1.A distinção entre princípios e regras
As normas existem para regular casos concretos, estabelecendo o "dever ser" da realidade em que procuram atuar. Por não apresentarem a mesma configuração e estrutura, pode-se classificar as normas em dois grandes grupos, que revelam significativas diferenças: os princípios e as regras.
Os princípios possuem um grau de maior generalidade e de indeterminação, enquanto que as regras são específicas e concretas, prescrevendo imperativamente uma determinada conduta. Princípios e regras também diferem quanto à determinabilidade dos casos de aplicação, visto que, enquanto os princípios possuem uma eficácia irradiante, por meio da qual orientam a interpretação e a aplicação de outras regras do sistema, as regras possuem aplicação restrita, regulando situações específicas e concretas.
Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos procuram sintetizar tal diferenciação, nos termos seguintes:
"Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção. (...) Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações" [01].
Além disso, enquanto as regras são descritivas de conduta, os princípios são valorativos ou finalísticos:
"Quanto ao conteúdo, destacam-se os princípios como normas que identificam valores a serem preservados ou fins a serem alcançados. Trazem em si, normalmente, um conteúdo axiológico ou uma decisão política. Isonomia, moralidade, eficiência, são valores. Justiça social, desenvolvimento nacional, redução das desigualdades regionais, são fins públicos. Já as regras limitam-se a traçar uma conduta" [02].
Princípios e regras podem, ainda, ser diferenciados em conseqüência das particularidades de sua aplicação. Em consonância ao referido critério distintivo, a antinomia entre regras apresentará conseqüências próprias e diversas daquelas derivadas de um conflito entre os princípios.
O conflito entre regras é solucionado mediante a aplicação de critérios de hermenêutica, segundo os quais se verificará qual a regra a ser aplicada ao caso concreto, ou, em outras palavras, qual a regra válida para regular o caso em questão. Nessa verificação, a regra inválida deverá ceder lugar àquela regra apta a oferecer a solução para o caso concreto, preservando-se a coerência do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, deve-se salientar o reconhecimento de que o ordenamento jurídico não pode conter antinomias em sua estrutura, como destaca Bobbio:
"O princípio, sustentado pelo positivismo jurídico, da coerência do ordenamento jurídico, consiste em negar que nele possa haver antinomias, isto é, normas incompatíveis entre si. Tal princípio é garantido por uma norma, implícita em todo ordenamento, segundo a qual duas normas incompatíveis (ou antinômicas) não podem ser ambas válidas, mas somente uma delas pode (mas não necessariamente deve) fazer parte do referido ordenamento; ou, dito de outra forma, a compatibilidade de uma norma com seu ordenamento (isto é, com todas as outras normas) é condição necessária para a sua validade" [03].
Para a solução de antinomias entre as regras jurídicas, a doutrina formulou três critérios, já bastante sedimentados: cronológico, hierárquico e da especialidade [04]. Considerando-se duas normas incompatíveis, segundo o critério cronológico, a norma posterior prevalece sobre a norma precedente (lex posterior derogat priori); pelo critério hierárquico, a norma de grau superior (isto é, aquela estabelecida por uma fonte de grau superior) prevalece sobre aquela de grau inferior (lex superior derogat inferiori); de acordo com o critério de especialidade, a norma especial deverá prevalecer sobre a geral (lex specialis derogat generali).
