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O papel da advocacia pública consultiva no enfrentamento da corrupção

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Agenda 06/05/2010 às 00:00

Por um lado, sendo advogados, são parceiros e confidentes do gestor; doutro lado, sendo auxiliares no controle da legalidade dos atos administrativos, são também fiscais do gestor.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Auxílio no controle da legalidade; 3. Elaboração normativa; 4. Elaboração de teses jurídicas; 5. Articulação entre instituições.


1. INTRODUÇÃO

Muito se tem discutido sobre o papel da advocacia pública consultiva na prevenção e no combate à corrupção. Trata-se de tema central das políticas públicas brasileiras, eis que o combate à corrupção está inserido na agenda nacional como um dos itens prioritários. Para essa análise, devem ser considerados os trabalhos desenvolvidos, no âmbito federal, pelas Consultorias Jurídicas dos Ministérios (CONJUR) e pelos Núcleos de Assessoramento Jurídico (NAJ) e, nas esferas estadual e municipal, pelas respectivas unidades consultivas de suas Procuradorias.

Sobre esse assunto, é preciso ter em mente, primeiramente, que a posição dos consultores jurídicos não é simples. Por um lado, sendo advogados, são parceiros e confidentes do gestor; doutro lado, sendo auxiliares no controle da legalidade dos atos administrativos, são também fiscais do gestor. Equilibrar-se nesse fio de navalha não é tarefa fácil, mas há diretrizes que podem nortear uma ação eficaz contra a corrupção.

Não se pode perder de vista que o gestor público é o representante do poder eleito democraticamente para implantar políticas públicas, devendo-se presumir a boa-fé de suas ações. Conquanto o papel do consultivo seja "assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa dos atos" (art. 11, inciso IV), não se pode confundir essa missão com a do Ministério Público ou mesmo com a dos órgãos de auditoria e de fiscalização (Controladoria-Geral da União e Tribunal de Contas da União). O próprio texto legal menciona que se deve auxiliar o gestor nesse controle de legalidade, e não propriamente investigá-lo. A presunção de ilegitimidade dos atos do gestor, portanto, não se coaduna com o papel das consultorias.

Apesar de se impor a presunção de legitimidade dos atos do gestor, há um largo espaço para a atuação da consultoria jurídica na prevenção e no combate à corrupção. Destaco quatro grupos de atividades que devem ser levadas em conta no desempenho das funções de assessoria jurídica: a) auxílio no controle de legalidade; b) elaboração normativa para a transparência e o controle; c) a formulação de teses; e d) articulação interinstitucional. Trataremos cada um deles em um dos tópicos a seguir.


2. AUXÍLIO NO CONTROLE DA LEGALIDADE

Quanto ao papel da advocacia pública consultiva no auxílio do controle de legalidade de licitações e de convênios, convém iniciar a análise pelo exame da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, que assim dispõe:

Art. 11. Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente:

[...]

V - assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa dos atos a serem por ela praticados ou já efetivados, e daqueles oriundos de órgão ou entidade sob sua coordenação jurídica;

VI - examinar, prévia e conclusivamente, no âmbito do Ministério, Secretaria e Estado-Maior das Forças Armadas:

a) os textos de edital de licitação, como os dos respectivos contratos ou instrumentos congêneres, a serem publicados e celebrados;

b) os atos pelos quais se vá reconhecer a inexigibilidade, ou decidir a dispensa, de licitação.

O papel das consultorias jurídicas, segundo o texto legal transcrito, é o de assistir a autoridade assessorada. Essa atribuição não pode ser confundida com a missão conferida constitucionalmente aos órgãos de controle interno e externo, aos quais compete apreciar ou comprovar a legalidade dos atos administrativos (art. 71 e art. 74 da Constituição). Ainda que haja alguma interseção entre esses papéis, merece realce o papel do advogado público de auxiliar do gestor no controle da legalidade de seus atos. Eventual incorreção das ações administrativas deve ser reparada por meio da indicação de caminhos alternativos, e não pelo registro de críticas descompromissadas com os objetivos institucionais do órgão assessorado.

