2 CARACTERIZAÇÃO DOS DISSÍDIOS COLETIVOS E DO PODER NORMATIVO
2.1 DISSÍDIOS COLETIVOS: A SOLUÇÃO JURISDICIONAL DOS CONFLITOS COLETIVOS DE TRABALHO
A regra imperante nos conflitos em geral é a de que, em sendo fracassados os sistemas não-judiciais de composição dos mesmos, o Estado deve intervir no litígio, de modo a evitar que este cause efeitos danosos aos envolvidos e à sociedade como um todo.
A possibilidade de submissão dos conflitos coletivos do trabalho à análise jurisdicional decorreu da tautológica constatação de que estes, como os demais conflitos entre pessoas, devem ser solucionados pelo Estado, mais precisamente pelo Poder Judiciário, incumbido precipuamente de pacificar as controvérsias jurídicas.
No Brasil, tal ação coletiva é vulgarmente designada de dissídio coletivo, expressão que peca, indubitavelmente, por ser atécnica, uma vez que é tendente a acarretar confusão entre o fenômeno sociológico (o conflito de trabalho) e o instrumento jurisdicional que visa a solucioná-lo.
Dissídio coletivo é, nas palavras de Carlos Henrique Bezerra Leite,
[...] uma espécie de ação coletiva conferida a determinados entes coletivos, geralmente os sindicatos, para a defesa de interesses cujos titulares materiais não são pessoas individualmente consideradas, mas sim grupos ou categorias econômicas, profissionais ou diferenciadas, visando à criação ou interpretação de normas que irão incidir no âmbito dessas mesmas categorias (2006, p. 938).
Amauri Mascaro Nascimento, por sua vez, o conceitua como:
[...] um processo judicial de solução dos conflitos coletivos econômicos e jurídicos, que no Brasil ganhou máxima expressão como um importante mecanismo de criação de normas e condições de trabalho por meio dos tribunais trabalhistas, que proferem sentenças denominadas como normativas, quando as partes que não se compuseram na negociação coletiva acionam a jurisdição (2002, p. 631).
Conforme afirmado anteriormente, a separação dos conflitos coletivos de trabalho em categorias distintas serviu de base para a classificação dos dissídios coletivos. Assim é que estes também se dividem em econômicos ou de interesses, quando visam à criação de novas condições de trabalho e jurídicos ou de direito, quando pretendem a interpretação de norma jurídica pré-existente.
Há, ainda, quem faça menção aos dissídios coletivos mistos, cujo exemplo principal é o dissídio coletivo de greve que além de objetivar a declaração da abusividade ou não do movimento, vise ao julgamento das reivindicações da categoria grevista, fixando novas normas e condições de trabalho.
Urge salientar que a impropriedade técnica das expressões acima utilizadas para identificar os diferentes tipos de conflitos e, conseqüentemente, de dissídios, não passou despercebida à doutrina.
É bastante criticada a conceituação de alguns conflitos como "de direito". Isto porque, sendo todos os dissídios coletivos regulados pelo Direito, razão não há para assim se designar apenas uma espécie deles.
Também não é imune de críticas a expressão "dissídios econômicos", em virtude de sua acentuada abrangência. Novamente segundo Amauri Mascaro Nascimento, pode a mesma
[...] prestar-se a equívocos, uma vez que dá a idéia de um bem econômico, quando não é essa a sua função no problema, mas a de indicar que o conflito é de natureza constitutiva de novo conteúdo normativo para as relações coletivas de trabalho mantidas entre os sujeitos conflitantes (2002, p. 633).
Por tais razões, o eminente jurista entende como mais adequada a nomenclatura "processos coletivos declaratórios", em substituição a "dissídios coletivos de direito", porque os mesmos se limitam a interpretar norma já existente, e "processos coletivos constitutivos", em contraposição a "dissídios coletivos econômicos", uma vez que nestes se constituem novas regras e princípios.