Em síntese, as regras são aplicáveis conforme uma lógica de "tudo ou nada". Ou a regra se aplica ao caso concreto, e então a regra é válida; ou a regra não se aplica ao caso e, portanto, é inválida. Como sintetiza Heck ao analisar o pensamento de Dworkin:
"A tese de separação de Dworkin se constitui de duas partes. A primeira parte indica que as regras são aplicáveis de uma forma tudo-ou-nada (all-or-nothing fashion). Princípios, ao contrário, não. Quando o tipo de uma regra está cumprido, existem somente duas possibilidades. Ou a regra é válida – e então as conseqüências jurídicas devem ser aceitas -, ou ela é não-válida – e então ela nada contribui para a decisão. Que uma regra possa ter exceções (exceptions) não prejudica seu caráter de tudo-ou-nada. As exceções são parte da regra, cuja formulação completa deve contê-las. Por mais numerosas que sejam as exceções, pelo menos teoricamente é sempre possível mencioná-las completamente. Princípios, ao contrário, não devem, também quando eles, segundo sua formulação, são aplicáveis ao caso, determinar forçosamente a decisão, mas somente conter fundamentos, que falam a favor de uma ou de outra decisão, que a sugerem" [05].
Tais critérios de seleção da regra aplicável ao caso concreto não se aplicam aos princípios. Os princípios são definidos, segundo a moderna doutrina, como mandamentos de otimização e, portanto, em face de conflitos entre princípios diferentes, procura-se balancear a sua aplicação, de modo a ensejar o maior grau de alcance dos princípios colidentes, sem que qualquer deles se torne inválido. O critério principal para a resolução dos conflitos entre princípios diversos será a ponderação, como destaca Barroso:
"Em uma ordem democrática os princípios frequentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível" [06].
Heck procura sintetizar o pensamento de Alexy - jurista que fincou novas balizas acerca do entendimento dos princípios - nos termos seguintes:
"Assim – segundo Alexy -, o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida tão alta quanto possível relativamente às possibilidades jurídicas e fáticas. Princípios são, portanto, mandamentos de otimização, que são caracterizados por meio disto, que podem ser cumpridos em graus diferentes e de que a medida ordenada depende, em seu cumprimento, não só das possibilidades fáticas, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras em sentido contrário" [07].
Além disso, os princípios possuem uma dimensão que as regras não possuem: a dimensão de peso (dimension of weight). Segundo a lógica da dimensão de peso, no caso de colisão de dois princípios jurídicos, o princípio de peso relativamente maior decide sem que o princípio de peso relativamente menor se torne inválido. Ao contrário, no caso de conflito entre regras, quando, por exemplo uma ordena algo e outra proíbe esse mesmo algo, uma das duas regras será inválida [08]. Canotilho sintetiza a diferença qualitativa entre regras e princípios da seguinte forma:
"(1) Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: application in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky): a convivência das regras é antinômica. Os princípios coexistem; as regras antinômicas excluem-se.
(2) Consequentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ‘lógica de tudo ou nada’), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos (...)" [09].
Em síntese, da diferenciação entre regras e princípios decorrem importantes consequências para a análise de colisões que, eventualmente, possam existir no ordenamento jurídico brasileiro. Tais balizamentos se estendem, por decorrência, aos conflitos no âmbito dos princípios que orientam as finanças públicas brasileiras e, em particular, ao sistema de planejamento e orçamento.
2.Conflitos entre Princípios Orçamentários: breve exame dos princípios da anualidade e da plurianualidade
A Constituição Federal de 1988 traz, em seu bojo, diversos princípios orçamentários. A doutrina também tem apontado para a existência de vários deles [10], discutindo a extensão e conteúdo de cada um. Nesse momento, interessa-nos o exame de dois deles: princípio da anualidade e princípio da plurianualidade dos investimentos.
O primeiro aparece consagrado no art. 165, § 5º ("a lei orçamentária anual compreenderá"); por sua vez, o seguinte encontra-se previsto no art. 167, §1º ("nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade"). Em face da existência de dois princípios constitucionais orçamentários, de sentido oposto, há que se proceder à sua compatibilização, para que se possa extrair a real intenção do Constituinte de 1988.
A própria doutrina brasileira já se pronunciou quanto à existência desses dois princípios, como se observa da leitura de José Afonso da Silva:
"O sistema brasileiro, que integra orçamento e planejamento, concilia ambas as exigências, ou seja, o princípio da anualidade e o princípio da plurianualidade cíclica" [11].
