O presente artigo examina o art. 5º, caput, da Medida Provisória nº 1.963-17/2000 reeditada sob o nº 2.170-36/2001 que, em tese, autoriza a capitalização de juro composto em períodos inferiores a um ano.
Aborda-se, portanto, a inconstitucionalidade da aludida medida provisória que buscou consagrar e legalizar o enriquecimento ilícito e a usura real repudiados desde tempos imemoriais.
Quanto aos juros moratórios o Superior Tribunal de Justiça aprovou, recentemente, a súmula 379, segundo a qual: "Nos contratos bancários não regidos por legislação específica, os juros moratórios poderão ser fixados em até 1% ao mês".
Anote-se, desde logo, que o Código de Defesa do Consumidor é plenamente aplicável à espécie, ou seja, aos contratos bancários, conforme preconiza o § 2º do artigo 3º, consolidado pelo enunciado da Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça e pela decisão do Excelso Supremo Tribunal Federal na ADI n. 2.591.
Por conseguinte, não há dúvida que os contratos bancários devem ser analisados pelo jurista sob a égide do Código de Defesa do Consumidor.
Os juros sobre juros, juros exponenciais ou anatocismo são lesivos (usura real/lucro excessivo), porquanto proporcionam lucro excessivo, desequilíbrio contratual e concomitante situação desvantajosa ao consumidor.
Vale destacar que o CDC veda expressamente a lesão enorme no § 1° do art. 51 que conceitua a vantagem exagerada (correlata à lesão enorme) sempre que esta ofenda os princípios fundamentais do sistema jurídico de defesa das relações de consumo.
Incumbe, portanto, ao juiz, mediante o seu prudente arbítrio, aquilatar o grau de excesso que se encontra em qualquer negócio, notadamente nos contratos bancários, e decidir se importa ou não em usura, seja ela pecuniária ou propriamente dita (tarifação dos juros), ou real/lesão enorme (lucro excessivo).
Alerta-se, a esse respeito, que conforme prevê a súmula 382 do Superior Tribunal de Justiça, a estipulação de juros remuneratórios acima de 12% ao ano, por si só, não caracteriza abuso.
A lesão enorme, frise-se, não tem relação com um limite de taxa de juros, embora sua aplicação influa sobre a taxa.
Porém e, não obstante a discussão que possa pairar sobre a aplicabilidade do diploma, para o afastamento da capitalização de juro pelo regime composto, sequer há a necessidade de se invocar os preceitos inseridos no Código do Consumidor, principalmente diante dos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva (arts. 421 e 422, CC) e da justiça contratual, além da vedação legal do enriquecimento sem causa (art. 844, CC).
A capitalização de juro remuneratório composto perpetua indevidamente a dívida por prazo indeterminado ou, ainda, determinado pela vontade de apenas um dos contratantes (a instituição financeira), assemelhando-se à punição impingida a Prometeu por Zeus, na mitologia grega,além de proporcionar impactos econômicos e sociais indesejáveis.
A respeito do tema, traz-se à colação, para exemplificar, o seguinte julgado:
A capitalização de juros, sob pena de incidir na prática vedada do anatocismo, somente faz-se juridicamente admissível na existência de previsão legal expressa, tal como sucede em relação às cédulas de crédito comercial, industrial e rural. Tal não ocorre, no entanto, com referência aos contratos bancários de abertura de crédito, pelo que válida não é, quanto a elas, qualquer previsão contratual autorizatória da imposição de juros capitalizados [01].
Em resumo, numa análise sistemática ao ordenamento jurídico pátrio, constata-se que a capitalização semestral, mensal ou diária de juro composto nos contratos bancários, excetuando-se aqueles regidos por legislação específica, como bem apontado pelo Desembargador Trindade dos Santos na ementa acima colacionada, é manifestamente inadmissível.
Anote-se, por oportuno, que a emenda constitucional nº 32/2001, em evidente contranitência à natureza efêmera da espécie normativa, atribuiu à medida provisória, ora questionada, vigência perene e indefinida, pois a regra de direito intertemporal prevista em seu art. 2º prescreveu que: "As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional". [02]
Assim sendo, como não houve nenhuma medida provisória posteriormente editada que a tenha revogado ou deliberação definitiva do Congresso Nacional, a medida provisória nº 2.170-36/2001 mantém-se, a princípio, em vigor.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento sobre a matéria no sentido de que é admitida a capitalização de juro composto nos contratos bancários celebrados depois da edição da medida provisória em apreço, embora haja precedentes em sentido oposto, mas que com o tempo se tornaram isolados e foram abandonados [03].
Dessa forma, abriu-se espaço para a campanha de defesa das instituições financeiras deflagrada pelo Superior Tribunal.
A súmula 121 do Supremo Tribunal Federal, editada na década de 60, que reza que: "É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada", embora incidente à espécie deixou de se aplicada.