Certo é que, a despeito das ponderações acima indicadas, as terminologias "dissídios coletivos econômicos" e "dissídios coletivos jurídicos" são, até os dias atuais, as predominantes tanto no terreno da práxis trabalhista, sendo largamente utilizadas pelos juristas atuantes nesta Justiça Especializada, quanto em sede doutrinária.
Por fim, cumpre indicar que os dissídios coletivos econômicos se subdividem em categorias, tendo em vista a existência ou não de normas e condições de trabalho anteriormente fixadas em sede de normatização coletiva. Tal classificação foi adotada pelo Tribunal Superior do Trabalho, conforme análise de seu Regimento Interno, art. 216.
Deste modo, são denominados de originários ou inaugurais os dissídios coletivos, quando inexistentes normas especiais de trabalho estabelecidas convencionalmente ou em sentença normativa anterior. Em situação contrária, ou seja, quando os dissídios objetivarem reavaliar normas previamente fixadas em norma coletiva anterior, os mesmos se designarão como dissídios de revisão. Os dissídios de extensão, por sua vez, são os que pretendem estender a toda a categoria as normas coletivas que apenas alcançavam parte dela.
2.2.PODER NORMATIVO: A COMPETÊNCIA NORMATIVA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
2.2.1.Conceituação e caracterização
Conforme explicitado, os dissídios coletivos podem ser solucionados através da fixação da interpretação adequada a determinado preceito normativo preexistente especial a uma determinada categoria ou por meio da criação normativa de condições de trabalho aplicáveis a dada coletividade.
Na primeira hipótese, verificada nos dissídios coletivos jurídicos, a sentença é meramente declaratória, uma vez que se limita a afirmar a existência ou não de determinada relação jurídica.
Nos dissídios coletivos econômicos, por sua vez, é que se vislumbra o exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho.
E o poder normativo, também denominado de competência normativa, já há um tempo considerável, é o instituto do Direito do Trabalho brasileiro que provoca maiores polêmicas, objeto das mais variadas críticas e propostas de supressão por parte dos juristas.
Por tal razão, a EC n° 45/2004, a par de alargar acentuadamente a competência da Justiça do Trabalho, também laborou no sentido de implementar modificações na figura dos dissídios coletivos econômicos, visando a atribuir nova configuração ao poder normativo, conforme se analisará com maior precisão de detalhes, posteriormente.
O poder normativo é conceituado, por Arion Sayão Romita (2005, p. 10), seu mais acirrado combatente em terrenos brasileiros, como a competência conferida à Justiça do Trabalho de criar o direito no âmbito dos dissídios coletivos econômicos.
Explicita, ainda, que neste julgamento, proferido por uma sentença normativa, a eqüidade, que normalmente atua como subsídio para a interpretação da lei, assume o caráter de fonte material do direito.
Tal provimento distingue-se da sentença clássica, que subsume os fatos ao preceito normativo preexistente, uma vez que, em virtude da inexistência de norma jurídica anterior, o julgador formula nova regra a ser aplicada às situações futuras.
É bem de se ver que, pois, que a sentença normativa constitui fonte formal do direito, de caráter geral e abstrato, já que possui efeitos erga omnes, abrangendo a totalidade da categoria envolvida no conflito, e não apenas os trabalhadores associados ao sindicato litigante.
Em virtude de suas características peculiares, é comumente atribuída pela doutrina ênfase à distinção gritante entre a sentença normativa e a sentença clássica, de modo que se afirma ser aquela, sentença, apenas formalmente, devendo ser considerada, em sentido material, ato legislativo.
É sentença formalmente porque é proferida por uma autoridade judiciária, sob os procedimentos que regulam a atuação da jurisdição. Todavia, substancialmente, produz os mesmos efeitos das normas jurídicas. Por tal razão, como bem recorda Vidal Neto, Francisco Carnelutti (CARNELUTTI, apud VIDAL NETO, 1983, p. 126) cunhou a célebre assertiva de que a sentença normativa possui "[...] alma de lei em corpo de sentença".
