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A aplicação das normas do Mercosul pelo juiz nacional

Agenda 23/12/1998 às 00:00
1. Introdução

Característica marcante do mundo globalizado é o surgimento de organizações intergovernamentais, com atribuições de todas as espécies no sentido de implementar o processo de integração de mercados. Entre nós esta realidade não se altera, tendo sido constituído, desde a celebração do Tratado de Assunção, em março de 1991, o Mercado Comum do Sul (1).

A partir daí, desencadeou-se o processo de negociações multilaterais a respeito dos mais variados temas de interesse das partes integrantes. Para tanto, protocolos foram assinados, disciplinando questões específicas e estabelecendo o que se pode chamar de arcabouço normativo do Mercosul. São esses protocolos, regras abstratas de integração, que pretendem regulamentar as futuras situações concretas de interesse das comunidades envolvidas.



2. Incorporação dos Atos Internacionais

Questão importante, e que já tem apresentado alguns incidentes diplomáticos entre os Estados-membros, é a que diz respeito à aplicação destas normas no território de cada nação participante. Em outras palavras, a incorporação dessas normas ao ordenamento jurídico doméstico de cada país.

E esses problemas decorrem, principalmente, da confusão que se tem feito a respeito da natureza jurídica de tais regramentos. Esquecem-se muitos que, até o presente momento, o Mercosul não se constitui como um organismo supranacional; suas deliberações não gozam de soberania e não têm, por isso, natureza de direito comunitário (2). Os protocolos são típicas normas de direito internacional público, reclamando, por isso, um processo de recepção no ordenamento jurídico interno de cada Estado-membro (3).

Nesse horizonte, duas são as correntes que procuram situar a matéria e que têm gerado, há séculos, divergências intermináveis. A problemática dos tratados internacionais frente ao direito positivo dos países que o firmaram é antiga e rendeu ponderados argumentos de ambas os lados. De um lado, a teoria monista preconizada por Kelsen, que sustenta produzir a ratificação dos tratados efeitos concomitantes na esfera internacional e interna. De outro, a teoria dualista de Triepel, que proclama a coexistência de duas ordens independentes, uma nacional e outra internacional, que reclama um processo de recepção para ter trânsito e aplicabilidade naquela.

No Brasil, desde o julgamento do RE 71.154-PR, tem-se sustentado a prevalência da teoria dualista. Restou consignado no voto condutor do relator, Ministro Oswaldo Trigueiro, que: "Lei Uniforme sobre o Cheque, adotada pela Convenção de Genebra. Aprovada essa Convenção pelo Congresso Nacional, e regularmente promulgada, suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em que modificarem a legislação interna..." (RTJ 58/70 - sem os grifos no original). Posteriormente, no RE n. 80.004-SE (4), a questão foi novamente apreciada, sedimentando-se a jurisprudência nesse sentido.

Nos judicial cases, embora num contexto mundial superado pelo transcurso dos anos, o Supremo Tribunal Federal firmou lições que até os dias atuais se mostram modernas sobre a matéria. O Ministro Cunha Peixoto sustentou, com base em Amilcar de Castro, a impossibilidade de se confundir o tratado com uma lei ordinária. Segundo ele, "tratado não é lei; é ato internacional, que obriga o povo considerado em bloco; que obriga o governo na ordem externa e não o povo na ordem interna. (...) O tratado explana relações entre governantes (horizontais, sendo as pessoas coordenadas), enquanto que a lei e o decreto explicam relações do governo com seus súditos (verticais, entre subordinante e subordinados). Por conseguinte, as regras de direito internacional privado contidas em tratado normativo, para se converterem em direito nacional e serem, então, obedecidas pelo povo e pelos tribunais, devem ser postas em vigor por uma ordem de execução" (5).

Embora o mundo tenha se transformado, com a união das nações em blocos e mercados, poucos são os países que se desvencilharam da teoria dualista, abrindo mão de sua soberania legislativa (6). Dos quatro membros do Mercosul, até a presente data, nenhum confere caráter self-executing aos protocolos e tratados (7).

No Brasil, a executoriedade das normas do Mercosul é condicionada. Depende de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de vontades do Parlamento e do Chefe do Poder Executivo. Ao Presidente da República incumbe celebrar os atos internacionais (art. 84, VIII, da CF/88), ao passo que o Congresso tem a competência exclusiva para resolver, definitivamente, sobre os mesmos (art. 49, I, da CF/88) (8). A integração no acervo normativo, contudo, prescinde ainda da promulgação, que é o ato que confere publicidade à norma, mediante decreto do Poder Executivo (9).



3. Hierarquia Normativa dos Atos Incorporados;

Superada esta análise do procedimento de integração das normas do Mercosul ao sistema jurídico nacional, impõe-se, agora, perquerir a respeito de sua hierarquia na pirâmide kelseniana.