Entretanto, ainda há esperança para os consumidores no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, considerando-se que, por força do art. 543-C do Código de Processo Civil, a questão foi reconhecida como repetitiva nos recursos especiais 973.827/RS e 100.3530/RS, da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, nos termos das decisões datadas de 05 de maio de 2009 e publicadas no diário de justiça em 06 de outubro de 2009 e, até o encerramento deste artigo, pende de julgamento.
Quem sabe o acórdão a ser proferido sobre a questão repetitiva mantenha coerência com a Constituição Federal e inaugure um futuro auspicioso aos consumidores.
Demais disso, melhor sorte não assiste à medida provisória, pois a capitalização de juro composto é impraticável, por representar ofensa direta à Constituição Federal ou, ainda, por inexistir expressa autorização legal.
Dispõe a medida provisória que:
...Art. 5° Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeira Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.
Parágrafo único. Sempre que necessário ou quando solicitado pelo devedor, a apuração do valor exato da obrigação, ou de seu saldo devedor, será feita por planilha de cálculo que evidencie de modo claro, preciso e de fácil entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e despesas contratuais, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela correspondente a multas e demais penalidades contratuais [04].
Observe-se, inicialmente, a terminologia empregada pelo texto do dispositivo legal.
Ensina Luiz Antonio Scavone Júnior que:
Os juros quanto à capitalização podem ser simples (lineares) ou compostos (juros sobre juros ou juros exponenciais)... Capitalização de juros não é sinônimo de juros sobre juros (juros compostos)... capitalização de juros é gênero do qual são espécies: capitalização simples (ou linear) e capitalização composta (exponencial ou juros sobre juros) [05].
O artigo 5º, caput, é impreciso e genérico quanto à modalidade de capitalização de juro, se simples ou composta.
A rigor, da leitura do artigo não é possível concluir pela admissibilidade da capitalização de juro composto em periodicidade inferior a um ano, devendo ser respeitado o parâmetro estabelecido pelo art. 591 do Código Civil.
Com efeito, não há como subsistir o indigitado art. 5º, caput, à míngua de constitucionalidade.
Como bem observou o advogado Renato Morgando Vieira, na ADI 2316, em curso pelo Supremo Tribunal Federal, a matéria tratada na medida provisória:"somente poderia ser objeto de Lei Complementar, além de carecer dos pressupostos de relevância e urgência". [06]
É inafastável, na hipótese, o preceito contidono artigo 62, § 1º, III, da Constituição Federal, que veda a edição de medidas provisórias sobre matéria reservada à lei complementar.
E mais, é também apodítico que a questão que envolve a regulamentação de juro não se caracteriza como urgente ou relevante, o que se evidencia pelo longo tempo em que é discutida na doutrina e na jurisprudência.
Na ação direta de inconstitucionalidade com pedido de liminar do artigo 5°, caput e parágrafo único da citada medida provisória, aduz o Partido Liberal, em sua petição inicial, que: "O Poder Executivo vem reeditando a Medida Provisória n° 1963-22, de 25.08.2000 que ‘Dispõe sobre a administração dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, consolida e atualiza a legislação pertinente ao assunto e dá outras providências’, desde a de número 1963-17, de 30 de março de 2000, sem alterar em nada o seu conteúdo...".
E, prossegue salientado que: "O preâmbulo delimitou o assunto que a Medida Provisória n° 1963 deveria tratar. Interessante observar que até a reedição de n° 16 (MP 1963-16), de fato, a Medida Provisória procurou tratar do assunto delineado em seu preâmbulo. No entanto, a partir da reedição de n° 17, estranhamente, foi incluído o artigo 5°, caput, e parágrafo único..." [07].
Houve, ainda, desnaturação do objeto da medida provisória que foi editada para disciplinar sobre o tema atinente à administração dos recursos de caixa do Tesouro Nacional e não sobre regras de juro.
A nítida manobra legislativa, quiçá motivada por forte lobby bancário, configura ofensa aos artigos 5º e 7º e incisos da Lei Complementar nº 95/98 que determinam que a ementa explicitará o objeto da lei e que, excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto.
Ademais, à luz do artigo 192, caput da Carta Magna: "o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar que disporá sobre..." [08].
O juro, portanto, deve ser regulado por lei complementar, pois se insere dentre as matérias relacionadas ao sistema financeiro nacional.
A inconstitucionalidade do diploma é manifesta, tanto que o Ministro Sydney Sanches, na qualidade de relator, proferiu voto favorável à suspensão dos efeitos dos artigos impugnados nos autos da ADI 2316, "por aparente falta do requisito de urgência, objetivamente considerada, para a edição de medida provisória e pela ocorrência do periculum in mora inverso, sobretudo com a vigência indefinida da referida MP desde o advento da EC 32/2001, com a possível demora do julgamento do mérito da ação" [09].