Por isso, em relação a esse auxílio ao gestor no controle da legalidade das licitações e dos convênios, é preciso observar que há algum espaço para agir, mas é preciso ter conta que essa atuação não é a maior contribuição que os advogados públicos podem dar à causa da prevenção e do combate à corrupção. Sua eficácia é bastante limitada, já que a maior parte dos problemas, hoje, é constatada na execução dos contratos ou dos convênios, e não propriamente nas licitações ou na celebração do termo.

Assim, não passam pela análise da consultoria jurídica problemas como o pagamento por serviços não-prestados ou por obras não executadas, a utilização de licitação "guarda-chuva" pelo convenente ou mesmo a utilização de material de qualidade inferior à pactuada.

Vê-se, portanto, que, nesse aspecto, a atuação central contra a corrupção é das equipes de auditoria e de fiscalização, isto é, dos órgãos de controle interno e externo. Ainda assim, porém, parte dos problemas pode sim ser enfrentada pelo consultivo jurídico, entre os quais a realização de aditivos contratuais com a finalidade de promover o "jogo de planilhas" ou de modificar substancialmente o objeto, cláusulas restritivas para a competição (direcionamento de licitação), repactuações indevidas, reconhecimento de situação de inexigibilidade inexistente e critérios de julgamento injustificados.

Parcela desses temas, porém, exige conhecimentos técnicos relacionados ao objeto da licitação ou do convênio. Nesse caso, o grande papel do consultivo é exigir que haja documentos da área especializada, devidamente assinados, atestando a adequação das medidas. A exigência da firma nesses documentos é essencial para deixar claras as responsabilidades e, se for o caso, posteriormente, viabilizar a aplicação de sanções aos que praticaram atos irregulares. Nessa linha, veja-se, por exemplo, a opinião da advogada da união Angélica Moreira Dresch da Silveira, que ressalta o papel dos Núcleos de Assessoramento Jurídico e as Consultorias Jurídicas dos Ministérios:

"O Núcleo de Assessoramento Jurídico não dispõe de competência para a análise contábil dos valores postos no orçamento estimativo elaborado pelo licitante, nem para o levantamento dos preços cotados, providências a cargo dos órgãos/setores técnicos competentes (princípio da segregação das funções), mas deve verificar se constam dos autos do processo os respectivos comprovantes/orçamentos que serviram de parâmetro à fixação do preço. A orientação do NAJ, no exame jurídico do procedimento licitatório e de contratação direta, deve ser no sentido de que o órgão licitante comprove a realização da pesquisa de mercado, através da juntada dos respectivos orçamentos, orientação que encontra respaldo na jurisprudência do Tribunal de Contas da União." (SILVEIRA, 2009, pp. 95-96)

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Para aprimorar esse trabalho, contudo, seria conveniente a realização de cursos de capacitação com auditores especializados nessas questões, o que auxiliaria a compreensão das matérias e permitiria que os integrantes das unidades de consultoria pudessem realizar análises menos jurídico-formais, e mais voltadas aos pontos sensíveis de licitações, contratos e convênios. De todo modo, cumpre estar alerta às diferenças entre o papel do auditor e a missão do advogado público.

Seria ainda importante a realização de uma lista de verificação dos itens a serem obrigatoriamente examinados em cada processo de contratação ou de convênio. A criação de um protocolo mais rigoroso de análise tornaria o trabalho mais rápido e mais simples (já que o advogado saberia exatamente o que verificar), além de mais eficaz (uma vez que os pontos sensíveis poderiam ser incorporados ao check list).

Desse modo, há uma tarefa importante a desempenhar no auxílio do gestor no controle da legalidade dos atos. Esse papel, contudo, não pode confundir-se com o dos órgãos de controle. Situações excepcionais de evidente má-fé ou de detecção de irregularidade grave devem ser solucionadas por meio de representação aos próprios órgãos de controle ou, se for o caso, até mesmo às instituições de investigação e de persecução penal. Mas simples impropriedades em procedimentos administrativos ou divergências de entendimento não devem merecer críticas descompromissadas com os objetivos institucionais do órgão, e sim registros com alternativas de encaminhamentos.


