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A investigação de paternidade na reprodução artificial heteróloga

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Agenda 17/04/2010 às 00:00

5 A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA NA REPRODUÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA

As novas técnicas de reprodução humana medicamente assistida revolucionaram as relações de filiação e paternidade, criando situações ainda não abarcadas pelo Direito.

Como já foi exposto, todos os diversos métodos de reprodução assistida podem se dar, genericamente, de maneira homóloga ou heteróloga. Reprodução homóloga é aquela realizada com o material genético (gametas) do próprio casal (casados ou conviventes), realizando-se tão-somente a fertilização desses gametas de maneira assistida, em laboratório, utilizando-se a técnica mais adequada à necessidade do casal. Na reprodução heteróloga, por sua vez, utiliza-se o material genético de, pelo menos, um terceiro (gameta masculino ou feminino), quando o homem ou a mulher não possui material genético (gameta) hábil à fertilização.

Quanto à primeira forma (RA homóloga), no que se refere à relação de paternidade e filiação, não há maiores dúvidas a serem levantadas, uma vez que o material genético utilizado é do próprio casal receptor (gametas masculino e feminino), não obstante haja discussões acerca de sua eticidade, mormente no que diz respeito ao destino dado aos embriões excedentários, ou mesmo ainda um protesto praticamente isolado por parte da Igreja Católica quanto à reprodução humana por meios não naturais em geral. Portanto, em que pese a fertilização dos gametas se dê de forma artificial (ou assistida), ocorrendo fora do corpo da mulher (in vitro), o próprio casal receptor é também fornecedor do material genético, conciliando-se, pois, assim, tanto a paternidade afetiva quanto a biológica.

Todavia, é com relação à reprodução artificial heteróloga que a questão toma dimensões alarmantes.

Cumpre preliminarmente destacar que, para que uma mulher venha a se submeter à RA heteróloga, sendo ela casada ou convivente, é requisito essencial o consentimento expresso e informado de seu marido ou companheiro.

Neste sentido, dispõe a Resolução 1.358/92 do CFM:

II – USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA

1 – Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.

2 – Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado.

Tal consentimento é de tamanha e fundamental importância, na medida em que irá estabelecer o vínculo de paternidade entre o marido (ou companheiro) e a criança, em detrimento do doador do material genético.

Todavia, observa-se uma vez mais que a norma supracitada possui caráter meramente ético-disciplinar, sem natureza cogente. Assim, admitindo-se a hipótese de mulher que venha a se submeter a tal técnica sem o consentimento de seu marido ou companheiro, estar-se-ia diante de um dilema sobremodo delicado e complexo, qual seja, a fixação da paternidade.

Ora, em havendo o consentimento expresso do marido (ou companheiro) para que sua esposa (ou companheira) se submeta à fertilização heteróloga, fixado estará o vínculo afetivo de paternidade entre ele e a criança.

Nesse aspecto, o Código Civil de 2002 trouxe importante inovação, estabelecendo a presunção da paternidade do marido no caso de inseminação artificial heteróloga, em havendo prévia autorização por parte dele.

Assim dispôs o art. 1.597, inciso V, do citado Códex:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

[...]

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Assim, o marido (ou companheiro) que, tendo conhecimento, consentiu e autorizou sua mulher (ou companheira) a se submeter à reprodução artificial heteróloga, não poderá futuramente impugnar a paternidade, uma vez que estará fixada a paternidade socioafetiva, a qual é irrevogável.

Por outro lado, se não houve o consentimento por parte do marido ou companheiro, não pode ser-lhe imputada a paternidade, constituindo tal conduta por parte da mulher em ato atentatório ao casamento, sendo causa, inclusive, de dissolução do vínculo conjugal (injúria grave, violação dos deveres do casamento, insuportabilidade da vida em comum, violação ao dever de lealdade).