A doutrina alemã observa ainda semelhanças entre a sentença normativa e as convenções coletivas, como a de ambas buscarem a regulação de conflitos coletivos trabalhistas, criando novas condições de trabalho, razão pela qual denominam a primeira de "convenção coletiva forçada ou obrigada".
Por derradeiro, urge salientar que exercício de poder normativo não se confunde com o de jurisdição, com o "dizer o direito". A competência normativa atribuída aos Magistrados trabalhistas corresponde ao poder de exercer atividade de natureza legislativa. Por tal razão, de modo algum o julgamento oriundo do dissídio coletivo de natureza econômica se equipara às hipóteses em que a Justiça do Trabalho julga ações coletivas exercendo estritamente o poder jurisdicional.
2.2.2.Retrospecto histórico e tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro
O Direito Comparado vem se inclinando no sentido de admitir a composição jurisdicional dos conflitos coletivos jurídicos, mas sempre hesitou no que diz respeito aos conflitos de natureza econômica, nos quais se verifica o poder normativo.
Mauro Schiavi (2007) realiza uma breve análise sobre os sistemas adotados na Espanha e em Portugal, destacando que em ambos os modelos, mesmo que o conflito de interesses não chegue a uma solução, não há a possibilidade de intervenção judicial.
Informa-nos que: "O modelo espanhol apresenta, basicamente, as seguintes modalidades de solução de conflitos: conciliação, mediação, arbitragem facultativa e solução jurisdicional apenas para os conflitos jurídicos. Também há a possibilidade de greve".
O português, a seu turno, estabelece a obrigatoriedade de arbitragem quando o conflito não se solucionar em até dois meses de negociação.
O caráter atípico do poder normativo, que só é encontrado, além de no brasileiro, nos ordenamentos jurídicos da Austrália, Nova Zelândia, Peru e México, não passou despercebido ao ilustre jurista Ives Gandra Martins Filho (1996, p. 33-34), que alerta para a escassa previsão do mesmo nos sistemas jurídicos modernos.
Em nosso sistema jurídico a figura do poder normativo é presente desde o início do desenvolvimento do Direito Trabalhista, uma vez que sempre se optou pela solução jurisdicional de todos os conflitos coletivos de trabalho.
Em virtude de ser instituto próprio ao Direito Coletivo do Trabalho, o poder normativo da Justiça do Trabalho pátria teve, como aquele, suas raízes no regime corporativo da Itália fascista, formalizado pela Lei n° 563 e pelo Decreto de Execução n° 1.130, ambos de 1926, constituindo a "Magistratura del Lavoro".
A V Declaração da "Carta del Lavoro", conceituava a "Magistratura del Lavoro" como o "[...] órgão com o qual o Estado intervém para regular as controvérsias de trabalho, quer relativas ao cumprimento do contratos e normas existentes, quer referentes à determinação de novas condições de trabalho".
O art. 16 da lei supracitada estabelecia que a Justiça do Trabalho Italiana deveria julgar, na aplicação dos contratos existentes, de acordo com as normas legais sobre interpretação e execução dos contratos e, na formulação de novas condições de trabalho, em consonância com a eqüidade.
Arion Sayão Romita (1991, p. 350-352) pontualmente observa que o poder normativo no sistema jurídico italiano se fundamentava em virtude da quase inexistência de normas jurídicas referentes ao contrato individual do trabalho e na expressa proibição à greve.
Trata-se de concretização do modelo intervencionista de regulação das relações de trabalho. O binômio proibição da greve – poder normativo tinha os claros escopos de proporcionar a intervenção do Estado nos conflitos coletivos de trabalho, evitando a negociação direta entre as classes, e, conseqüentemente, de amortecer as reivindicações dos grupos operários.
No Brasil, no mesmo período em que as nações fascistas eram consagradas na Europa, se instalou um novo regime político ditatorial, o "Estado Novo", tendo como inspiração a doutrina corporativista.