Todavia, enquanto estiver pendente a solução definitiva da liminar nos autos da ação direita de inconstitucionalidade, os efeitos deletérios da medida provisória devem ser combatidos mediante o controle difuso de constitucionalidade, consoante fundamento proclamado pelo Desembargador Mario Rocha Lopes Filho do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e albergado pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, ad litteris:
...a demora na apreciação de uma liminar em controle concentrado de constitucionalidade não pode causar prejuízo às partes hipossuficientes frente às instituições financeiras, quando já se mostra aquela Corte, pelo menos em parte, favorável à suspensão da vigência da norma. Reforça esse entendimento o julgamento da Reclamação nº 2576, em 23.6.04, onde o Plenário da Corte Excelsa entende não ser necessário aguardar o trânsito em julgado de acórdão de ADIN para que a decisão comece a produzir efeitos, pois no sistema processual brasileiro se permite o cumprimento de decisões judiciais em razão do poder geral de cautela sem que tenha ocorrido o trânsito em julgado ou o julgamento final da questão [10].
Com tais considerações, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 5º, caput da medida provisória nº 2.170-36, mesmo e, principalmente no controle difuso de constitucionalidade, não se podendo, em conseqüência, considerar válida a cláusula contratual que permita a capitalização de juro composto com periodicidade inferior a um ano.
Em suma, pese a evidente inconstitucionalidade, a questão, no entanto, é intensamente polêmica na jurisprudência.
De um lado, se encontra a corrente que defende a capitalização de juro composto nos contratos bancários e, de outro, a corrente que a repudia.
E, para alguns, persiste, a indagação:
Seria a medida provisória inconstitucional?
Como já explanado, afirmativa é a resposta, tanto pelo aspecto formal quanto pelo material.
Inconstitucional, por duas razões imperativas.
A regulamentação dos juros:
Em primeiro lugar, carece dos pressupostos de urgência e relevância impostos pelo constituinte originário.
E, em segundo, é matéria reservada à lei complementar, insuscetível, portanto, de ser disciplinada via medida provisória.
Na ADI 2316, em posições antagônicas, se apresentam o interesse particular das Instituições Financeiras, titulares de créditos, e o interesse da sociedade, notadamente dos superendividados.
Qual interesse deve prevalecer?
Apesar de ser retórica a indagação, a resposta, indubitavelmente, merecerá a atenção e detida meditação do Supremo Tribunal Federal.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Medida Provisória 2170-36, 2001.
BRASIL, Constituição Federal, 1988.
SANCHES, Sydney, voto proferido na ADI 2316, disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 de maio de 2009.
SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antonio. Juros no Direito Brasileiro, 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
STJ, Decisão Monocrática, REsp 411.456/RS, rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, publicada no DJE em 21/02/2006 apud TJRS, Decisão Monocrática, Apelação Cível nº 70010286722, rel. Desembargador Mario Rocha Lopes Filho, j. em 17/12/2004.
STJ, Terceira Turma, AgRg no REsp nº 609.379/RS, rel. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, j. em 15/04/2004.
TJSC, Apelação nº 96.007945-9, rel. Des. Trindade dos Santos, j. em 27/10/1999.
VIEIRA, Renato Morgando, Petição inicial da Ação Direta de Constitucionalidade nº 2316, disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 08 de maio de 2009.
Notas
- TJSC, Apelação nº 96.007945-9, rel. Des. Trindade dos Santos, j. em 27/10/1999.
- Brasil. Emenda constitucional 32, 2001.
- "Nos contratos bancários firmados posteriormente à entrada em vigor da MP n. 1.963-17/2000, atualmente reeditada sob o n. 2.170-36/2001, é lícita a capitalização mensal dos juros, desde que expressamente prevista no ajuste". (STJ, T4, AgRg no Ag nº 1028568/RS, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. em 27/04/2010, DJe 10/05/2010). Em sentido contrário:"Existem considerações de duas ordens a serem feitas com relação à MP 2.170-36, no que se refere à questão da capitalização. Referida medida provisória destinou-se a fixar regras sobre a administração dos recursos do Tesouro Nacional, não sendo razoável, portanto, a interpretação de que o Artigo 5º tem aplicação em qualquer operação financeira. Por outro lado, deve-se ter em conta que a Constituição Federal, no Art. 192, dispõe que o Sistema Financeiro Nacional será regulado por leis complementares, e, no § 1º, do Art. 62, veda a edição de medidas provisórias sobre matéria reservada a lei complementar (inc. III). Sendo, portanto, descabida a extensão que a agravante pretende dar ao dispositivo da referida medida provisória". (STJ, T3, AgRg no REsp nº 609.379/RS, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. em 15/04/2004).
- BRASIL, Medida Provisória 2170-36, 2001.
- SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antonio. Juros no Direito Brasileiro. 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 193.
- VIEIRA, Renato Morgando. Petição inicial da Ação Direta de Constitucionalidade nº 2316, disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 08 de maio de 2009.
- VIEIRA, Renato Morgando. idem.
- BRASIL, Constituição Federal, 1988.
- SANCHES, Sydney, voto proferido na ADI 2316, disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 de maio de 2009.
- STJ, Decisão Monocrática, REsp nº 411.456/RS, rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, publicada no DJE em 21/02/2006 apud TJRS, Decisão Monocrática, Apelação Cível nº 70010286722, rel. Desembargador Mario Rocha Lopes Filho, j. em 17/12/2004.