Neste sentido, Eduardo de Oliveira Leite, ao tratar o assunto, esclarece com singular propriedade:

Se o marido não concordou com a inseminação abre-se-lhe a via da negatória da paternidade. [...] se houve consentimento do marido não há mais que se cogitar da possibilidade de tal ação. A anuência do mesmo é prova irrefutável que deseja o filho e, portanto, não mais milita a seu favor tal recurso. A admissão desta ação corresponderia a uma superfetação e incoerência criticáveis no mundo jurídico. [...] Se o marido da mulher inseminada consentiu, criou "ipso facto" e "ipso juris" status de filho à criança oriunda daquele recurso médico. [24]

Desta feita, uma vez tendo sido ofertado o consentimento do marido (ou companheiro) para que sua mulher (ou companheira) seja submetida à técnica de RA heteróloga, fixado estará o vínculo socioafetivo de paternidade entre aquele e a criança, inadmitindo-se posterior impugnação quanto à paternidade biológica por meio de ação negatória. A respeito da paternidade socioafetiva, assevera Belmiro Pedro Welter, com notória propriedade:

A paternidade socioafetiva é a única que garante a estabilidade social, edificada no relacionamento diário e afetuoso, formando uma base emocional capaz de lhe assegurar um pleno e diferenciado desenvolvimento como ser humano. [25]

Complementa o autor, em citação a José Bernardo Ramos Boeira, justificando que:

ter um filho e reconhecer sua paternidade deve ser, antes de uma obrigação legal, uma demonstração de afeto e dedicação, que decorre mais de amar e servir do que responder pela herança genética. [26]

Maria Helena Diniz, em comentário ao inciso V do art. 1.597 do Código Civil de 2002, o qual estabelece a presunção de paternidade do marido quanto aos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, com a qual tenha previamente consentido, assevera a respeito do consentimento como elemento de fixação da paternidade socioafetiva. Leciona a célebre autora:

Tal presunção visa tão-somente, baseada na doutrina dos atos próprios de Diez-Picazo, fundada no princípio da boa-fé e da lealdade de comportamento, instaurar a vontade procracional do marido, como um meio de impedi-lo de desconhecer a paternidade do filho voluntariamente assumido ao consentir na inseminação heteróloga de sua mulher. A paternidade, nessa última hipótese, apesar de não ter fundamente genético, terá o moral, privilegiando-se a relação socioafetiva. [27]

A autora faz ainda alusão à Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2002, destacando alguns Enunciados, dentre os quais selecionamos os seguintes:

a) "no âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento (Enunciado n. 104); (sic) b) "as expressões ‘fecundação artificial’, ‘concepção artificial’ e ‘inseminação artificial’ constantes, respectivamente, dos incs. III, IV e V do art. 1.597, deverão ser interpretadas como "técnica de reprodução assistida" (sic) (Enunciado n. 105); [...] [28]

Deste último Enunciado, extrai-se importante esclarecimento, na medida em que abarca num só gênero (reprodução assistida) diversas técnicas de reprodução, dentre as quais a que nos interessa por ora: a inseminação artificial, ínsita no inciso V do art. 1.597 do Código Civil de 2002. Resta claro que, pelo legislador, foi prevista no referido dispositivo legal apenas a técnica de reprodução assistida consistente na inseminação artificial, o que reflete imprecisão técnica do ponto de vista médico-científico por parte daquele.

Todavia, a presunção do referido dispositivo deve aplicar-se não só nos casos de casais que se submetam à técnica de inseminação artificial propriamente dita, mas também em sendo utilizada qualquer outra técnica de reprodução assistida de natureza heteróloga.

Assim como ocorre na adoção, na reprodução artificial heteróloga o vínculo afetivo de paternidade sobrepõe-se ao biológico. E esta é a tendência do direito moderno, qual seja, dar-se primazia ao vínculo de afeto e amor existente entre pais e filhos, em detrimento da antiga e ultrapassada concepção romana de família, como sendo a união de pessoas ligadas por uma identidade sangüíneo-genética em comum.

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O texto constitucional de 1988 veio instituir uma nova ordem no direito familiar, na medida em que acobertou como entidade não apenas o modelo patriarcal até então posto, mas galgou à mesma condição a família monoparental, as uniões estáveis, bem como estabeleceu a total e incondicionada isonomia entre todos os estados de filiação, dentre os quais insere-se a filiação socioafetiva.

Portanto, não há como se admitir uma revisitação à arcaica e repudiosa discriminação entre uma ou outra "classe" de filhos, o que implicaria um inegável retrocesso evolutivo por parte de nossa sociedade. Assim, tanto os filhos biológicos, quanto os filhos afetivos, encontram-se num mesmo patamar, detentores portanto dos mesmos direitos e garantias, sendo expressamente vedada qualquer distinção quanto à sua origem, nos termos do art. 227, § 6º da Constituição Federal e art. 1.596 do Código Civil.

