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A evolução do controle de constitucionalidade das leis orçamentárias enquanto instrumento de efetivação dos direitos fundamentais

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Agenda 06/07/2010 às 15:00

Este ensaio defende a evolução que o STF tem dado ao controle abstrato de constitucionalidade das leis orçamentárias. O conceito e a revelância da jurisdição constitucional, enquanto condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito, demonstram a importância destas decisões.

         RESUMO: Este ensaio busca defender a evolução que o Supremo Tribunal Federal tem dado ao controle abstrato de constitucionalidade das leis orçamentárias. O conceito e a revelância da jurisdição constitucional, enquanto condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito, demonstram a importância destas decisões. Anteriormente, não se admitia a realização deste controle jurisdicional, mas o estudo da natureza jurídica das leis orçamentárias demonstra que elas podem ser objeto desta fiscalização jurídica. A ultrapassagem deste entendimento arcaico está intimamente relacionada aos novos limites objetivos impostos pelo legislador constituinte, os quais, por sua vez, derrubam a concepção tradicional de discricionariedade do Executivo na elaboração do orçamento público. O trabalho denuncia sua relevância social ao tratar do controle do orçamento público, instrumento essencial para promover a concretização dos direitos fundamentais. Portanto, o gerenciamento do dinheiro público merece ser cada vez mais sindicado, tanto pelos Poderes Públicos quanto pela própria sociedade, a fim de que se efetive a propalada democracia brasileira.

         Palavras-chave: jurisdição constitucional; controle de constitucionalidade; leis orçamentárias; evolução; direitos fundamentais.

         SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Jurisdição Constitucional – 2.1 Conceito e relevância – 3. O controle jurisdicional de constitucionalidade - 3.1 Controle concentrado – 4. Controle das leis orçamentárias – 4.1 Natureza jurídica das leis orçamentárias: ato normativo concreto com forma de lei – 4.2 O problema da discricionariedade – 4.3 Evolução da jurisprudência do STF – 5. Conclusão.


1 INTRODUÇÃO

         O presente trabalho busca afirmar que o controle de constitucionalidade das leis orçamentárias vem passando por uma inegável evolução constituída pela nova jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

         Neste contexto, a jurisdição constitucional se revela como um poderoso instrumento conformador do objeto cultural (que é o Direito) à realidade. É por meio do exercício da jurisdição constitucional que se alcançará, além da manutenção da integridade do sistema constitucional, uma maior efetividade dos direitos fundamentais quando houver abusos do Poder Executivo na execução e no gerenciamento do orçamento público.

         De fato, enquanto a lei da física, por meio dos experimentos, indica como solução "aquilo que é", a jurisdição constitucional, por meio da hermenêutica realizada no controle de constitucionalidade, indica a resposta como "aquilo que deve ser" entendido como a vontade da Constituição – no caso, direcionar as leis orçamentárias à efetivação dos direitos fundamentais.

         Uma breve exposição da noção de jurisdição constitucional servirá para demonstrar que o controle de constitucionalidade é uma das formas de expressão dessa jurisdição e que a interferência do Judiciário é essencial para concretizar o Estado Democrático de Direito.

         Dessa forma, o estudo gira em torno da análise do controle de constitucionalidade das leis orçamentárias, das maneiras em que tal exercício jurisdicional pode ser levado a efeito, preservando-se o ordenamento jurídico vigente, a fim de alcançar a conformidade dos direitos fundamentais previstos na CF/88.

         Pode-se dizer que a ação direta é um meio célere capaz de ornamentar e instrumentalizar este tipo de exercício da jurisdição constitucional – levando-se em consideração que as leis orçamentárias não dispõem sobre direitos subjetivos e que isto inviabiliza acionar o controle incidenter tantum, como se demonstrará.

         É neste cenário que surge a relevância de determinar a natureza jurídica das leis orçamentárias, seus efeitos e consequências. O entendimento jurisprudencial tradicional não admitia, sob nenhuma hipótese, sequer o conhecimento das ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra leis orçamentárias.

         Acreditava-se que, por absoluta ausência de generalidade ou abstração, tais leis formais tinham apenas efeito concreto, e estariam, portanto, alheias ao controle jurisdicional.

