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Uma análise do controvertido art. 1830 do CC/02, sob um cotejamento civil-constitucional

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Agenda 21/05/2010 às 00:00

4. ANÁLISE DO CONTROVERTIDO ARTIGO 1830 DO CC/02 E A BUSCA DA MELHOR SOLUÇÃO

Dada uma visão panorâmica acerca do trato dos direitos sucessórios conferidos aos cônjuges e companheiros no âmbito da ordem jurídica brasileira, pôde-se observar que os mesmos possuem características peculiares, o que tem gerado intensas discussões no âmbito doutrinário e jurisprudencial tendo em vista tal diferenciação de tratamento.

Todavia, passa-se agora ao foco principal do presente trabalho. O objeto desta análise reside na controvertida questão que surgiu com a entrada em vigor do atual Código Civil, que - dentre outros inúmeros erros de técnica legislativa – acabou admitindo questionamentos acerca da atribuição da herança na hipótese de coexistirem companheiro (fruto de uma união estável com o falecido) e cônjuge que esteja separado de fato há menos de dois anos do de cujus ou há mais tempo, desde que prove que a convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente [27].

Ou seja, tal possibilidade de concorrência mostra-se de imperativa importância por tratar-se de um caso não muito difícil de ocorrer na realidade fática, em que uma pessoa, separada de fato de seu cônjuge, acaba por constituir união estável com outra pessoa e, consecutivamente, vem a falecer deixando bens.

Tal possibilidade de concorrência decorre, sobretudo, da redação dada ao artigo 1830 do CC/02:

Artigo 1830 - Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separado judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

Diante de tal disposição conclui-se que, na hipótese de sobrevier cônjuge separado de fato e companheira, a priori, ambas fariam jus a figurarem na sucessão dos bens deixados pelo de cujus.

Tal possibilidade de concorrência seria possível em virtude do atual entendimento acerca dos critérios necessários para a caracterização das uniões estáveis, conforme preceitua o artigo 1723 do novo Código Civil:

Artigo 1.723 - É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

O legislador se omitiu quanto à fixação de um tempo mínimo para o reconhecimento das uniões estáveis e dos direitos delas decorrentes, reiterando o que já vinha sendo adotado no artigo 1º da Lei nº 9278/96.

Destarte, o prazo mínimo para a caracterização de tal entidade familiar não mais subsiste, não sendo mais o fator temporal determinante para o seu reconhecimento, mas tão-somente a ocorrência dos outros elementos mencionados.

Lado outro, para que seja possível a ocorrência da controversa questão que se busca elucidar na presente análise, ou seja, a possibilidade de que cônjuge e companheiro venham a concorrer no montante hereditário, imprescindível se faz a análise da disposição trazida no § 1º do mesmo artigo 1723 do Código de 2002:

Artigo 1723: (...)

§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.

Portanto, embora diga o legislador que não se constituirá a união estável se ocorrerem os impedimentos para o casamento nos termos do artigo 1521 do CC/02, dispõe o mesmo dispositivo que não será impedimento a união de pessoas casadas, mas que estejam separadas de fato [28].

Fica evidente, portanto, que o legislador permite legalmente que a união estável se configure mesmo quando o companheiro seja separado apenas de fato de seu cônjuge.

De tal modo, uma vez reconhecida à união estável, o convivente participará da sucessão do outro, conforme prescreve o artigo 1790 do mesmo diploma legal:

Artigo 1790 - A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Ao contrário do que ocorre em relação aos cônjuges em que se faz uma discriminação dos direitos sucessórios a estes conferidos de acordo com o regime de bens adotado no casamento, no que concerne aos mesmos direitos conferidos aos companheiros, o art. 1790 não faz tal discriminação. Deste modo, conforme estabelece o caput do referido artigo, não há direito sucessório do companheiro se durante a união não houve acréscimo patrimonial a título oneroso, mesmo no caso do de cujus ter deixado bens particulares.

Conforme dispõe o art. 1725 do CC/02, "na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".

Como se pode observar, apesar de tal dispositivo permitir que as pessoas unidas pelo vínculo do companheirismo acordem outro regime de bens que não o da comunhão parcial, a regra sucessória prevista no caput do art. 1790 permanece a mesma.

Normalmente, o regime observado no âmbito de uma união estável é o da comunhão parcial, visto que tal relação constitui-se como um vínculo de fato, caracterizado pela relação de afeto e reciprocidade entre os conviventes. Assim, geralmente, as partes acabam não se preocupando em formalizar um regime de bens, em virtude do relacionamento existente entre eles já ser reconhecido como entidade familiar independente de qualquer formalidade.

