrumental. Esses valores instrumentais são alcançados por meio de ações estratégico-instrumentais. O interesse técnico submete das ações estratégico-instrumentais submete as coisas (a natureza) ao ser humano, através de métodos baseados nas ciências experimentais e na tecnologia. Há, então, uma cadeia de controle, com possibilidade de previsão e recriação artificiais. O interesse prático das ações estratégico-instrumentais organiza as relações humanas, reprimindo sua natureza intrínseca, impondo normas para regular a maior parte dos processos da sua vida social. Essas normas de ações estratégico-instrumentais, se aceitas e institucionalizadas, terão força de Lei. Essas normas de ações estratégico-instrumentais juridificadas formam um círculo fechado em si mesmo, um sistema fechado, que funciona numa lógica própria, como uma equação matemática. Esse voluntarismo, da pura criação do Direito, pelos processos jurídico-legislativos, fechados em si, são a origem da patologia do Direito Positivo. Muitas vezes, isso conduz a uma dissociação entre o que se prescreve na Lei e a realidade. É o caso das Leis absurdas, que desafiam a razoabilidade. Muitas vezes, Leis não razoáveis também não contêm, em si, critérios de proporcionalidade de regulação de conduta e de imposição de eventuais penalidades.

"Essa tensão ideal retorna intensificada no nível do direito, mais precisamente na relação entre a coerção do direito, que garante um nível médio de aceitação da regra, e a idéia de autolegislação – ou da suposição da autonomia política dos cidadãos associados – que resgata a pretensão de legitimidade das próprias regras, ou seja, aquilo que as torna racionalmente aceitáveis. Esta tensão na dimensão de validade do direito implica a organização do poder político, empregado para impor legitimamente o direito (e o emprego autoritativo do direito); poder político ao qual o direito deve a sua positividade. A idéia de Estado de direito constitui uma resposta ao desiderato da transformação jurídica pressuposta pelo próprio direito. No Estado de direito a prática da autolegislação dos cidadãos assume uma figura diferenciada institucionalmente. A idéia de Estado de direito coloca em movimento uma espiral de auto-aplicação do direito, a qual deve fazer valer a suposição internamente inevitável da autonomia política, contra a facticidade do poder não domesticado juridicamente, introduzida no direito a partir de fora. (...) E aqui se trata de uma relação externa entre facticidade e validade (percebida na perspectiva do sistema jurídico), uma tensão entre norma e realidade, que constitui um desafio para a elaboração normativa." (HABERMAS, 1997, vol. 1, p. 60-61)

A Lei que deveria proteger pode servir para fustigar, dependendo do caso. Num desses exemplos, o paradigma iluminista de razão, que tiraria os seres humanos das trevas da ignorância, ruiu. A razão tornou-se algoz e empreendedora da dominação do homem pelo homem, como se atestou na Alemanha de Adolf Hitler e seus territórios dominados. [48]

4.4. Razão comunicativa e devido processo legal substantivo

Em contraponto à ação estratégico-instrumental, Habermas propõe a ação comunicativa, na qual a interação é racionalmente motivada, com conteúdo emancipatório para a libertação social e política. A ação comunicativa não se resume às conversações sobre os fatos cotidianos, é uma prática comunicativa, com a instituição das esferas do discurso, para se atingir novos níveis de reflexão. Os acordos obtidos pela interação, via ação comunicativa, são racionais, obtidos por meio da argumentação racional das pessoas. Dessa maneira, Habermas propõe a substituição da razão instrumental pela razão comunicativa para combater a mecanização das relações sociais.

Na ação comunicativa, o interesse prático – a interação racionalmente motivada – num processo de formação de consenso entre as pessoas numa situação ideal de fala por meio de uma discussão racionalmente motivada. A situação ideal de fala, em termos simples, seria uma situação ideal em que todos se entendem, quer dizer, "todos falam a mesma língua e linguagem". Há um entendimento completo dos objetos das discussões. Na teoria da ação comunicativa, Habermas diz que o ser humano tem o desejo de se fazer compreender e ser compreendido por qualquer outro falante por meio de certas pretensões de validade universal em qualquer situação de comunicação e, mais, que esse conteúdo seja apreendido e possibilite o entendimento entre falantes e ouvintes.

Com isso, Habermas amplia o conceito de razão, que passa a abranger, além da verdade, a correção e a autenticidade. A linguagem, para Habermas, converte-se também em motores que geram expectativas, tanto no nível social quanto no nível subjetivo, de reações comportamentais. Esse seria o princípio da universalidade de Habermas um dos pilares da sua teoria, que poderia ser aplicado na reconstrução do Direito Positivo.