"(...) o sistema brasileiro compatibiliza o princípio da anualidade orçamentária com a necessidade da programação plurianual dos investimentos públicos, pois nenhum investimento, cuja execução ultrapasse um exercício financeiro, poderá ser iniciado sem prévia inclusão no orçamento plurianual de investimento ou sem lei que o autorize e fixe o montante das dotações que anualmente constarão do orçamento, durante o prazo de sua execução (CF, art. 62, § 3º)" [12].
Portanto, o princípio da anualidade orçamentária - justamente por se tratar de princípio - precisa ser lido de forma conjunta com o princípio da plurianualidade dos investimentos, derivado do art. 167, § 1º, da CF/88, sob pena da invalidação deste último.
Em contraposição a tal entendimento, o princípio da anualidade orçamentária tem sido tratado, erroneamente, como regra. Assim, procura-se vedar toda tentativa de se instituir mecanismos ou regras que permitam a concretização de outros princípios, sob o argumento de sua pretensa violação. Atribuindo-se-lhe caráter de regra, ocorre verdadeiro desvirtuamento de seu escopo e extensão.
A anualidade orçamentária, por se tratar de princípio, deve orientar a leitura das demais regras integrantes do sistema e ser compatibilizada com outros princípios constitucionais, a exemplo dos princípios da eficiência, da continuidade, da economicidade e da plurianualidade dos investimentos [13]. Afinal, como visto, princípios são mandamentos de otimização, enunciados genéricos que devem orientar a leitura de outras regras e devem ser compatibilizados em face da existência de outros princípios, de sentidos opostos.
Desta forma, perfeitamente compatível com o sentido do texto constitucional a possibilidade de se instituir o tratamento plurianual dos investimentos, inclusive porque tal diretriz se coaduna e fortalece o próprio entendimento do texto da Constituição de 1988.
Ademais, a historicidade é uma das marcas características dos princípios, ensejando sua releitura em face de modificações da estrutura social sobre a qual devem atuar. Como destaca Ricardo Lobo Torres, "os princípios da Constituição Orçamentária são dotados de historicidade, o que leva à mudança de sua compreensão, até mesmo em face de novas necessidades sociais. Devem, por isso, se ajustar às tendências vitais de seu tempo" [14].
Para que se proceda à referida compatibilização, utiliza-se a ponderação de interesses, sopesando-se os princípios colidentes, diminuindo-lhes o alcance na medida da importância conferida a outros princípios de sentido contrário. Em face do caso concreto, analisa-se o princípio que deve prevalecer, de modo que ambos permanecem válidos e integrantes do ordenamento, ao contrário do que ocorre com as regras. Como destaca Lobo Torres:
"O princípio da ponderação tem subida relevância na temática do orçamento, eis que permite que se sopesem todos os outros princípios jurídicos pertinentes à lei de meios, tanto os princípios fundantes quanto os vinculados às idéias de liberdade, justiça e segurança jurídica. O princípio da ponderação conduz à escolha dos princípios que devem prevalecer diante dos interesses sociais em ebulição, tanto no momento da elaboração do orçamento e da alocação de verbas, quanto na fase de gestão discricionária e do próprio controle da execução orçamentária" [15].
Portanto, em se tratando dos investimentos, aos quais pretendeu a própria Constituição instituir tratamento diferenciado em relação a outras despesas, prevalece o princípio da plurianualidade, havendo permissão para que sejam instituídas regras que viabilizem a concretização da vontade do legislador constituinte. Mais do que respaldo, a implementação do verdadeiro sentido do texto, é exigência da própria exegese da Carta de 1988.