Assim sendo, via de regra, a aplicação do disposto no art. 1790 acaba ensejando em uma situação mais benéfica ao companheiro do que aquela prevista para o cônjuge sob o mesmo regime quando da existência de bens adquiridos onerosamente na vigência da relação, visto que o primeiro participaria não só da meação, como da sucessão destes bens, enquanto o segundo não participaria da sucessão em relação a tal patrimônio.

4.2 Artigo 1790 do CC/02 – Uma breve análise

Este artigo é alvo de muitas críticas por parte da doutrina. Como já visto, tal dispositivo prescreve que a sucessão do companheiro se limita aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável. Desta forma, diferentemente do cônjuge, o companheiro participa da sucessão dos bens adquiridos onerosamente pelo casal, dos quais aquele já é meeiro, não participando da sucessão em relação aos bens exclusivos do de cujus.

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Se por um lado os companheiros se encontram em posição privilegiada em relação às pessoas casadas, visto que aqueles, além da meação, possuem direitos sucessórios em relação aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união, por outro lado, os companheiros ficam em arranjo prejudicado em relação às pessoas casadas quando não houver aquisição a título oneroso durante a união, já que, neste caso, o companheiro sobrevivente não herdará nada, mesmo que o falecido tenha deixado patrimônio particular.

Há autores que consideram o caput do art. 1790 inconstitucional, pois confere trato discriminatório às pessoas unidas pelo companheirismo o que não coadunaria com os novos preceitos constitucionais no reconhecimento das entidades familiares. Assim, é inegável que tal dispositivo, ao desrespeitar os ditames constitucionais, acaba dando margens a muitas injustiças.

4.3 Em busca da solução mais justa

Sendo assim, conforme já exposto, conclui-se que é faticamente possível que pessoa separada de fato há menos de dois anos constitua uma relação afetiva com outro e que tal relacionamento venha a ser reconhecido como união estável, aplicando-se assim todas as regras atinentes a tal forma de constituição familiar, inclusive no tocante ao trato dos direitos sucessórios, possibilitando assim, uma possível concorrência entre cônjuge e companheiro na sucessão do montante hereditário.

O que se busca com este trabalho é, em primeiro lugar, trazer as possíveis soluções que poderiam ser aplicadas pelo magistrado quando, diante da ocorrência fática da situação aqui discutida, encontrar aquela que mais se coaduna com os preceitos defendidos na ordem jurídica brasileira, sobretudos os valores consagrados na Constituição de 1988.

Pode-se dizer que, diante do caso concreto, o aplicador do Direito poderia tomar basicamente três posicionamentos distintos: atribuir direitos sucessórios somente à esposa; atribuição da herança somente à companheira; concorrência entre cônjuge e companheira.

4.3.1 Atribuição da herança somente à esposa

Tal posicionamento parece ser o menos coerente a ser aplicado ao caso concreto tendo em vista os fundamentos que são apresentados para a sua defesa.

Defende-se, inicialmente, o direito de o cônjuge supérstite participar da sucessão sob o argumento de que a separação de fato não extingue a sociedade conjugal, não devendo ser causa de extinção de direitos conjugais, incluindo-se aqui, os direitos sucessórios.

Neste diapasão, são as lições de Pereira (2004, p. 72):

Não basta a separação de fato nem a medida judicial preparatória da separação de corpos para excluir o cônjuge da sucessão, sendo necessária a separação judicial regulamente homologada, se por mútuo consentimento; ou passada em julgado a sentença, se litigiosa.

Entretanto, a grande dificuldade de se defender tal posicionamento reside na justificativa do cônjuge herdar exclusivamente o montante hereditário. Para que lhe seja conferido tal privilégio, fundamenta-se em um critério já revogado por nossa legislação, qual seja, a necessidade de que o casal que esteja ligado pelo vínculo do companheirismo viva há pelo menos cinco anos conjuntamente para que seja caracterizada a união estável entre ambos.

Conforme preceitua o art. 1830, a esposa só teria seus direitos sucessórios reconhecidos se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados de fato há mais de dois anos e, adotando-se o supracitado critério temporal revogado, mesmo que após a separação de fato o de cujus tivesse constituído novo relacionamento, tal só seria reconhecido como união estável depois de transcorrido o prazo de cinco anos.

Portanto, adotando-se tal critério temporal para o reconhecimento das uniões estáveis, a princípio não seria possível que cônjuge e companheiro viessem a gozar concorrentemente de um mesmo montante hereditário, fazendo com que o primeiro se tornasse herdeiro exclusivo dentro deste prazo de dois anos.