Como bem relembram Mozart Victor Russomano e Gustavo Cabanellas (1979. p. 135-137), o foco do novo regime foi o de incrementar os direitos trabalhistas individuais e estimular a economia, concedendo auxílios aos empresários.
Nesse sentido, foram editadas diversas leis materiais trabalhistas, disciplinando de modo minucioso as condições de trabalho, foi aprimorada a atuação administrativa do Ministério do Trabalho, bem como foi instaurada, em 1939, a Justiça do Trabalho, para proporcionar maior implementação aos direitos criados.
Urge ressaltar que a Justiça do Trabalho, nesta época, constituía um setor do Ministério do Trabalho, sendo, portanto, órgão do Poder Executivo. Como neste período o Congresso Nacional havia sido destituído e todo o poder de edição de leis se concentrava nas mãos do ditador, era decorrência natural a concessão da atribuição de criar normas a um órgão executivo.
O poder normativo aliado à unicidade sindical, à sindicalização por categoria e à contribuição sindical obrigatória, que sujeitavam os sindicatos à intervenção estatal, eram os corolários do regime jurídico trabalhista brasileiro.
Todos estes institutos visavam a reprimir o entendimento direto entre as classes, a atuação reivindicatória e o poder de aglutinação dos trabalhadores, negando os conflitos trabalhistas e submetendo os sindicatos ao estrito controle estatal.
Raimundo Simão de Melo Neto (2002, p. 32) pondera que a razão de o Estado negar a existência de conflitos coletivos se justifica no fato de considerá-los nocivos aos interesses da produção, que não poderiam ser incomodados por reivindicações dos trabalhadores. Temia-se que a luta de classes pudesse afetar a sociedade e o próprio governo, razão pela qual deveria a mesma ser combatida implacavelmente.
Todavia, caso as rebeliões trabalhistas surgissem, "[...] caberia ao Estado, através da sua máquina, resolvê-las rapidamente e restabelecer a paz social".
Assim, como os sindicatos eram fracos e a greve proibida, sendo definida pela Constituição Federal de 1937 como "recurso nocivo e anti-social", o poder normativo foi instituído como único instrumento hábil a solucionar as controvérsias trabalhistas coletivas.
A bem da verdade, em virtude do momento político então vivido pelo país, bem como de suas características culturais, não era de se esperar que outro sistema de regulação das relações de trabalho fosse implementado, que não o do intervencionismo estatal.
O poder normativo foi instituído no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Lei n° 1237, de 1939, que organizou a Justiça do Trabalho, mas que ainda não a enquadrou como entidade do Poder Judiciário.
A Consolidação das Leis Trabalhistas, aprovada pelo Decreto Lei n° 5452/1943, previu, em seus arts. 868 e 869, a figura do dissídio coletivo econômico e, conseqüentemente, da competência normativa da Justiça do Trabalho, não tendo introduzido grandes novidades no tocante ao processamento do mesmo.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1946, além de ter finalmente tornado a Justiça do Trabalho órgão do Poder Judiciário e de ter consagrado o direito de greve dos trabalhadores, estabeleceu, em seu art. 123, § 2°, que incumbia à lei especificar as hipóteses nas quais os dissídios coletivos poderiam fixar normas e condições de trabalho.
Tal inovação visava, indubitavelmente, a restringir a utilização do poder normativo pela Justiça Trabalhista, dependendo tal preceito constitucional de lei ordinária que o regulamentasse.
Em que pese a consistência do argumento acima descrito, foi a tese contrária a prevalecente no Supremo Tribunal Federal, que, em diversas decisões, assentou que enquanto não sobreviesse lei definindo os casos, irrestrita seria a competência normativa da Justiça do Trabalho.
A Emenda Constitucional de 1969 repetiu a cláusula condicionante do poder normativo à especificação legal, já tendo, todavia, tal celeuma sido solucionada jurisprudencialmente.
Em 05 de outubro de 1988, foi promulgada a "Constituição Cidadã", que pretendeu implantar no Brasil um Estado Democrático de Direito, objetivo que não foi plenamente satisfeito no terreno trabalhista.