Reforçando-se tal linha de argumentação, deve-se frisar que existem, ainda, outros princípios a exigirem compatibilização com o princípio da anualidade do orçamento. Para citar apenas alguns, há que se mencionar o princípio da eficiência [16], o princípio da continuidade [17]e o princípio da economicidade. Todos permitem que se extraia uma leitura e um tratamento diferenciado para os investimentos plurianuais, de modo a se garantir a concretização do espírito que norteou o texto constitucional.
Ademais, a leitura do texto constitucional deve dar conta da resolução dos problemas concretos existentes na prática, de modo que "o ciclo orçamentário e o processo orçamentário devem ser capazes de resolver os problemas governamentais que surgirem. Isto significa que se deve dar ênfase à flexibilidade e à adaptabilidade, e não a um ideal que se pretenda seja imutável" [18].
Em síntese, a anualidade orçamentária não pode ser tratada como regra. Destarte, há que se proceder à sua compatibilização com os demais princípios integrantes da Carta de 1988, sob pena de invalidação de outros princípios que lhe são correlatos. Alegações genéricas de violação ao princípio da anualidade orçamentária são destituídas de significado, quando há outros princípios que informam regras que, no caso concreto, diminuem o alcance do princípio da anualidade. Ou seja, os princípios podem sofrer limitação de sua incidência, em face de outros princípios de sentido oposto, porque não existem princípios absolutos nos ordenamentos jurídicos. Com a anualidade orçamentária não poderia ser diferente.
Notas
- BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Argumentação e papel dos Princípios. In LEITE, George Salomão (org.). Dos Princípios Constitucionais – Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 109/110.
- BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de, op. cit., p. 112.
- BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1999, p. 203.
- Ibid., p. 204/205.
- HECK, Luís Afonso. Regras, Princípios Jurídicos e sua estrutura no pensamento de Robert Alexy. In LEITE, George Salomão (org.). Dos Princípios Constitucionais – Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 57/58.
- BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de, op. cit., p. 109/110.
- HECK, Luís Afonso. Regras, Princípios Jurídicos e sua estrutura no pensamento de Robert Alexy, op. cit., p. 64.
- Ibid., p. 58/59.
- CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 166.
- Segundo Ricardo Lobo Torres, "A CF/88 é muito rica na enunciação de princípios orçamentários. O art. 165 estampa inúmeros deles: planejamento, anualidade, publicidade, unidade, universalidade, clareza, equidade entre regiões e exclusividade. O art. 167 é todo dedicado aos princípios gerais do orçamento: legalidade, não-afetação de receitas, especialidade, anterioridade e equilíbrio orçamentário". Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. V. O Orçamento na Constituição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 121/122.
- SILVA, José Afonso da. Orçamento-Programa no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 134.
- Ibid., p. 139.
- "Os princípios orçamentários se equilibram também com outros princípios da Constituição, que, embora de conteúdo diverso, com eles mantêm íntima relação". Cf. TORRES, Ricardo Lobo, op. cit., p. 135.
- Ibid., p. 137.
- TORRES, Ricardo Lobo, op. cit., p. 311.
- "O princípio da eficiência se torna extraordinariamente importante para a administração moderna, que cada vez mais vai adquirindo as características de uma administração gerencial, influenciada por métodos da empresa privada. (...) Mas o princípio da eficiência desborda o campo da Administração Pública para penetrar também no do orçamento. (...) Projeta-se diretamente o princípio da eficiência para a temática da gestão orçamentária, que também se deixa influenciar por novas técnicas gerenciais. Em certo sentido, o princípio da eficiência se aproxima do da economicidade e, como esta, permite a abertura do controle orçamentário ao Judiciário e ao Tribunal de Contas". Cf. TORRES, Ricardo Lobo, op. cit., p. 306/307.
- Pelo princípio da continuidade do serviço público, "entende-se que o serviço público, sendo a forma pela qual o Estado desempenha funções essenciais ou necessárias à coletividade, não pode parar". Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 88.
- BURKHEAD, Jesse. Orçamento Público. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1971, p. 140.