Neste sentido, defende Belmiro Pedro Welter, com particular brilhantismo:

Não apenas o filho biológico pode ser sujeito de direitos, mas também o filho social, porque a família socioafetiva transcende os mares do sangue, conectando o ideal da paternidade e maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociológicas, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, edificando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto do desvelo, do coração e da emoção, (des)velando o mistério insondável da filiação, engendrando o reconhecimento do estado de filho afetivo. [29]

Eduardo de Oliveira Leite destaca venerável ministração de Raynaud, no que diz respeito ao reconhecimento da importância do elemento volitivo no estabelecimento do vínculo da filiação:

Por que nós não nos contentamos somente com a verdade biológica? Porque ela se colore de um elemento subjetivo, isto é, afetivo. O direito não fala quase nada dos sentimentos, ele se contenta com a vontade que eles inspiram. É portanto dos sentimentos que, indiretamente, se questiona. O amor não é um termo jurídico e, no entanto, o amor é a alma do casamento e é dele que falam com imperícia os textos legais quando se referem, por exemplo, da comunidade de vida ou do dever de fidelidade; eles giram em torno do amor. Em matéria de filiação ocorre o mesmo, reservando um espaço à vontade, como condição do estabelecimento do vínculo jurídico da filiação, não pretendem (os juristas) querer dizer que não há paternidade, nem maternidade sem amor? [30]

Com efeito, não há como atribuir ao mero doador de sêmen a condição de "pai". Quando muito, o termo "genitor" poderia ser empregado a fim de definir aquele que empresta seu material genético, sem contudo externar qualquer manifestação de vontade no sentido de estabelecer uma verdadeira relação paterno-filial socioafetiva.

Noutro vértice, o casal que se submete à técnica de reprodução artificial heteróloga exprime o mais puro desejo de ser pais. Pais por excelência, em sua acepção mais pura e verdadeira, traduzindo uma paternidade desvinculada de fatores biológicos (sangüíneos ou genéticos), calcada tão somente no afeto, no anseio de poderem criar, educar, externar amor e carinho.

5.1 Investigação da Paternidade Biológica

De todos os métodos conceptivos estudados, indubitavelmente, os que enfrentam uma problemática mais complexa, criando celeumas de conturbada solução, mormente no tocante à relação de paternidade, são aqueles nos quais se tem a presença de, pelo menos, um terceiro (homem ou mulher), doador do material genético. É a chamada reprodução artificial heteróloga.

Na maioria das vezes, esse terceiro é desconhecido, sua identidade é oculta, estando alheio ao processo de fecundação. O casal receptor, diante da total impossibilidade de alcançar uma fecundação bem sucedida pelos métodos naturais, ou mesmo através da fecundação artificial homóloga, recorre aos chamados "bancos de sêmen", de onde se obtém o material genético necessário, doado por um terceiro, o qual tem sua identidade resguardada sob sigilo.

A respeito do tema, Eduardo de Oliveira Leite observa que:

Nos CECOS franceses o recrutamento dos doadores corresponde a regras precisas que foram formuladas em 1973, por Georges David: "A doação do esperma é a doação de um casal tendo filhos a um casal que os deseja ter. Esta doação é gratuita e anônima." [31]

O autor destaca ainda que, do referido enunciado, pode-se extrair três princípios básicos da doação, quais sejam: deve ser feita de um casal a outro casal, de forma gratuita e anônima.

Preliminarmente, no que se refere à disposição de que a doação deveria ser feita de um casal doador a outro casal receptor, observa-se que tal critério não é recepcionado nacionalmente, uma vez que nas reproduções heterólogas, costuma-se recorrer aos chamados bancos de sêmen, os quais armazenam material genético de doadores individuais e aleatórios, sendo que a responsabilidade pela seleção desse material quando do processo de fertilização dos receptores é exclusiva das referidas instituições. Nesse sentido, dispõe a Resolução nº 1.358/92 do CFM:

IV – DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

[...]

4 – As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores.

[...]

6 – A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora.

7 – Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços, nem aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas prestam serviços, participarem como doadores nos programas de RA.

Os critérios da gratuidade e do anonimato, por outro lado, encontram-se acolhidos pela Resolução supracitada:

IV – DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

1 – A doação nunca terá caráter lucrativa ou comercial.