3. ELABORAÇÃO NORMATIVA

A segunda área de atuação contra a corrupção das unidades consultivas da advocacia pública é a de elaboração normativa. Como os atos normativos do Poder Executivo são sempre submetidos previamente à análise das respectivas unidades de assessoramente jurídico, cabe a elas papel fundamental na formatação de políticas públicas. As ações governamentais são regidas por leis, decretos ou portarias – daí o relevo do papel a cargo das consultorias jurídicas.

Ao examinar o conteúdo de cada um dos atos normativos editados pelo poder público, as consultorias podem tomar parte no modelo das políticas públicas, buscando aprimorá-las. De fato, o poder estatal exerce suas atividades por meio de políticas públicas, conceito-chave no Direito Administrativo atual, conforme aponta Maria Paula Dallari BUCCI em seu Direito Administrativo e Políticas Públicas (2002). Convém transcrever excerto com a definição da autora para políticas públicas:

"Políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas para a realização de objetivos relevantes e politicamente determinados." (BUCCI, 2002, p. 241)

Ora, a prerrogativa da advocacia pública consultiva de examinar os atos normativos que fixarão as políticas públicas permite buscar a incorporação de medidas que auxiliem a prevenção e o combate à corrupção.

Assim, devem as unidades consultivas demandar que a norma analisada contemple, com clareza: 1) os objetivos da política pública em questão; e, sempre que possível, 2) os indicadores de desempenho para mensurá-la adequadamente, quer em termos de produto, quer em termos de impacto social. A explicitação dessas medidas permite um acompanhamento de resultados da política pública. Desse modo, os dados colhidos ao longo da execução podem sugerir a difusão da medida (alta efetividade), modificação e aprimoramentos (efetividade parcial), ou ainda, caso se revele ineficaz para o problema que pretendiam enfrentar, sua completa reformulação (inefetividade).

Além disso, deve-se buscar que das normas constem, sempre que viável: 3) transparência da aplicação dos recursos públicos; e 4) mecanismos de fomento ao controle social. Seriam inestimáveis, por exemplo, os ganhos de eficiência e de legalidade se a aplicação dos recursos públicos estivesse sempre em bancos de dados eletrônicos centralizados e de livre acesso à população. Essas medidas representariam uma enorme contribuição por permitir um controle de resultados eficaz das ações governamentais por parte da população interessada.

A demanda do consultivo jurídico para incluir medidas dessa natureza não é desprovida de fundamento. O próprio caput do art. 37 da Constituição insere o princípio da publicidade entre os que regem a administração pública. Com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998, a Constituição fixa que a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública, regulando o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo (art. 37, § 3º, inciso II). Vale notar que José Afonso da SILVA vê nesse trecho da Carta a consagração do princípio da participação (SILVA, 2000, p. 659). Como todo princípio, trata-se de norma que sustenta o edifício normativo sobre ele erigido, de modo que a inclusão de medidas dessa natureza em normas de índole infra-constitucional apenas configura a concretização da disposição constitucional.

Ainda sobre o tema, é válido transcrever as reflexões do Advogado da União Giordano da Silva ROSSETTO (2007):

"É sabido e consabido que a Administração Pública jamais maneja interesses, poderes ou direitos pessoais seus. Surge, por conseguinte, o dever de publicidade e transparência dos seus atos. Ora, se todo o poder emana do povo, e em seu nome será exercido (art. 1º, parágrafo único, CF), é óbvio que o povo – titular desse poder – tem o direito fundamental de conhecer o que concerne à Administração Pública e de controlar passo a passo o seu exercício.

[...]