Entre nós, este debate se travou no Excelso Pretório, entre setembro/75 e junho/77, quando do julgamento do RE n. 80.004-SE. Discutia-se, na ocasião, a validade do Decreto-lei n. 427/69 (10) diante da Convenção de Genebra - Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias.

Na oportunidade, a maioria dos membros do STF (11) concluiu pela paridade normativa entre atos internacionais e leis internas brasileiras e, por consequência, concluiram que a regra internacional é revogada pela lei nacional que lhe seja posterior (12). Essa orientação vem sendo prestigiada na Suprema Corte até os dias atuais, tendo sido adotada no despacho proferido na ADIn n. 1480-3-DF e também na Carta Rogatória n. 8.279-4 da República da Argentina (13).

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Como esclarece o Ministro Celso Mello, "a eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas infraconstitucionais de direito interno somente ocorrerá - presente o contexto de eventual situação de antinomia com o ordenamento doméstico -, não em virtude de uma inexistente primazia hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do critério cronológico (lex posterior derrogat priori) ou, quando cabível, do critério da especialidade (RTJ 70/333 - RTJ 100/1030 0 RT 554/434)" (14).

É importante anotar, todavia, alguns casos especiais. A legislação tributária, por exemplo, recebe tratamento diverso, em virtude de previsão específica. Nesse âmbito, dispõe o art. 98 do CTN que: "Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhe sobrevenha". É flagrante a impropriedade terminológica na disposição legal. Na verdade um tratado internacional não revoga nem modifica a legislação interna, até mesmo porque se for denunciado a lei interna com ele incompatível estará restabelecida. O que o CTN pretende dizer é que os tratados e convenções internacionais prevalecem sobre a legislação interna, seja anterior ou posterior a ela (15).

Por fim, cumpre fazer menção à regra estabelecida no parágrafo 2º do art. 5º da Carta Constitucional de 1988, que estabelece: "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Para nós, essa disposição confere status de mandamento constitucional às normas internacionais que estabelecerem outros direitos fundamentais que não aqueles previstos expressamente em nossa Lei Maior. Assim, incorporados tais direitos fundamentais ao regramento doméstico brasileiro, tornar-se-ão cláusulas pétreas insuprimíveis e irrevogáveis (art. 60, §4º, da Carta da República de 1988).



4. Conclusões

Ponderados os argumentos aqui expendidos, podemos concluir que:

  1. na atual conjuntura do Mercosul, suas normas não possuem o atributo da auto-executoriedade, dependendo de um processo de internalização nas legislações domésticas de cada Estado-membro;

  2. integradas ao ordenamento jurídico nacional, as normas do Mercosul encontram-se em paridade normativa com as leis ordinárias brasileiras, ressalvados os casos específicos da legislação tributária e dos direitos fundamentais;

  3. a tendência mundial, espelhada na Comunidade Econômica Européia, é a superação das barreiras e o abandono da absoluta soberania legislativa nacional, com surgimento do direito comunitário, sustentado em normas self-executing pelos Estados-componentes, dispensado, portanto, o processo integrador das normas internacionais.

  4. O Mercosul somente se transformará no pretendido mercado comum depois de efetuadas as necessárias e imprescindíveis reformas constitucionais e alterações estruturais nos quatro países membros, o que possibilitará a a vigência de um direito comum entre as partes.