2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

3 – Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

A gratuidade na doação de material genético é pressuposto da própria licitude do procedimento. A doação não deve ter caráter lucrativo ou comercial, pois, do contrário, estar-se-ia legitimando um comércio absolutamente imoral e antiético.

A Constituição Federal trouxe em seu art. 199, § 4º, a seguinte norma programática:

Art. 199. [...]

[...]

§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

O comando do dispositivo constitucional supracitado foi atendido pela edição da Lei nº 9.434/97, a qual, lamentavelmente, excluiu expressamente o esperma e o óvulo de seu regramento. Dispõe o art. 1º da referida lei:

Art. 1º. A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo.

Logo, vê-se que não há qualquer tipo de sanção penal imposta àquele que se utilizar de tão repudiosa prática, qual seja, a comercialização de gametas humanos. Seja quanto ao doador seja quanto ao médico, nada mais há que se possa fazer, senão quiçá responsabilizá-los civil ou administrativamente, uma vez que prevalece em nosso Direito o princípio de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (princípio da reserva legal).

No entanto, é com relação ao anonimato do doador que a problemática se estende. Pode o filho gerado através de reprodução artificial heteróloga pretender investigar sua paternidade biológica?

A Resolução nº 1.358/92 do CFM estabelece o sigilo absoluto quanto à identidade do doador de material genético. Prevê exceção à regra unicamente em situações especiais, em que as informações acerca dos doadores podem ser reveladas exclusivamente aos médicos, resguardando-se, contudo, a identidade civil do doador.

Todavia, vale enfatizar, como já foi inclusive exposto alhures, que a referida norma possui natureza meramente administrativa, adstrita à classe médica, portanto, sem caráter cogente. Não há, pois, previsão legislativa no sentido de vedar o exercício de tal pretensão.

Belmiro Pedro Welter destaca um interessante acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual defende, com singular brilhantismo, a prevalência da paternidade sociológica, nos seguintes termos:

Um coito apenas determina para a vida inteira um parentesco, um coito entre pessoas que, às vezes, só tiveram aquele coito e nada mais! Desprezam-se anos e anos de convivência afetiva, de assistência, de companheirismo, de acompanhamento, de amor de ligação afetiva. Daí não se tratar de um rematado absurdo a cogitação de que se pudesse pretender pôr limites à investigação da paternidade biológica, porque, quando se permite indiscriminadamente esta pesquisa, se está jogando por terra todo o prisma sócio-afetivo do assunto, e isto vale também para a paternidade biológica, não só para a adotiva. O pai e a mãe criaram um filho, com a melhor das criações possíveis, com todo o amor que se podia imaginar; passam-se os anos, 40 anos depois, resolve o filho investigar a paternidade com relação à outra pessoa, esbofeteando os pais que o criaram por 40 anos! E normalmente esses pedidos são tão despropositados que, falando em tese, muitas vezes têm a ver apenas com a cobiça, descobrem que o pai biológico tem dinheiro, vai herdar, então despreza os pais que o criaram, que deram toda a educação, quer adotivos, quer biológicos – tidos como biológicos –, e vai procurar o outro pai que teve o tal de coito, uma vez na vida. [32]

Segundo entendimento de Eduardo de Oliveira Leite, o anonimato do doador do material genético deve ser preservado. Nesse sentido, sustenta que:

A pretendida alegação de que a criança tem "direito" a conhecer sua origem genética realça expressivamente a paternidade biológica (matéria já ultrapassada no direito de filiação mais moderno) quando é sabido que, atualmente, a paternidade afetiva vem se impondo de maneira indiscutível. [33]

É certo que, incondicionadamente, o maior interesse a ser defendido é o da criança. Para aqueles que, como o autor, defendem o anonimato do doador, o sigilo quanto a sua identidade é medida que se impõe, justamente com o propósito de proteger não só a pessoa do doador, mas, precipuamente, a estabilidade emocional e familiar do lar afetivo em que a criança está inserida.

Defende o autor que o anonimato

é a garantia da autonomia e do desenvolvimento normal da família assim fundada e também a proteção leal do desinteresse daquele que contribui na sua formação. Na hierarquia dos valores estas considerações sobrepujam o pretendido "direito" de conhecimento de sua origem. [34]

Todavia, com a máxima vênia, não parece ser este o melhor entendimento, ao menos não in totum.