Desse modo, a publicidade – e com ela a consectária transparência – passa a ser um pilar indispensável ao controle dos atos públicos por parte da própria Administração Pública e dos cidadãos. Os atos públicos – porque públicos – devem ser do conhecimento de todos indistintamente, isto é, da coletividade, a fim de que se possa dar legitimidade ao exercício das autoridades na gerência de entes estatais. Ora, se os atos materiais de gerenciamento da coisa pública somente são possíveis devido ao aporte dos recursos que a nação disponibiliza (p.ex., tributos e outras receitas), o seu contribuinte-mor – o povo, na pessoa de cada cidadão –, possui legitimidade para obter a devida prestação de contas." (ROSSETTO, 2007, p. 44)

A essas disposições constitucionais devem-se somar as várias normas legais e infra-legais que buscam fomentar a transparência na administração pública e o controle social. A Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal, estabelece no art. 48 instrumentos de transparência da gestão fiscal, impondo até mesmo a divulgação de informações em meios eletrônicos de acesso público. Já o art. 67 desse diploma prevê o acompanhamento e a avaliação por entidades representativas da sociedade e busca ampliar o "controle social" (inciso III).

Na Lei nº 10.180, de 2001, impõe-se aos órgãos integrantes do Sistema de Controle Interno a tarefa de "criar condições para o exercício do controle social sobre os programas contemplados com recursos oriundos dos orçamentos da União" (art. 24, inciso XI). Conquanto essa norma se dirija ao controle interno, é evidente que os órgãos da Advocacia Pública consultiva podem colaborar na viabilização das condições para o controle social, especialmente porque podem fazê-lo antes mesmo da edição da norma.

Há diversas outras normas e ações governamentais no sentido de incrementar a transparência e o controle social. Merecem realce a criação do Portal da Transparência (Decreto nº 5.482, de 30 de junho de 2005), a instituição do Sistema de Convênios (Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007) e ainda os diversos conselhos populares que acompanham políticas públicas específicas, como os de assistência social, saúde, alimentação escolar, etc.

Por essas razões, é de grande valor o papel da advocacia pública consultiva em assegurar que as políticas públicas sejam sempre normatizadas com objetivos claros, indicadores de resultados, transparência e controle social.


4. ELBORAÇÃO DE TESES JURÍDICAS

O terceiro campo de atuação do consultivo jurídico no combate à corrupção consiste na construção de teses jurídicas mais ousadas – e consistentes. Prevalece no Poder Judiciário brasileiro uma tendência à leitura hipergarantista da Constituição. É fato que o Brasil viveu um grande trauma ligado à ditadura militar e a sua prática de desrespeito aos direitos fundamentais. Entretanto, a difusão da criminalidade organizada impôs novas formas de ação estatal em defesa da sociedade. A super proteção conferida a garantias fundamentais pode vir a tornar-se um biombo para acobertar a prática de ilegalidades, prejudicando outros valores fundamentais igualmente relevantes, como a segurança pública e a justiça

A violação dos direitos humanos universalmente aceitos, ainda presente no Brasil, deve-se hoje à ação de grupos criminosos que atuam paralelamente às instituições e às regras postas – e não a interpretações rigorosas do texto constitucional ou a medidas legislativas de duvidosa legitimidade, como há algumas décadas.

Por isso, é hora de superar esse momento histórico e conferir aos institutos jurídicos interpretações consentâneas com aquelas atribuídas em outras democracias maduras. Não se trata de transgredir direitos fundamentais – pelo contrário –, mas sim de atribuir-lhes os contornos adequados às necessidades brasileiras atuais de combate à criminalidade organizada, sintonizando-os com a tradição de outros países igualmente democráticos.

Vale ainda observar que não se cuida de relativização de direitos fundamentais, com base apenas em princípios genéricos – o que poderia, como já apontou o Ministro EROS GRAU (HC 95009), dar margem até mesmo a ignorar o texto constitucional ou legal ao sabor dos desejos do intérprete. Busca-se, em rigor, conferir interpretações a institutos constitucionais e legais claramente autorizados pela norma, evitando, na verdade, que se realize o contrário do pretendido pelo legislador, isto é, a flexibilização do texto normativo expresso em favor de princípios abstratos da ampla defesa, do contraditório e da presunção da inocência.