Algumas modificações, como a ênfase atribuída à negociação coletiva, o desenvolvimento da autonomia sindical e a regulamentação ao direito de greve, contribuíram bastante para o fortalecimento da estrutura sindical brasileira.
De fato, a Constituição de 1988 reconhece a importância da negociação coletiva como meio de composição dos conflitos coletivos, valorizando-a, na medida em que a estabelece como condição da ação coletiva trabalhista, do dissídio coletivo econômico. O julgamento do mérito de tal ação passou a depender da comprovação da recusa de uma das partes à negociação coletiva.
Essa norma, regulamentada pela Instrução Normativa n° 4, do Tribunal Superior do Trabalho – TST, foi responsável por extinguir um grande número de dissídios coletivos econômicos.
Trata-se da consagração do modelo da autonomia coletiva da regulação das condições de trabalho, corolário do Estado Democrático de Direito, o qual pretendia a Constituição de 1988 implementar.
Não obstante o avanço alcançado, algumas antinomias autoritárias foram mantidas em nosso ordenamento jurídico, como a unicidade sindical, a contribuição sindical obrigatória, e o poder normativo, que teve seu âmbito de atuação não mais vinculado à existência de lei reguladora.
Nesse sentido, dispôs a Constituição Federal de 1988, em seu art. 114, § 2°, a faculdade dos sindicatos, em se recusando qualquer das partes à negociação ao à arbitragem, de ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.
A atual configuração do instituto do poder normativo lhe foi conferida pela Emenda Constitucional n° 45/2004, cujas inovações serão analisadas, mais detidamente, nas linhas desenvolvidas no próximo capítulo.
2.2.3.Objeções e limites de abrangência estabelecidos à competência normativa
Conforme ressaltado anteriormente, a competência normativa da Justiça do Trabalho é o instituto mais controvertido de nosso sistema jurídico trabalhista, razão pela qual foi objeto das mais variadas críticas, que influenciaram, sobremaneira, a alteração a ele imposta pela EC n° 45/2004.
Por tal razão, postergar-se-á a análise da nova configuração dada aos dissídios coletivos econômicos e, conseqüentemente, ao poder normativo, à verificação dos apontamentos críticos destilados a esta figura.
O principal deles reside na consagração do intervencionismo estatal na composição dos conflitos coletivos de trabalho. O retrospecto histórico acima realizado leva à imperativa constatação de que a Justiça do Trabalho, quando do exercício de sua competência normativa, acabava por se prestar ao domínio do autoritarismo e da invasão das liberdades privadas.
O poder normativo estava estreitamente vinculado à estrutura sindical rígida que se instalou no país. A outorga de competência normativa à Justiça do Trabalho significava a existência de uma arma a mais, de um outro instrumento destinado ao alcance dos fins objetivados pelo regime autoritário, que dependia, primordialmente, do desestímulo e da repressão à luta de classes.
É bem de se ver que o embate entre as classes era por demais temido pelos detentores do poder, que nele viam o reflexo de seu despreparo e falta de firmeza para manejar os problemas sociais.
Desejava-se que os sindicatos não fossem munidos de suas funções de luta, de questionamento, e para tanto, atribuiu-se ao Estado, a competência de atuar como substituto deles, a fim de evitar o entendimento direto entre os interessados, do qual poderia redundar a ocorrência de greves.
Obviamente que os desdobramentos desta absurda intervenção estatal nas relações coletivas de trabalho são os responsáveis pela falta de tradição reivindicatória dos sindicatos e, como desdobramento lógico, pela escassa produção normativa coletiva.
Constitui o poder normativo, sem sombra de dúvidas, um dos principais fatores impeditivos do desenvolvimento no Brasil de um sindicalismo forte, realmente comprometido com a defesa dos interesses dos trabalhadores e, conseqüentemente, da melhoria das suas condições de vida.
A toda evidência, o poder normativo inibe a negociação coletiva entre os entes envolvidos, uma vez que eles se acomodam com a intervenção judicial, não procurando, por si só, soluções para os conflitos.