Habermas concebe a complementaridade entre o Direito e a moral por meio da integração social, via ação comunicativa, o "fio condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos formadores da opinião e preparadores da decisão, na qual está embutido o poder democrático exercitado conforme o direito." [49] Numa assertiva mais ousada, pode-se dizer que a teoria de Habermas se relaciona com o princípio da razoabilidade, um dos corolários [50] do princípio do devido processo legal substantivo. A elaboração e a aplicação das Leis devem "obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercidas" [51]. Cezar Roberto Bitencourt completa: "Razoável é aquilo que tem aptidão para atingir os objetivos a que se propõe, sem, contudo, representar excesso algum." [52]

Para Habermas, o uso público das liberdades comunicativas deve ser garantido institucionalmente pelos Direitos Fundamentais, como se fossem Direitos Subjetivos, abrindo margem para uma colocação de extrema relevância: a linguagem dos direitos de comunicação e participação deve ser elaborada de uma maneira que permita aos sujeitos autônomos do Direito a faculdade de escolha, seja de utilizá-los ou não, ou, ainda, de escolher como utilizá-los. [53] Assim sendo, numa perspectiva habermasiana, a razoabilidade se constrói de maneira intersubjetiva, uma formação consensual e racional – por meio da discussão racional por seres livres e iguais numa situação ideal de fala –, para estabelecer o senso normal de elaboração e de aplicação das Leis, especialmente das Leis Penais, para rejeitar tudo aquilo que seja exorbitante ou, mesmo, bizarro e inaceitável.

4.5. Proporcionalidade e respeito à dignidade humana

Em Habermas, por meio da ação comunicativa, os seres humanos se reconhecem como seres livres e iguais em sua dignidade, já que rejeita a lógica das relações meio-fim da razão instrumental típica das ciências e da tecnologia. Seres humanos devem ser considerados como fins neles mesmos, nunca como meios para ações de quem quer que seja, mesmo o Estado. Mesmo na imposição da pena, por parte do Estado, deve haver essa consideração e respeito pela dignidade humana. A punição, nesses termos, deve ser realizada na medida da ofensa cometida contra o bem jurídico, segundo o princípio da proporcionalidade, o segundo corolário do devido processo legal substantivo. "É que ninguém deve estar obrigado a suportar constrições em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis à satisfação do interesse público. Logo, o plus, o excesso acaso existente, não milita em benefício de ninguém." [55]

Além do aspecto punitivo, de penas proporcionais ao ato ilegal cometido, Cezar Roberto Bitencourt salienta que o princípio da proporcionalidade é um limite, não só da aplicação, mas também da elaboração de Leis. "Não se trata evidentemente, de questionar a motivação interna da voluntas legislatoris, e tampouco de perquirir a finalidade da Lei, que é função privativa do Parlamento. Na verdade, a evolução dos tempos tem nos permitido constatar, com grande freqüência, o uso abusivo de fazer Leis had hocs, revelando, muitas vezes, contradições, ambigüidades, incongruências e falta de razoabilidade, que contaminam esses diplomas legais com o vício de inconstitucionalidade." [56] Em caso de irrazoabilidade ou desproporcionalidade das Leis, portanto, cabe intervenção e controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário.

Numa interpretação habermasiana, a Lei Penal que impõe pena desproporcional e não é razoável deve ser invalidada por não encontrar suporte constitucional e ainda por reproduzir um esquema lógico de relações meio-fim, que trata as pessoas como meios e não como fins nelas mesmas (dotadas de integral dignidade). Por meio da razão comunicativa, os seres humanos assumem sua parcela de responsabilidade moral e assumem a tarefa de mobilizarem ações coletivas por meio de uma práxis solidária e organizada que limitem o poder no que tange à opressão de certos direitos inatos e inalienáveis intrínsecos a cada pessoa. A correspondência disso com o Direito Penal pode ser explicada com a a doutrina de Cezar Roberto Bitencourt: "Para concluir, com base no princípio da proporcionalidade é que se pode afirmar que um sistema penal somente estará justificado quando a soma das violências – crimes, vinganças e punições arbitrárias – que ele pode prevenir for superior à das violências constituídas pelas penas que cominar. Enfim, é indispensável que os Direitos Fundamentais do cidadão sejam considerados indisponíveis (e intocáveis), afastados da livre disposição do Estado, que, além de respeitá-los, deve garanti-los." [57]

Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. O devido processo legal substantivo no direito penal sob o prisma das teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2462, 29 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14592. Acesso em: 17 nov. 2024.

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