De fato, no Brasil, o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência foram levados ao paroxismo. Esses três princípios constitucionais têm sido usados e abusados, como se ampla defesa fosse sinônimo de defesa infinita. Combater o crime organizado, o que inclui a corrupção, exige medidas corajosas – talvez desnecessárias para punir infrações leves, mas imprescindíveis para o combate à criminalidade sofisticada. Não se pode enfrentar organizações criminosas apenas com os instrumentos probatórios tradicionais, como testemunhas e documentos. A aplicação mais rigorosa de normas constitucionais pode ser feita de modo a equilibrar os valores em conflito – do mesmo modo como várias outras nações fazem, sem que se lhes atribua a pecha do autoritarismo.

É válido transcrever excerto de Marcelo Batlouni MENDRONI (2006), no qual tratava do enfrentamento da lavagem de dinheiro, prática indissociavelmente ligada à corrupção. Diz o autor:

"Por certo que a lei é rigorosa, enfatizamos, mas não poderia ser de outra forma. Não se combate câncer com aspirina. Para crimes graves e complexos, leis rigorosas e eficientes. Muitas vozes alardeiam inconstitucionalidade e falta de critérios de proteção dos direitos individuais, mas enganam-se e se esquecem de raciocinar com os motivos maiores da implantação destes mecanismos nas legislações de inúmeros países – todos semelhantes –, a proteção da sociedade.

[…] Evidente que não se trata de ofender os direitos e garantias individuais dos cidadãos, constitucionalmente previstos em todos os países. Trata-se, ao revés, de preservá-los através da viabilização do combate eficiente à criminalidade chamada ´´de colarinho branco´´, modalidade de crime organizado, evitando-se, novamente, repita-se, o ´´hipergarantismo´´ dos ´´delinquentes de gravata´´." (MENDRONI, 2006, pp. 126-127)

E, ainda sobre o rigor necessário aos crimes do colarinho branco, conclui o autor da seguinte forma:

"Precisamos entender a grandeza da necessidade de combater as organizações criminosas, os crimes de colarinho branco – para o bem da nossa sociedade. Estes são os crimes que realmente afetam a sociedade, impedem o seu desenvolvimento e a formação de um país mais justo. A lei aí está e deve ser utilizada sem medo e dentro dos seus rigores, e assim começaremos a desfazer o velho ditado: Lex est araneae tela, quia, si in eam inciderit quid debile, retinetur; grave autem pertransit tela rescissa – A Lei é como uma teia de aranha: se nela cai alguma coisa leve, ela retém; o que é pesado rompe-a e escapa." (op. cit., p. 158)

Entre as teses necessárias ao combate eficaz à corrupção merece destaque, de longe, a flexibilização do sigilo. É impossível enfrentar os crimes de colarinho branco sem troca de informações entre os órgãos estatais. Há que se buscar medidas para a troca sistemática de dados entre as diversas unidades incumbidas da repressão aos ilícitos, como a Controladoria-Geral da União, a Polícia Federal, o Banco Central, a Receita Federal e os bancos oficiais. O enrijecimento das trocas de dados a pretexto de salvaguardar a intimidade tem sido um dos principais obstáculos à efetividade do enfrentamento do crime organizado. Ainda que, em alguns poucos temas, haja necessidade de modificação legislativa, na maioria dos casos a tarefa de flexibilizar as regras de compartilhamento de sigilo é de responsabilidade dos advogados públicos.

Ainda sobre o sigilo, é conveniente examinar duas decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal. A primeira (MS nº 21729-DF, julgado em 1995) estabelece que informações sobre recursos públicos não estão submetidas a sigilo, podendo ser compartilhadas com o Ministério Público. Como corolário desse entendimento, deve-se compreender que qualquer interessado pode acessar tais dados, e não só o Ministério Público, já que o fundamento é a inexistência de sigilo. Mais recentemente, o STF realizou o julgamento do MS nº 22801-DF, julgado em 2007, que, à primeira vista, pareceu contrariar seu entendimento anterior, levando, aliás, alguns intérpretes a divulgar, equivocadamente, que a Corte mudara de posição. A análise cuidadosa do tema demonstra que não foi isso. No caso, o STF negou ao TCU a obtenção de senhas que conferiam acesso indiscriminado a informações a cargo do Banco Central do Brasil. Ocorre que o Sistema do BACEN que o TCU pretendia acessar continha diversas informações de caráter privado de pessoas físicas e jurídicas, sem qualquer relação com recursos públicos. O STF, assim, não afastou a possibilidade de compartilhar dados relacionados à malversação de recursos públicos, ou mesmo a atrapalhar trabalhos de auditoria com valores dessa natureza; na verdade, a Corte apenas explicitou que o acesso a dados de interesse exclusivamente privado não poderia ser repassado ao TCU, já que a ele não cabe apurar ilícitos dessa índole.