Entretanto, tal posicionamento se demonstra altamente fragilizado, visto que as uniões estáveis são atualmente reconhecidas e protegidas como entidades familiares independentemente da aferição de qualquer prazo de convivência, por isso, não é possível se admitir que tal solução seja aplicada em nossa ordem jurídica.

4.3.2 Concorrência entre cônjuges e companheiros na sucessão da herança

Segundo os adeptos de tal posicionamento, no caso sob análise deveria haver a divisão do montante hereditário entre a esposa e a companheira, devendo-se aplicar as regras que conferem direitos sucessórios aos companheiros simultaneamente com o disposto no artigo 1830 do Código Civil.

Em primeiro lugar, fundamenta-se tal entendimento na impossibilidade de impedir a participação sucessória do cônjuge à herança, visto que, apesar de rompido os laços de afetividade, o cônjuge supérstite esteve em algum momento unido ao falecido por tal ligação e, neste ínterim, contribuiu para o aumento patrimonial, não podendo, assim, ficar totalmente desamparado em virtude do falecido ter estabelecido uma relação.

Por outro lado, o companheiro também não pode ser excluído da sucessão em virtude da existência de uma relação apoiada no afeto, de caráter público, duradouro e contínuo, devidamente protegida pela Carta Constitucional que lhe assegura direitos sucessórios.

Assim, uma vez estabelecido que tanto o cônjuge, quanto o companheiro deveriam concorrer na sucessão do autor da herança, os adeptos de tal posicionamento expõem duas formas em que se poderia operar tal divisão do montante hereditário.

Existe o entendimento que, conjugando-se as disposições dos artigos 1830 e 1790, por uma interpretação analógica do inciso III deste último artigo [29], chegar-se-ia a conclusão que a herança deveria ser dividida da seguinte maneira: 2/3 para a esposa e 1/3 para a companheira (ALMEIDA, 2004).

Entretanto, tal posicionamento é criticável, já que cônjuge não é parente, não havendo assim, motivo para igualar a concorrência que ocorre entre aquele e o companheiro, à aquelas existentes entre este último e eventuais parentes sucessíveis.

Para outra parcela dos doutrinadores, entende-se que a herança deveria ser dividida em duas partes iguais, pois se a lei não atribuiu quinhão especifico para cada uma delas, nada mais justo que a divisão pela metade.

4.3.3 Atribuição da herança somente à companheira

Por fim, malgrado seja o anterior posicionamento o que mais encontra guarida nos manuais pátrios, propõe-se agora o que parece ser a corrente mais coerente observados os ditames que regem a ordem jurídica pátria.

Tal solução tem como pilar principal de sua fundamentação a nova ótica valorativa das entidades familiares afirmada, que traz como base, principalmente, o reconhecimento pela Constituição Federal de 1988 da união estável como uma forma de constituição familiar.

A partir deste momento, a família deixa de ser amparada como instituição valorada em si mesma, passando a ser vista de maneira instrumental, na medida em que constitui instrumento de realização existencial e afetiva das pessoas. Deixa de ter como viés principal fins preponderantemente econômicos e religiosos e o afeto passa a ser a razão fundamental para a sua constituição.

Assim, a separação de fato demonstra que cessou o pressuposto fundamental da relação entre o casal, qual seja, a existência da relação afetiva entre eles.

Logo,

contemporaneamente, o simples vínculo formal registral não tem, por si só, a força de gerar efeitos jurídicos, desprezando-se, por completo, a realidade fática do rompimento. Parece de todo evidente que a separação de fato consiste em situação jurídica, hodiernamente, valorada, de tal sorte que sua verificação fática deve surtir efeitos na esfera do Direito de Sucessão (SILVA, 2003, p. 1).

Desta maneira, segundo tal entendimento, não faria sentido atribuir direito à sucessão a quem não mantinha o vínculo matrimonial a época do falecimento do autor da herança, devendo-se, assim, prestigiar o companheiro viúvo, em detrimento do cônjuge.

Assim sendo, com base no posicionamento ora exposto, uma vez reconhecida a união estável do de cujus, mesmo estando este formalmente casado, mas separado de fato, o cônjuge sobrevivente ficaria excluído da herança, independentemente da análise do lapso temporal e da concorrência ou não de culpa.

Negar os direitos decorrentes do reconhecimento pela Carta Constitucional da união estável como uma espécie de entidade familiar, dentre estes os próprios direitos sucessórios, seria uma afronta a paridade dos tipos de entidade familiares buscada por nosso Poder Constituinte.