         No entanto, restará demonstrado que a própria Carta Magna não fez distinção sobre qual ato normativo (abstrato ou concreto) pode ser objeto de ações diretas, logo, é equivocada a interpretação que cria tal distinção.

         Fato é que a discricionariedade do Poder Executivo para elaborar e executar o orçamento público também está cada vez mais subjugada aos ditames previstos na Carta Magna. O que antes era um poder absoluto do Administrador lastreado no princípio da separação dos poderes começa a ser limitado pelos dispositivos constitucionais que estabelecem percentuais mínimos de investimentos em determinadas políticas públicas, como saúde e educação.

         A importância do estudo é irrefutável na medida em que trata do controle de constitucionalidade das leis orçamentárias que desafiarem diretamente a ordem constitucional posta, subvertendo a garantia e a preservação da força normativa da constituição [01].

         A redação do art. 2º da lei nº. 4.320/64 [02], que regulamenta as normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos, não deixa dúvidas de que o orçamento deverá ser "evidenciado" a todos, para que se saiba qual a política pública do Governo e o programa de trabalho a ser executado com o erário.

         Isso quer dizer que a transparência com o dinheiro público deve servir para dar concretude ao princípio da informação insculpido na Constituição Federal, bem como emprestar um caráter de legitimidade nas escolhas públicas.

         Outra medida importante para emprestar legitimidade nas deliberações públicas seria viabilizar uma participação mais efetiva da sociedade, como ocorre no orçamento participativo. Digno de nota é a experiência bem sucedida na cidade de Belo Horizonte, conforme dão notícia Gustavo Castro e Loyanna Miranda ao analisar a efetivação do direito fundamental ao lazer [03].

         Em síntese, o trabalho busca demonstrar que o gasto do dinheiro público, dada a sua relevância, merece ser controlado, e hoje conta com uma inegável evolução da jurisprudência do STF, circunstância essencial para alcançar a desejável efetivação de todos os direitos fundamentais, e por conseguinte, auxiliar a estabelecer o Estado Democrático de Direito no Brasil.


2 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

         2.1 CONCEITO e RELEVÂNCIA

         A etimologia da palavra "jurisdição" nos informa que se trata da função de "dizer o direito", ou seja, "iuris" = direito + "dictio" = dizer. Mas tal definição não implica afirmar que a jurisdição se resume a "dizer o direito", pois há casos em que ela faz muito mais que dizer o direito, e termina atuando como própria fonte criadora do direito.

         Consoante a lição de Fredie Didier [04], trata-se da função estatal que objetiva dar a última palavra, a decisão definitiva sobre o direito aplicável ao caso, sem se submeter essa decisão ao controle ou à revisão de nenhum outro poder. É dizer: a jurisdição somente é controlada pela própria jurisdição.

         Assim, a jurisdição é capaz de controlar a função legislativa (como ocorre no controle de constitucionalidade) e a função administrativa, sem ser controlada por estas outras duas funções estatais.

         A imposição de que todos os casos devem ser sempre solucionados pela jurisdição foi elevada à condição de direito fundamental e está positivada no art. 5º, XXXV, da CF/88 – trata-se do princípio da inafastabilidade jurisdicional.

         Já que a função jurisdicional está obrigada a solucionar as demandas ainda que não regulamentadas pelo legislador, diz-se que ela, além de "dizer o direito", "cria o direito", tudo para não fugir do seu dever constitucional de sempre dar uma resposta às demandas, solucionando o caso concreto.

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         Cite-se o exemplo das relações homoafetivas: a despeito da ausência de lei que disponha sobre os direitos dos casais homossexuais, é o Judiciário quem hoje regulamenta as situações jurídicas propostas pelas partes, de modo que tudo que se sabe hoje sobre os direitos dos homossexuais decorre do chamado "direito judicial".

         Assim sendo, se por um lado, é vedado ao Judiciário não dar uma resposta ao caso concreto, por outro, nos casos sem regulamentação legal, os juízes têm o poder de criar a regra jurídica para o caso concreto.