Belmiro Pedro Welter discorda desse posicionamento, entendendo que:

não importa se a reprodução humana é sexual (corporal, natural) ou assexual (extra-corporal, artificial, medicamente assistida, científica, laboratorial), pois, em qualquer caso, o filho, o pai e a mãe têm o direito de investigar e/ou de negar a paternidade ou a maternidade biológica, como parte integrante de seus direitos de cidadania e de dignidade de pessoa humana. [35]

Numa breve alusão ao direito comparado, é interessante destacar o que noticia Eduardo de Oliveira Leite, observando que, na Alemanha, é reconhecida a toda criança o direito de ver estabelecida sua filiação paterna. E no caso de inseminação artificial heteróloga, mais precisamente, os Tribunais têm atribuído a paternidade ao pai biológico.

Por outro lado, na França, o anonimato do doador é preservado, primando-se nesse país pela prevalência da vontade como valor de estabelecimento da filiação. Conclui o autor que: "[...] enquanto na Alemanha se privilegiou a mera paternidade biológica, na França, é a paternidade afetiva (ou social) que se impõe como regra". [36]

É certo que, como já foi aduzido no capítulo anterior, na reprodução artificial heteróloga, em sendo estabelecida a paternidade socioafetiva, esta se torna irrevogável, sobrepondo-se portanto ao vínculo biológico existente entre a criança e o doador do material genético.

Tal entendimento implica uma "desbiologização" da paternidade, [37] num rompimento com conceitos tradicionais, porém ultrapassados, de que a filiação se estabelece unicamente pelo vínculo sangüíneo existente entre pai e filho, tendência esta abraçada pela moderna doutrina do direito de família internacional.

Segundo Zeno Veloso, pelo fato de não se poder estabelecer qualquer vínculo de filiação entre o doador do material genético e a criança concebida por reprodução artificial heteróloga, não será lícito ao marido (ou companheiro), que, obviamente, tenha consentido com o procedimento, impugnar a paternidade. Tal entendimento representa, nas palavras do autor, "uma exceção ao biologismo, aos vínculos de sangue, prevalecendo a filiação voluntária, a verdade sócio-afetiva". [38]

Contudo, noutro aspecto, discute-se a possibilidade de que o filho havido por método de reprodução artificial heteróloga venha pretender investigar sua paternidade biológica, rompendo assim o anonimato do doador do material genético.

É pertinente a analogia que se faz entre a reprodução artificial heteróloga e o instituto da adoção, uma vez que em ambos se verifica a relação socioafetiva de paternidade, em oposição ao vínculo sangüíneo-biológico.

O art. 48 do ECA dispõe expressamente que: "A adoção é irrevogável". Logo, seja pela adoção, seja pela reprodução heteróloga, uma vez fixado o vínculo paternal socioafetivo, este se torna irrevogável.

Vale observar ainda que, enquanto na adoção não há qualquer vínculo biológico entre a criança e o casal adotante, na reprodução heteróloga haverá, no mínimo, cinqüenta por cento desse vínculo, uma vez que é utilizado material genético de um dos membros do casal, fecundado com o de um terceiro doador.

Contrariamente à idéia de que o filho adotivo possa investigar sua ascendência biológica, atine interessante acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, citado por Belmiro Pedro Welter, em que é negado tal direito, sob os seguintes fundamentos:

Formalizada a adoção, esta gera uma série de efeitos pessoais para o adotado, cessados quaisquer vínculos com a antiga família, vínculos esses que passam a ser estabelecidos com a nova família. A situação equivale, em termos gerais, ao renascimento do adotado no seio de uma outra família, apagado todo o seu passado. [39]

Noutro vértice, defendeu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conferindo ao filho adotivo o direito de investigar sua "paternidade" biológica, sustentando que

os deveres erigidos em garantia constitucional à criança e ao adolescente, na Carta de 1988, em seu art. 227, se sobrepõem às regras formais de qualquer natureza, e não podem ser relegados a um plano secundário, apenas por amor à suposta intangibilidade do instituto da adoção. Opor à justa pretensão da menor adotada, em ver admitida a paternidade biológica, com os embaraços expostos na sentença, é o mesmo que entender que alguém, registrado em nome de um casal, seja impedido de investigar sua verdadeira paternidade, porque a filiação é tanto ou mais irrevogável do que a adoção. No entanto, a todo o momento deparamos com pessoas registradas como filhos de terceiro, que obtêm o reconhecimento da verdadeira paternidade e têm, por conseqüência, anulado o registro anterior. [40]