Não resta qualquer indício de dúvida de que a negociação coletiva, modalidade de autocomposição exercida nos conflitos coletivos de trabalho, é a melhor técnica de solução dos mesmos, tendo sido, assim preconizada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, pelo fato de contribuir, inexoravelmente, para o amadurecimento das relações entre os interlocutores sociais.
De fato, ninguém melhor do que os próprios trabalhadores para reconhecerem suas necessidades e do que os empregadores para indicarem as possibilidades de suas empresas.
Enoque Ribeiro dos Santos (2005) enumera algumas vantagens da negociação coletiva sobre os dissídios coletivos, tais quais: a celeridade na elaboração de acordos e convenções coletivas; a maior adaptação ao caso concreto, uma vez que toma em consideração as peculiaridades de cada empresa, ramos de atividade, custos de produção; a propensão a uma maior estabilidade social e a um menor nível de conflituosidade, já que as novas condições foram estabelecidas pelas próprias partes interessadas; o fato de ser mais compatível às necessidades e exigências do mercado e da produção, especialmente pela circunstância de as empresas operarem em um mercado globalizado, sem fronteiras territoriais, utilizando-se de altos níveis de tecnologia e informática; sua contribuição ao fortalecimento dos sindicatos e de outras formas de organização dos trabalhadores no local de trabalho; e à atuação no desenvolvimento de um maior grau de solidariedade e integração entre trabalhadores e empregadores.
Outra objeção comumente atribuída ao poder normativo é a de que o mesmo consistiria em ofensa ao princípio da separação dos poderes. Em que pese tal alegação, alguns juristas entendem que o dinamismo das relações econômico-trabalhistas exige que a regulamentação jurídica seja também rápida, o que é peremptoriamente incompatível com a lentidão característica do Poder Legislativo.
A bem da verdade não se trata, nem da única e nem da última situação em que o exercício de uma atribuição típica de um poder é transferida, atipicamente, a outro. Cita-se como exemplo, a possibilidade de edição de Medidas Provisórias, pelo Chefe do Poder Executivo.
Também constitui um ponto negativo do poder normativo a circunstância de os magistrados trabalhistas não conhecerem, a fundo, as reais situações de todos os setores econômicos, arbitrando, desse modo, condições de trabalho divorciadas da realidade, o que acaba por retirar da sentença normativa a sua efetividade.
Tal situação é agravada pela parca possibilidade de instrução probatória nos dissídios coletivos econômicos, o que levava os magistrados a julgarem quase que por íntima convicção.
Soma-se às críticas indicadas ao exercício do poder normativo a circunstância de que a significativa maioria dos tribunais do trabalho se negava a fundamentar as sentenças normativas, sob o argumento de que a edição de normas, tarefa por eles desempenhada quando da concretização desta competência, dispensa motivação.
Arion Sayão Romita, por meio de uma interpretação sistêmica da Constituição Federal, destaca algumas antinomias decorrentes do exercício daquele instituto, que por sua relevância, merecem ser transcritas:
1ª – entre o art. 1º, parágrafo único, e o artigo 114, § 2º: se o povo exerce poder por intermédio de seus representantes eleitos, o poder normativo, exercido pelos juízes, não poderia ser acolhido pela Constituição, pois juízes não são representantes do povo; 2ª – entre o artigo 5º, inciso LV, que reconhece o princípio do contraditório sem qualquer exceção, e o artigo 114, § 2º: no exercício do poder normativo, a Justiça do Trabalho não é obrigada a observar o referido princípio, pois exerce jurisdição de eqüidade, dispensando a manifestação de contrariedade por parte da categoria econômica suscitada no dissídio coletivo; 3ª – entre o artigo 93, inciso IX e o artigo 114, § 2º: como decisão judicial, a sentença normativa não pode deixar de ser fundamentada, sob pena de nulidade; entretanto, o poder normativo se exerce como meio de solução de controvérsia coletiva, mediante edição de normas (poder legislativo delegado), tarefa que dispensa fundamentação; 4ª – entre o artigo 9º e o artigo 114, § 2º: enquanto o primeiro dispositivo assegura o exercício do direito de greve pelos trabalhadores, o outro o inviabiliza, pois o poder normativo é utilizado para julgar a greve, inibindo o entendimento direto entre os interlocutores sociais. (2001, p. 268).