A intenção do legislador ao determinar a distribuição obrigatória de parte da herança tem como fundamento principal atribuir ao menos parcela do montante hereditário àqueles membros mais próximos da comunidade familiar em detrimento dos mais remotos. A herança decorre da relação de affecto entre os conviventes, protegida pela Constituição, tendo como objetivo a proteção da família.

Daí conclui-se que, não estando os cônjuges ou companheiros ligados por laços de consanguinidade com o autor da herança, o que lhes garantiria estarem incluídos na ordem de vocação hereditária é a ligação afetiva que tais têm com o de cujus.

Incluir o cônjuge na sucessão seria ir de encontro à supracitada intenção do legislador em contemplar os membros mais próximos da comunidade familiar, visto que, uma vez interrompida a convivência marital, este passa a ser integrante formal do matrimônio falido, apenas subsistente no registro civil, pressupondo-se cessados os laços de afeto e companheirismo essenciais para a inclusão do cônjuge entre os herdeiros.

Sob a nova ótica valorativa das entidades familiares com o reconhecimento das uniões estáveis como uma espécie de família, não há mais como se falar que a integração do cônjuge à ordem de vocação hereditária tem como fundamento o vínculo formal do casamento, mas aquela decorre agora da relação mantida por laços de afetividade que aquele mantém com o autor da herança e, uma vez essa extinta, não há porque mais em se falar na atribuição de direitos sucessórios aos cônjuges.

Sendo assim, com a consagração do afeto em prejuízo da exclusividade das relações formalizadas, na hora de se deferir a atribuição dos direitos sucessórios, o fundamento da vocação hereditária será o mesmo, seja na união estável não matrimonializada, seja no casamento.

Qualquer posicionamento contrário a possibilidade do companheiro participar da sucessão vai de encontro aos ditames consagrados na nossa ordem constitucional, violando-se, sobretudo, os princípios da igualdade, na medida em que se estaria estabelecendo privilégios a alguns indivíduos em prejuízo de outros de forma injustificada; e da dignidade da pessoa humana, na medida em que não se estaria priorizando a tutela funcionalizada da família, tida como instrumento de promoção de seus integrantes.

Tepedino (2001b, p. 404) sintetiza esta ideia dizendo:

Tais entidades demonstram a mudança da ótica valorativa constitucional e impedem que se pretenda dar tratamento desigual a qualquer das entidades ali previstas. Vale dizer: toda e qualquer norma que se dirija à tutela das relações familiares deve ter como suporte fático (fattispecie) os tipos de comunidades familiares identificados pela Constituição, no âmbito dos quais a família fundada no casamento é apenas um deles. A comunidade, por sua vez, não é protegida como instituição valorada em si mesma, senão como instrumento de realização da pessoa humana.

Entretanto, é válido ressaltar que, para que se adote tal solução, necessário seria entender como inaplicável a regra trazida no caput do art. 1790 do CC/02, visto que, como já debatido no presente estudo, este limita os direitos sucessórios dos companheiros aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável.

Assim sendo, o companheiro herdaria também todo o patrimônio particular do falecido, inclusive o que eventualmente seja proveniente de uma meação de um bem comum incorporado ao patrimônio dos cônjuges quando ainda se estava estabelecido o vínculo matrimonial [30].

Ou seja, o cônjuge teria seu direito a meação respeitado quando tal houvesse, entretanto, em relação a outra metade do patrimônio do ex-casal, tal parcela seria privativa do de cujus, sendo então destinada a seus sucessores quando de sua morte, incluindo-se aqui, aquele que era seu companheiro a época de sua morte.

Assim, partindo-se da contemporânea vertente do Direito de Família, sobretudo no que tange a pluralidade da entidade familiar insculpida na CF/88, não haveria um elemento diferenciador que justifique tal limitação dos direitos sucessórios dos companheiros à somente aqueles advindos dos justos esforço durante a união, visto que, tanto o casamento, quanto a união estável são vistos atualmente como meios de promoção dos indivíduos, sendo esta a função precípua da família e o motivo da proteção estatal que lhe é conferida.

Ou seja, se a própria Carta Constitucional abandona a valorização do vínculo meramente formal, para dar lugar ao aspecto funcional da família, não há o que discutir sobre a existência, ou não, de hierarquia entre casamento e união estável.

É, portanto, da Constituição Federal que se extrai o sustentáculo para a defesa dos direitos sucessórios do companheiro quando da análise do artigo 1830 do CC/02, perquirindo assim, sua releitura frente à Lei Maior de nossa ordem jurídica.