NOTAS

  1. O Mercosul é um organismo internacional composto pelo Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai que visa a integração destas nações com vistas à constituição de um mercado comum que possibilite o livre fluxo de pessoas, bens, seviços e capitais. Todavia, até o presente momento pode-se afirmar que não passa de uma união aduaneira precária, pois o que temos é apenas a liberação ou a redução da tarifação alfandegária (impostos de exportação e importação) de algumas mercadorias comercializadas entre os países componentes.
  2. As normas de direito comunitário são aqueles produzidas por órgãos supranacionais, nos quais os agentes tem representação distinta de seus Estados de origem, exercendo competência antes restritas aos Estados soberanos. Por isso, são auto-aplicáveis nos ordenamentos jurídicos internos, sem qualquer obstáculo à sua executoriedade.
  3. "A questão da executoriedade dos tratados internacionais no âmbito do direito interno - analisado esse tema na perspectiva do sistema constitucional brasileiro - supõe a prévia incorporação desses atos de direito internacional público ao plano da ordem normativa doméstica" (Ministro Celso Mello, ADIn 1480-3-DF, DJU I, 2.8.96, pp. 25.792 a 25.795);
  4. Ver a íntegra do acórdão na RTJ 83/809-848;
  5. Voto proferido no RE 80.004-SE, in RTJ 83/518;
  6. Os países da europa, integrantes da CEE, são o exemplo marcante. Mas isso se deve a natureza supranacional atribuída do mercado, do direito comunitário dele emanado e da avançada cultura que permite a sobrevivência do novel modelo sem um poder de coação sobre os Estados-membros. Pode-se dizer que o direito comunitário convive em harmonia com as ordens internas de cada nação, numa relação de dependência mútua.
    Portugal, por exemplo, admite a recepção automática das normas internacionais (Constituição, art. 8º) e, inclusive, a superioridade hierárquica das normas da CEE sobre a legislação interna (cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 1998, pp. 725/727). Aliás, o sistema português admite, excepcionalmente, a incidência de normas formalmente inconstitucionais constantes de tratados internacionais (Constituição, art. 277, n. 2)
    A Alemanha também consagra o princípio da recepção automática, nos arts. 24 e 25 da Grundgesetz. O art. 11 da Constituição italiana preceitua que a Itália "consente, em condições de reciprocidade com outros Estados, nas limitações de soberania necessárias a uma ordem, asseguradora da paz e da justiça entre as nações".
    Enfim, o direito comunitário da Comunidade Econômica Européia constitui-se de normas self-executing, isto é, de normas que tem recepção e aplicação direta nos países membros.
  7. A Argentina adota procedimento de aprovação congressual aos tratados internacionais (art. 75, inciso 22, de sua Constituição). No Uruguai, compete a Assembléia Geral (Congresso) aprovar e reprovar, por maioria absoluta, os tratados celebrados pelo Poder Executivo (art. 85, 7º c/c art. 168, n. 20, da Constituição de 1967). Aliás, a soberania legislativa uruguaia ganhou ênfase no art. 4º de sua Constituição, verbis: "La soberanía en toda su plenitud existe radicalmente en la Nación, a la que compete el derecho exclusivo de estabelecer sus leyes, del modo que más adelante se expresará";
  8. "... No direito brasileiro, dá a Constituição Federal competência privativa ao Presidente da República, para celebrar tratados e convenções internacionais ad referendum do Congresso Nacional (...). Por outro lado, tem o Congresso Nacional competência exclusiva para resolver definitivamente sobre tratados e convenções celebrados com os Estados estrangeiros pelo Presidente da República (...).
    Assim, celebrado o tratado ou convenção por representante do Poder Executivo, aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da República, com a publicação do texto, em português no órgão de imprensa oficial, tem-se como integrada a norma da convenção internacional no direito interno"
    (Revista de Jurisprudência do TJ-RS, Vol. 4/193);
  9. A falta de publicação do Decreto Legislativo n. 192/95 (Protocolo de Medidas Cautelares de Ouro Preto-MG) levou o STF, por unanimidade, a negar o exequatur a carta rogatória expedida pela Justiça da República da Argentina mediante a qual se pretendia, com fundamento no Protocolo de Medidas Cautelares adotado pelo MERCOSUL, o seqüestro de mercadorias a bordo de navio atracado em Belém-PA, bem como o arresto do próprio navio (Carta Rogatória n. 8.279 - Informativo STF n. 109);
    Conforme Francisco Rezek, "O ordenamento jurídico, nesta República, é integralmente ostensivo. Tudo quanto o compõe - resulte de produção legislativa internacional ou doméstica - presume publicidade oficial e vestibular. Um tratado regularmente concluído depende dessa publicidade para integrar o acervo normativo nacional, habilitando-se ao cumprimento por particulares e governantes, e à garantia de vigência pelo Judiciário" ("Direito dos Tratados", Forense, 1984, p. 384);
  10. Esta regra instituiu o registro obrigatório da Nota Promissória em Repartição Fazendária, sob pena de nulidade do título cambiário;
  11. Restou vencido o saudoso Ministro Xavier de Albuquerque, relator, que com o brilhantismo de costume, sustentava sua tese em dois argumentos: a) a supremacia dos tratados em relação à legislação interna, com base no art. 98 do CTN; e b) a necessidade de honrar e respeitar as convenções internacionais, o que retiraria o direito dos países signatários de estabelecerem outras restrituções aos títulos cambiais que não aquelas previstas na Lei Uniforme de Genebra.
  12. Aplicação do critério cronológico - lex posterior derogat priori;
  13. "Cumpre assinalar, finalmente, que os atos internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se no mesmo plano de validade e eficácia das normas infraconstitucionais. Essa visão do tema foi prestigiada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 80.004-SE (RTJ 83/809, Rel. p/ o acórdão Min. CUNHA PEIXOTO), quando se consagrou, entre nós, a tese - até hoje prevalecente na jurisprudência da Corte (e recentemente reiterada no julgamento da ADI nº 1.480-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO) - de que existe, entre tratados internacionais e leis internas brasileiras, de caráter ordinário, mera relação de paridade normativa." (Carta Rogatória n. 8.279-4 da República da Argentina, Min. Celso Mello, Informativo n. 109 do STF, grifos no original);
  14. ADIn 1480-3-DF;
  15. Ver Hugo de Britto Machado, Curso de Direito Tributário, 12ª edição, Malheiros, p. 59;
Sobre o autor
Luiz Claudio Portinho Dias

procurador autárquico do INSS em Porto Alegre (RS), membro do IBAP (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Luiz Claudio Portinho. A aplicação das normas do Mercosul pelo juiz nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1631. Acesso em: 22 nov. 2024.

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