Por todas as razões expostas, a competência normativa da Justiça do Trabalho já vinha sendo mitigada pela jurisprudência, principalmente a manifestada nos julgados do TST e do STF.
Em célebre decisão, o ex-Ministro do TST Coqueijo Costa, pretendeu estabelecer os limites do poder normativo, assim dispondo:
O poder normativo atribuído à Justiça do Trabalho, limita-se, ao norte, pela Constituição Federal; ao sul, pela lei, a qual não pode contrariar; a leste, pela eqüidade e bom senso; e a oeste, pela regra consolidada no artigo setecentos e sessenta e seis, conforme a qual nos dissídios coletivos serão estipuladas condições que assegurem justo salário aos trabalhadores, mas permitam também justa retribuição às empresas interessadas.
Todavia, é a decisão proferida por Octávio Gallotti (RE n° 197.911-9, DJU 7.11.1997), então Ministro do STF, a responsável por limitar, peremptoriamente, o âmbito de atuação do poder normativo às hipóteses de vazio legal, quando não contrarie ou se sobreponha à lei vigente, desde que as condições não estejam vedadas pela Constituição e que a matéria tratada não esteja reservada à lei formal pela Constituição. Trata-se da fixação do limite máximo da competência normativa.
Assim, se houver texto legal acerca da matéria conflituosa, não poderá ser reduzida, nem ampliada a garantia da lei, salvo se esta expressamente declarar que estabelece um benefício mínimo. É o que ocorre com o adicional de horas extras, que poderá ser acrescido por meio de sentença normativa, caso não exista lei fixando outro, já que a Constituição Federal dispõe, em seu art. 7°, inciso XVI, que a remuneração do serviço extraordinário deve ser superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal.
Por outro lado, quando a lei fixa exatamente o montante do benefício, não poderá haver a extensão do mesmo em dissídio coletivo. Arion Sayão Romita (1991, p. 350) exemplifica tal hipótese com a licença à gestante, que tem sua duração estabelecida, constitucionalmente, em exatos cento e vinte dias.
Urge salientar que os limites mínimos impostos ao poder normativo serão analisados mais detidamente ao longo deste trabalho.
Estas preocupações com o exercício do poder normativo incentivaram diversos estudos, tendo sido, inclusive, objeto de análise por parte do Fórum Nacional do Trabalho, instituído em 2004, cujo objetivo era o de promover o debate entre membros do governo e entidades representativas de empregados e empregadores, visando ao alcance de propostas que sustentassem as futuras reformas trabalhista e sindical.
A principal constatação advinda destas reuniões foi a de que tanto os empregados, quanto os empregadores repudiavam a competência normativa da Justiça do Trabalho, razão pela qual a EC n° 45/2004, que consubstanciou a primeira parte da reforma do Poder Judiciário, não poderia se quedar silente neste particular.
O poder normativo também não é visto com bons olhos pela OIT, que conforme já afirmado, preconiza a negociação coletiva como o meio de resolução de conflitos coletivos por excelência.
Amauri Mascaro Nascimento (2005, p.650-651) recorda passagem em que o Comitê de Liberdade Sindical da OIT, após ser questionado pela Central Única dos Trabalhadores - CUT, por ocasião da greve dos petroleiros ocorrida em 1995, sugeriu que algumas medidas fossem tomadas pelo governo brasileiro, dentre as quais: a transformação do sistema de solução de conflitos coletivos com a adoção da arbitragem quando solicitado pelas partes e a manutenção do dissídio coletivo apenas nas hipóteses de greve em atividades essenciais.