Nesse sentido assevera Tepedino (2004, p. 224-227):

No âmbito da velocíssima evolução, qual o papel interpretativo da Constituição? A Constituição Federal não pode ser considerada como mero limite ao legislador ordinário. E nem mesmo como mero limite ao intérprete. (...) A Constituição é toda ela norma jurídica, seja qual for a classificação que se pretenda adotar, hierarquicamente superior a todas as demais leis da República, e, portanto, deve condicionar, permear, vincular diretamente todas as relações jurídicas, públicas e privadas. (...) Não se pode pretender adaptar a Constituição ao Código Civil, sendo indispensável proceder no sentido inverso, de modo a reler e forjar todo o tecido infraconstitucional, sob o manto inovador vinculante do texto maior.

Portanto, a promoção da dignidade humana, da igualdade substancial e da afetividade como base do núcleo familiar, tornaram-se fundamentos do Estado Brasileiro, fazendo com que todas as relações de Direito Civil, que antes se circunscreviam à esfera privada, passassem a ser revistas e funcionalizadas de acordo com os valores definidos pela Constituição.

É com base nesses valores que não se pode aceitar a dissonância de tratamento entre as espécies de entidades familiares, visto que, conforme já exaustivamente exposto, a Lei Maior de nosso ordenamento já reconheceu e garantiu proteção a todas elas independentemente de tais se originarem ou não de relações matrimonializadas.

Entretanto, na tentativa de corrigir os vícios legislativos cometidos quando da elaboração do novo - mas já ultrapassado - Código Civil de 2002, surgem propostas de promover alterações em tal diploma.

Dentre tais, pode-se destacar primeiramente o Projeto de Lei 4944/2005 proposto pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), com relatoria do deputado federal Guilherme Menezes (PT-BA). Tal proposição tenta compensar a distorção no tratamento entre casamento e união estável estabelecendo a igualdade de direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros, corroborando o entendimento já aqui exposto de que a disparidade de tratamento, trazida pelo Código Civil, contraria a própria Constituição Federal, que desconhece qualquer hierarquia entre casamento e união estável.

Dentre as alterações aludidas por tal projeto, destaca-se a nova redação sugerida ao art. 1830: "Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato".

Portanto, ao atribuir o direito sucessório do sobrevivente apenas quando ainda estiver convivendo com o autor da herança ao ensejo do óbito, tal redação vai perfeitamente ao encontro do posicionamento defendido neste trabalho, adequando-se o Novo Código à atual realidade constitucional.

Além de tal proposição, não se pode deixar de se mencionar o chamado "Estatuto das Famílias". Trata-se de um projeto elaborado também pelo IBDFAM e que tem como objetivo sanar os defeitos e omissões do atual Código Civil sobre o Direito de Família, promovendo toda uma reestruturação da matéria de modo a formar um estatuto autônomo, com novas regras materiais e processuais.

Dentre as inúmeras mudanças propostas por tal Estatuto, destaca-se a busca de supressão das assimetrias que o Código Civil ostenta quando do tratamento conferido aos companheiros em comparação àquele conferido aos cônjuges.

Porém, tais alterações ainda não ocorreram. Assim, deve-se entender que, independentemente de se considerar o Código Civil brasileiro avançado ou ultrapassado, é este que regerá as relações civis enquanto não sobrevierem normas mais coerentes com a nova perspectiva constitucional.

Deste modo, não pode o aplicador do Direito permanecer insensível frente a tais mudanças na ótica valorativa no que tange a proteção de todas as entidades familiares de forma igualitária, devendo-se assim, buscar sempre aplicar o Direito com base na tábua de valores que norteiam o nosso ordenamento.

"Trata-se de constatação indiscutível, que impõe ao intérprete uma mudança de atitude, sob pena de sucumbir à realidade social, perplexo e inerte à espera de uma mítica intervenção legislativa" (TEPEDINO, 2004, p. 226).

Portanto, urge a imediata interpretação das normas aplicáveis aos Direitos Sucessórios do companheiro à luz dos ditames constitucionais que regem a ordem jurídica brasileira, destacando-se, sobretudo, os princípios da afetividade e pluralidade das entidades familiares, de modo que até mesmo as próprias disposições legais que confrontem tais princípios norteadores devem ser afastadas.

Sobre o autor
João Gabriel Villela Machado

Advogado, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG, pós-graduando em Direito Processual Penal pela Universidade Gama Filho/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, João Gabriel Villela. Uma análise do controvertido art. 1830 do CC/02, sob um cotejamento civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2515, 21 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14901. Acesso em: 23 dez. 2024.

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