         Niklas Luhmann trata muito bem desse paradoxo:

         Por essa razão, podemos compreender essa norma fundamental da atividade dos tribunais (Gerichtsbarkeit) como o paradoxo da transformação da coerção em liberdade. Quem se vê coagido à decisão e, adicionalmente, à fundamentação de decisões, deve reivindicar para tal fim uma liberdade imprescindível de construção do Direito. Somente por isso não existem "lacunas no Direito". Somente por isso a função interpretativa não pode ser separada da função judicativa. E somente por isso o sistema jurídico pode reivindicar a competência universal para todos os problemas formulados. [05]

         Assim sendo:

         Em linhas gerais, pode-se dizer que a jurisdição é a realização do direito, por meio de terceiro imparcial, de modo autoritativo e em última instância (caráter inevitável da jurisdição) [...] É manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Expressa, ainda, a função que tem os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. [06]

         Jurisdição constitucional seria o dever do Judiciário de decidir definitivamente os casos e se necessário, criar as saídas (quando não houver regulamentação prévia, como ocorre nos julgamentos de mandado de injunção) e impor decisões finais que envolvam a interpretação da Constituição Federal.

         Nas palavras de Lenio Streck, a jurisdição constitucional busca dar "condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito":

         A compreensão acerca do significado do constitucionalismo contemporâneo, entendido como o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, a toda evidencia implica a necessária compreensão da relação existente entre Constituição e jurisdição constitucional. [...] Isto significa afirmar que, enquanto a Constituição é o fundamento de validade (superior) do ordenamento e consubstanciadora da própria atividade político-estatal, a jurisdição constitucional passa a ser a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito. [07]

         A relevância da jurisdição constitucional nos dias atuais, em especial em países de modernidade tardia, como o Brasil, transborda os interesses subjetivos de particulares, de modo que ela deve ser empregada para solucionar algo muito maior que conflitos inter-individuais. No âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, como se demonstrará, o poder de dizer o direito constitucional não serve, precipuamente, a solucionar estes embates.

         Nesse passo, a jurisdição constitucional assume papel importantíssimo para dar efetividade às normas constitucionais a fim de entregar as promessas da Constituição social brasileira.

         É que diante da inércia do Legislativo em controlar os projetos de leis orçamentárias enviados pelo Executivo, pode-se dizer que foi deslocado o "centro de decisões" [08] para o plano da jurisdição constitucional.

         Humberto Ávila entende que o Judiciário pode controlar o Legislativo nos seguintes termos:

         De um lado, o âmbito de controle pelo Poder Judiciário e a exigência de justificação da restrição a um direito fundamental deverá ser tanto maior quanto maior for: (1) a condição para que o Poder Judiciário construa um juízo seguro a respeito da matéria tratada pelo Poder Legislativo; (2) a evidência de equívoco da premissa escolhida pelo Poder Legislativo como justificativa para a restrição do direito fundamental; (3) a restrição ao bem jurídico constitucionalmente protegido; (4) a importância do bem jurídico constitucionalmente protegido, a ser aferida pelo seu caráter fundante ou função de suporte relativamente a outros bens (por exemplo, vida e igualdade) e pela sua hierarquia sintática no ordenamento constitucional (por exemplo, princípios fundamentais). [09]

         E esse controle será menor tanto quanto:

         De outro lado, o âmbito de controle pelo Poder Judiciário e a exigência de justificação da restrição a um direito fundamental deverá ser tanto menor, quanto mais: (1) duvidoso for o efeito futuro da lei; (2) difícil e técnico for o juízo exigido para o tratamento da matéria; (3) aberta for a prerrogativa de ponderação atribuída ao Poder Legislativo pela Constituição. [10]

         De fato, quando se trata de direitos fundamentais, a relevância da jurisdição constitucional ecoa mais alto no mundo jurídico, pois é por meio dela que se fará o efetivo controle da realização desses direitos. Assim, quanto mais importante for o direito fundamental, maior deve ser a atuação da jurisdição constitucional sobre ele.