Nesse mesmo norte, vale destacar ainda outro julgado do Tribunal gaúcho, o qual, acertadamente, decidiu:

O filho de mãe solteira, adotado na modalidade simples do antigo Código de Menores, presente que a nova ordem constitucional tornou todas as formas de adoção irrevogáveis, não precisa desconstituir a adoção, para investigar sua paternidade. Se não tinha pai conhecido por ocasião da adoção, nada impede que busque saber quem ele é, sem prejuízo do juízo do vínculo civil. Inteligência dos arts. 27 e 41 do ECA, e do art. 378 do CC, sob inspiração do princípio da proteção integral da criança. [41]

5.1.1 Efeitos Jurídicos

Pois bem, em que pese seja defendida a idéia de que o filho havido pelo método de reprodução assistida, em sua forma heteróloga, possui o direito personalíssimo de investigar sua paternidade biológica, cumpre sopesar os efeitos, e em quais circunstâncias, a quebra do anonimato do doador do material genético poderá se dar.

Nas palavras de José Roque Junges, "o sigilo quanto ao doador é um requisito positivo, mas entra em conflito com o direito de a criança saber quem é seu pai". [42]

Segundo Belmiro Pedro Welter [43], tal investigação será legítima em três hipóteses:

a)em havendo uma necessidade psicológica de se conhecer a origem genética;

b)com o propósito de se preservar os impedimentos matrimoniais;

c)a fim de garantir a vida e a saúde da criança ou dos pais

biológicos, em caso de grave doença genética ou hereditária.

Todavia, vale ressaltar que, em estando fixada a paternidade socioafetiva, a qual, assim como na adoção, é irrevogável (art. 48 do ECA), a investigação quanto à identidade do doador surtirá efeito meramente cognitivo, ou seja, não implicará reconhecimento ou declaração de filiação por parte dele, bem como nos efeitos naturais do parentesco (alimentos, nome, sucessão, poder familiar).

Como bem assevera Belmiro Pedro Welter, no Brasil, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a adoção é irrevogável, porém ressalva o direito ao filho adotivo em investigar a paternidade biológica. Tal entendimento pode ser inferido do seguinte acórdão, destacado pelo autor:

Admitir-se o reconhecimento do vínculo biológico de paternidade não envolve qualquer desconsideração ao disposto no art. 48 da Lei 8.69/1990 (ECA). A adoção subsiste inalterada. A lei determina o desaparecimento dos vínculos jurídicos com pai e parentes, mas, evidentemente, persistem os naturais, daí a ressalva quanto aos impedimentos matrimoniais. Possibilidade de existir, ainda, respeitável necessidade psicológica de se conhecer os verdadeiros pais. Inexistência, em nosso direito, de norma proibitiva, prevalecendo o disposto no art. 27 do ECA. [44]

5.1.1.1 Necessidade psicológica

O anseio pelo conhecimento acerca da origem genética, da ancestralidade biológica, é, sem dúvida, inerente ao próprio ser humano. A evolução jurídico-normativa vivenciada não só em território pátrio, mas em todo o contexto global, no tocante ao direito de família, é todo no sentido de extirpar a discriminatória classificação das "espécies" de filiação, atingindo-se hodiernamente uma condição de igualdade incondicionada entre os filhos, garantia esta que goza de status constitucional.

Neste sentido, é oportuno destacar louvável comento tecido por Luíza Nagib Eluf, em matéria da Folha de São Paulo, publicada em 31/08/96, nos seguintes termos:

No tempo em que as discriminações eram autorizadas em nosso país, havia várias categorias de filhos: os bastardos, os naturais, os espúrios ou de coito danado, os adulterinos, os incestuosos e os sacrílegos, todos pertencentes à categoria geral dos ilegítimos e concorrendo em absoluta desvantagem com os legítimos. Graças ao avanço da cidadania e ao justo entendimento de que os filhos não devem pagar por eventuais erros dos pais, essas distinções são hoje inconstitucionais. Filhos são filhos, todos iguais, sem adjetivos. [45]

O direito ao reconhecimento da paternidade biológica é amplamente garantido pelo ordenamento jurídico pátrio, sendo assegurado tanto pela Constituição, quanto pela legislação infraconstitucional (Código Civil e ECA, em especial).

