1. Antecedentes históricos.
É tradicional a apresentação do tema "direitos fundamentais" a partir de uma ruptura com o sistema jurídico precedente efetivada pelo "Virginia Bill of Rigths", de 1776, e pela "Déclaration dês Droits de l´Homme ET Du Citoyen", de 1789.
Assim, o corte histórico tradicional dos direitos fundamentais costuma ser dividido em dois momentos: um anterior às referidas declarações de direitos, que seria caracterizado por uma "cegueira em relação à idéia dos direitos do homem", como afirma Canotilho [01]; outro posterior aos textos citados, representada pela constitucionalização dos direitos do homem, ou seja, pela positivação de tais direitos nas constituições escritas.
Se é certo que aquelas duas declarações de direitos do Séc. XVIII foram os primeiros textos que acolheram os direitos do homem em formas aproximadas às que hoje se conhecem, é um equívoco supor que essa consagração não representa, na verdade, mais um passo em um caminho evolutivo-histórico de afirmação desses direitos.
Destarte, a despeito de não se poder considerar a existência de direitos do homem na antiguidade, não se pode olvidar que alguns elementos do que futuramente veio a se considerar direito fundamental estavam presentes na antiguidade. Nesse sentido, vê-se clara a idéia de igualdade já no pensamento sofístico e no pensamento estóico: para os primeiros, essa igualdade (que se alia à idéia de humanidade) decorre da natureza biológica comum dos homens; enquanto que os estóicos fundamentam essa igualdade no "facto de todos os homens se encontrarem sob um nomos unitário que os converte em cidadãos do grande Estado universal" [02].
Contudo, essa igualdade dos homens idealizada na antiguidade não chegou a ultrapassar o plano filosófico para se transformar em categoria jurídica.
Mais próxima da configuração hodierna dos direitos fundamentais chegou a "Magna Charta Libertatum", de 1215. Esse documento, entretanto, nas palavras de Canotilho [03],
Não se tratava, porém, de uma manifestação da idéia de direitos fundamentais inatos, mas da afirmação de direitos corporativos da aristocracia feudal em face do seu suserano. A finalidade da Magna Charta era, pois, o estabelecimento de um modus vivendi entre o rei e os barões, que consistia fundamentalmente no reconhecimento de certos direitos de supremacia ao rei em troca de certos direitos de liberdade estamentais consagrados nas cartas de franquia.
Como se nota, tais cartas de direitos ainda não possuíam o caráter de universalidade inerente à idéia de direito fundamental do ser humano, muito menos vinculavam o parlamento para a edição de atos normativos. Isso só será constatado efetivamente com a constitucionalização.
2. Desenvolvimento histórico em dimensões (ou gerações).
A doutrina diverge acerca do entendimento e da nomenclatura referente à evolução histórica dos direitos fundamentais. Assim, alguns autores preferem usar o termo "gerações" de direitos fundamentais, quando tratam do desenvolvimento e consagração desses direitos ao longo do tempo; outros há que entendem mais apropriado se falar em "dimensões" dos direitos fundamentais.
Nota-se que a questão, apesar de ser aparentemente meramente de nomenclatura (pois mesmo os autores que usam a expressão "gerações" entendem que não há a superação de uma geração pela seguinte), é de relevância para melhor entendimento da natureza e conteúdo dos direitos fundamentais no seu desenvolvimento histórico. Adota-se aqui a expressão "dimensões" dos direitos fundamentais, por compreender que a palavra "gerações" remete necessariamente a uma sucessão ou superação da nova geração pela precedente, o que não é o caso das dimensões dos direitos fundamentais. Os direitos consagrados nas novas dimensões se agregam aos direitos já anteriormente acolhidos nos textos Constitucionais, importando, no máximo, em uma releitura dos direitos fundamentais "antigos" sob a perspectiva da nova dimensão.
E as dimensões dos direitos fundamentais estão estreitamente ligadas às transformações decorrentes do reconhecimento de novas necessidades básicas (fundamentais) da sociedade na qual estão inseridos.
Nesse contexto, deve-se destacar que a Revolução Francesa de 1779 "garantiu ao mundo um lema que norteou todo o século XVIII até os nossos dias, ao exprimir em três princípios básicos todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais. Bonavides afirma que a revolução teve o mérito de ''profetizar até mesmo a seqüência histórica de sua gradativa institucionalização: ''liberdade, igualdade e fraternidade''" [04]. Assim, à liberdade correspondem os direitos de primeira dimensão (direitos de defesa do indivíduo em face do Estado); à segunda dimensão, remete-se a igualdade (consubstanciada em direitos à prestação); por fim, a terceira dimensão dos direitos fundamentais está relacionada com o lema da fraternidade (com direitos de titularidade difusa, indeterminada e indeterminável).
Como destacado, são direitos de primeira geração (ou dimensão) o direito à vida, à liberdade e à igualdade (formal ou perante a lei), que correspondem à positivação de anseios liberais e burgueses do Séc. XVIII. Trata-se de direitos de defesa dos indivíduos em face do Estado, na medida em que asseguram ao cidadão "uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder" [05].
Para Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros [06], os direitos fundamentais de primeira dimensão "podem ser considerados como aqueles que marcaram o seu reconhecimento perante as Constituições, recebendo ''status'' constitucional formal e material". Nota-se, portanto, nessa dimensão dos direitos fundamentais, caráter essencialmente individualista.