Há outros exemplos de teses favoráveis ao interesse público. O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 343, asseverando que a falta de advogado em processo disciplinar tornaria a apuração nula por violação ao contraditório e à ampla defesa. O entendimento do Tribunal alargou a ampla defesa a níveis abusivos, dando margem à anulação de milhares de processos apuratórios pelo simples fato de que, por opção própria, o investigado não contratou advogado – ou até contratou, mas ele não figurou formalmente no processo para provocar a nulidade. Felizmente, nesse caso, acatando o recurso apresentado pela advocacia pública, o Supremo Tribunal Federal reviu o entendimento do STJ, lançando a Súmula Vinculante nº 5, que dispunha justamente o inverso do que pretendia o tribunal a quo: "A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição."

Cabe ainda fazer referência ao tratamento dispensado às denúncias anônimas. Alguns intérpretes, aludindo ao texto constitucional (art. 5º, inciso IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato), argumentam que qualquer denúncia anônima deve ser desconsiderada pelo poder público. Tal entendimento está longe de representar o objetivo do constituinte, além de formar um obstáculo enorme para investigação de ilícitos, especialmente quando se trata de criminalidade organizada.

O STF já entendeu que o que a Constituição veda é a investigação baseada exclusivamente em denúncia anônima (veja-se, por exemplo, o RHC nº 86082-RS, julgado em 2008). Quando a denúncia é acompanhada de diligências preliminares pelas autoridades investigatórias, não há obstáculo ao prosseguimento da apuração, já que a lei impõe que as autoridades ajam de ofício. Nos casos de crimes organizados, tanto o sigilo do denunciante, como a denúncia anônima são indispensáveis, tendo em vista o receio dos denunciantes de serem punidos – até com a vida – por tornarem públicas relações incestuosas no seio do poder público. Por essas razões, os principais tratados internacionais contra a corrupção preveem mecanismos para proteger o sigilo dos denunciantes, como a Convenção Interamericana contra a Corrupção, de 1996, e a Convenção da ONU contra a Corrupção, de 2003 – ambas incorporadas ao Direito brasileiro por meio do Decreto nº 5.687, de 2006, e pelo Decreto nº 4.410, de 2002).

Sobre o tema, é válido trazer à tona a situação relatada pelo diretor-executivo da organização Transparência Brasil, Cláudio ABRAMO (2010). Se um agente da Polícia Federal de plantão recebe um telefonema anônimo comunicando que um bombardeador suicida está em um avião prestes a decolar e, ao averiguar a situação, confirma que um passageiro realmente veste um colete com dinamites, o que deveria fazer o policial? Segundo a tese hipergarantista, não deveria agir, porque há um vício de origem na denúncia anônima. Embora caricata, a situação retrata os riscos que o super garantismo tem trazido para situações tão graves quanto essa na área de corrupção, ainda que os danos não sejam tão evidentes quanto uma bomba em uma aeronave.

Em síntese, esse trabalho de construção de teses favoráveis à União e ao interesse público é, por excelência, a incumbência dos advogados públicos. Trata-se da realização plena de suas missões institucionais, aproveitando-se do conhecimento exigido para o concurso público, do compromisso com o interesse público e da criatividade necessária à concepção dos argumentos. É o principal mecanismo pelo qual a advocacia pública consultiva pode prevenir e combater a corrupção no Brasil.

Sobre o autor
Rafael Ramalho Dubeux

Advogado da União. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUBEUX, Rafael Ramalho. O papel da advocacia pública consultiva no enfrentamento da corrupção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2500, 6 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14808. Acesso em: 23 nov. 2024.

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