O direito do filho em conhecer suas origens genéticas é, sem dúvida, superior à intimidade ou privacidade do pai biológico, ainda que não tenha havido o animus no ato da concepção (caso em que sequer poderia ser chamado de "pai", mas meramente "genitor"), como ocorre em relação ao doador do material genético na reprodução artificial heteróloga.

O desejo, por parte do filho, de conhecer suas origens genéticas está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio este basilar de toda a ordem jurídica, sobretudo da ordem constitucional, "elevado a fundamento da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, da CF)". [46] E ainda, segundo leciona Jorge Miranda:

nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana [...] enquanto houver uma pessoa que não veja reconhecida a sua dignidade, ninguém pode considerar-se satisfeito com a dignidade adquirida. [47]

Anete Trachtenberger faz primorosa observação, no sentido de que grande parte dos homens que, para reconhecerem a paternidade de um filho, exigem a realização de exame pericial, apresenta histórico familiar de rejeição, cujos pais abandonaram o lar ou negaram-se ao reconhecimento da paternidade. "Esses homens", conclui a autora, "passaram todo o ciclo de vida, até a fase adulta, sem um relacionamento mais próximo com a figura paterna", lembrando ainda que a

influência da família não está restrita aos membros de uma determinada estrutura doméstica ou a um dado ramo familiar nuclear do sistema, ela está sempre reagindo aos relacionamentos passados, presentes e antecipando futuros. [48]

5.1.1.2 Impedimentos matrimoniais

A proibição do incesto pode ser considerada como a primeira das leis de organização social, no que diferencia a sociedade humana do mundo animal.

Os impedimentos matrimoniais são resguardados até mesmo no caso de adoção, a qual, para todos os outros efeitos, é irrevogável. Nesse sentido, estabelece o art. 41 do ECA:

Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.

Por certo, com a adoção, rompe-se o vínculo de filiação entre o adotado e sua família biológica. Contudo, subsistem os impedimentos matrimoniais, os quais, no dizer de Arnaldo Rizzardo,

abrangem tanto os parentes da mãe ou do pai biológico, como daquele que deu o sêmen ou emprestou o útero, pois o sêmen utilizado liga o seu fornecedor ao filho daí resultante por laços de sangue. [49]

A Resolução nº 1.358/92 do CFM, com o escopo de tentar ao menos mitigar tal problemática, previu a seguinte disposição:

IV – DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

[...]

5 – Na região de localização da unidade, o registro das gestações evitará que um doador tenha produzido mais que 2 (duas) gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de habitantes.

Todavia, não há como se considerar que tal disposição possa ser suficiente a sufragar o problema, tampouco pode servir como fundamento a tentar obstar o direito à investigação da ascendência genética, por parte do filho, em face do doador.

Belmiro Pedro Welter destaca a respeito valorosa orientação do Superior Tribunal de Justiça, a qual se infere do seguinte julgado:

Admitir-se o reconhecimento do vínculo biológico de paternidade não envolve qualquer desconsideração ao disposto no art. 48 da Lei 8.069/1990 (ECA). A adoção subsiste inalterada. A lei determina o desaparecimento dos vínculos jurídicos com os pais e parentes, mas, evidentemente, persistem os naturais, daí a ressalva quanto aos impedimentos matrimoniais. [50]

5.1.1.3 Doenças genéticas ou hereditárias

Em se tratando de doenças genéticas, não há, definitivamente, como prevalecer o anonimato do doador sobre o direito à vida e à saúde do filho, preponderando nesses casos, de forma incontestável, o maior interesse da criança.

A Resolução nº 1.358/92 do CFM, ao tratar sobre o anonimato do doador de material genético, dispôs expressamente que, em situações especiais, e por motivação médica, tais informações poderiam ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se contudo o sigilo quanto à identidade civil do doador. Neste sentido, dispõe a referida Resolução:

IV – DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

[...]

3 – Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

A respeito desse aspecto, assevera Guilherme de Oliveira que

o progresso dos meios de diagnóstico e dos meios terapêuticos das doenças genéticas tornou fundamental, em certos casos, conhecer antecedentes biológicos de um indivíduo – casos em que a confidencialidade e o anonimato dos progenitores se tornam obstáculos inconvenientes ou mortais. [51]

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Juliano Augusto Souza. A investigação de paternidade na reprodução artificial heteróloga. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2481, 17 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14676. Acesso em: 22 nov. 2024.

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