Já segundo Paulo Bonavides [07], os direitos fundamentais de primeira dimensão representam exatamente os direitos civis e políticos, que correspondem à fase inicial do constitucionalismo ocidental, mas que continuam a integrar os catálogos das Constituições atuais (apesar de contar com alguma variação de conteúdo), o que demonstra a cumulatividade das dimensões.
A segunda dimensão (ou geração) dos direitos fundamentais, que foi consagrada nos textos constitucionais no Séc. XIX, decorreu da constatação de que a mera previsão formal de liberdade e igualdade não garantia seu efetivo gozo pelos indivíduos. Essa nova dimensão tem natureza positiva, prestacional e visa realizar o ideal do bem-estar social.
Entre os direitos de segunda dimensão, destacam-se o direito à assistência social, à saúde, à educação e ao trabalho. A despeito de não serem propriamente prestacionais, também aqui figuram liberdades sociais (liberdade de sindicalização e direito de greve) e direitos fundamentais dos trabalhadores (férias, repouso semanal remunerado, garantia do salário mínimo).
Essa segunda dimensão vem atender aos anseios de outro momento histórico. Agora não se cuida mais de proteger o indivíduo do Estado, através de um território de não-intervenção Estatal e uma zona de autonomia individual do cidadão em face do poder do Estado. Ao longo dos Sécs. XIX e XX, com o impacto da industrialização e os sérios problemas sociais decorrentes dela, reconheceu-se que o Estado tinha outro (mais um) dever, além daquele de abstenção: ao Estado competia realizar a justiça social.
Sobre a segunda dimensão, Bonavides [08] acrescenta que "(...) são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal deste século. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula".
Assim, nota-se que, a despeito de o caráter prestacional ser o elemento de maior destaque dessa fase de desenvolvimento dos direitos fundamentais, os direitos de segunda dimensão vão além dos direitos de cunho positivo. Anote-se também que, apesar de se tratar de fase que tem por objetivo alcançar a justiça social, aqui, assim como na primeira dimensão, os direitos se reportam à pessoa individualmente considerada, distante ainda dos direitos coletivos ou difusos.
Em boa síntese elaborada por Ingo Wolfgang Sarlet [09], "(...) os direitos de segunda dimensão podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem a reivindicações das classes menos favorecidas, de modo especial da classe operária, a título de compensação, em virtude da extrema desigualdade que caracterizava (e, de certa forma, ainda caracteriza) as relações com a classe empregadora, notadamente detentora de um maior ou menor grau de poder econômico".
Por fim [10], a terceira dimensão (ou geração) dos direitos fundamentais, consagrada na segunda metade do Séc. XX, caracteriza-se pela sua titularidade difusa ou coletiva. Ou seja, o destinatário, o titular dos direitos de terceira dimensão não é o indivíduo em si considerado, mas grupos humanos, como a família, os consumidores etc.
Extrai-se do exposto que a titularidade desses direitos muitas vezes é indefinida e indeterminável. Ou, como afirma Cançado Trindade [11], o principal destinatário dessa dimensão é o "gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta". É a mesma leitura feita por Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros [12], ao afirmar que os direitos fundamentais de terceira dimensão "têm por destinação primordial a proteção do gênero humano".
É de se ressaltar, inclusive, que essa nota distintiva dos direitos fundamentais de terceira dimensão, a titularidade coletiva ou difusa, significa até, em muitos casos, que essa titularidade é indefinida ou indeterminável, como já destacado.
Dentre os direitos de terceira dimensão, podem-se apontar o direito à paz, à autodeterminação dos povos, à qualidade de vida, o direito de comunicação e o direito ao meio ambiente equilibrado.
Fernanda Luiza [13] aponta que os direitos de terceira dimensão são denominados de direito de fraternidade ou de solidariedade porque têm natureza de implicação universal. Para a autora citada, tais direitos "Alcançam, no mínimo, uma característica de transindividualismo e, em decorrência dessa especificidade, exigem esforços e responsabilidades em escala mundial, para que sejam verdadeiramente efetivados".
Por fim, apenas para novamente registrar e evitar interpretação equivocada do desenvolvimento histórico dos direitos fundamentais, é de se lembrar que o advento de nova dimensão (ou geração) de direitos fundamentais não implica a superação ou expiração do prazo de validade da dimensão ou geração anteriormente consagrada – isso, é claro, levando-se em conta o adendo de que "Os novos direitos não podem ser desprezados quando se trata de definir aqueles direitos tradicionais" [14].
Referências.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª. Ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003.
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004.
MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Sílvia. Direito ambiental. 2ª. Ed. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2005.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
Notas
- Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª. Ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003., p. 380.
- CANOTILHO. Op. Cit., p. 381.
- Op. Cit., p. 382.
- MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004., p. 69.
- MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Sílvia. Direito ambiental. 2ª. Ed. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2005., p. 20.
- Op. Cit., p. 70.
- Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993., p. 517.
- Op. Cit., p. 476.
- A eficácia dos direitos fundamentais.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 50.
- Isso para os que entendem que existe uma terceira geração e que ela é a última ou mais recente, posto que há quem critique a existência dessa geração, bem como há quem defenda a existência de uma quarta, o que não se adota para o presente trabalho.
- Apud MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Sílvia. Direito ambiental. 2ª. Ed. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2005. p 21.
- Op. Cit., p. 73.
- Op. Cit., p. 74-75.
- MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000., p. 113.