         Mas relembre-se que para promover a transformação social apregoada, deve-se partir de uma interpretação jurídica em detrimento de uma interpretação histórica, consoante a lição de Emilio Betti:

         O ponto saliente da diferença entre interpretação histórica e jurídica resume-se no seguinte: que na primeira se trata unicamente de reevocar na sua autonomia, de reconstruir na sua totalidade, de integrar na sua originária coerência o sentido – concluído em si – da forma representativa, o pensamento que nela se exprime; em contrapartida, na interpretação jurídica de um ordenamento vigente, não se pode deter para relembrar o sentido originário da norma, mas deve-se dar um passo adiante, pois a norma, longe de exaurir-se na sua formulação primitiva, tem vigor atual juntamente com o ordenamento de que faz parte e destina-se a passar e a transfundir-se na vida social, a cuja disciplina deve servir. [11]

         É dizer: somente com a evolução da interpretação do Direito se inserirá na vida social a disciplina que a jurisdição constitucional se propõe, tornado-a um efetivo agente de transformação social. E o controle de constitucionalidade das leis orçamentárias é uma das formas de manifestação da jurisdição constitucional capaz de lograr tal êxito.


3 O CONTROLE JURISDICIONAL DE CONSTITUCIONALIDADE

         Antes de abordar o controle abstrato de constitucionalidade das leis orçamentárias, cumpre tecer algumas considerações sobre o principal regime de controle jurisdicional de constitucionalidade existente.

         De início, deve-se saber que o controle de constitucionalidade é uma forma de tutelar a defesa da Constituição, assegurando-lhe a necessária supremacia perante a ordem jurídica nacional: "...é uma atividade de fiscalização da validade e conformidade das leis e atos do poder público à vista de uma Constituição rígida, desenvolvida por um ou vários órgãos constitucionalmente designados". [12]

         Dessa maneira, qualquer incompatibilidade vertical entre a lei e a Carta Magna deve ser expurgada do sistema normativo, sob a pecha de contaminação pelo vício da inconstitucionalidade.

         Da supremacia e hierarquia jurídica da Constituição brota o fundamento e a legitimidade do controle das normas infra diante dos princípios e regras adotadas pela Carta. Surge, assim, o denominado princípio da constitucionalidade, relacionado por Dirley da Cunha Junior:

         Essa indeclinável e necessária compatibilidade vertical entre as leis e os atos normativos com a Constituição satisfaz, por sua vez, o princípio da constitucionalidade: todos os atos normativos dos poderes públicos só são válidos e, consequentemente, constitucionais, na medida em que se compatibilizem, formal e materialmente, com o texto supremo. [13]

         Dessa forma, para o exercício do controle de constitucionalidade jurisdicional, tem-se, de um lado, a norma impugnada, objeto de controle, e do outro, o parâmetro a ser confrontado, é dizer, a Constituição Federal – a norma que fundamenta a validade da norma impugnada.

         Cumpre frisar que a fiscalização do ordenamento jurídico em sede de controle de constitucionalidade não deve ser confundida com o controle de legalidade das normas – exempli gratia, o conflito entre lei e regulamento.

         A distinção reside no fato de que aquele controle tem como referência (ou parâmetro) a Constituição, enquanto este vela pela compatibilidade entre o regulamento e a própria lei que lhe conferiu fundamento de validade.

         Ademais, como bem adverte Gilmar Mendes:

         Não se pode deixar de reconhecer, por outro lado, que, na prática, a submissão dos regulamentos ao juízo abstrato de constitucionalidade poderia ameaçar o próprio funcionamento do Supremo Tribunal Federal, uma vez que, dadas a conformação conferida ao direito de propositura e a inexistência de requisitos de admissibilidade em processos dessa índole, um sem-número de causas acabaria por ser instaurado com objetivo de se aferir, simplesmente, a compatibilidade entre lei e regulamento. [14]

         Diga-se que este argumento – de assoberbar as funções do STF [15], inviabilizando seu funcionamento – ao tempo em que viabiliza a concretização do princípio da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88), por outro, nega o acesso do cidadão a Corte Suprema, afastando a apreciação de casos individuais, violando, portanto, o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88), antes comentado.

         Registre-se que o parâmetro constitucional federal para controle de constitucionalidade engloba todas as normas constitucionais, seja de âmbito material, seja de âmbito formal, donde inclui-se até mesmo o ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - consoante nos informa José Carlos Francisco ao avaliar a reforma do judiciário perpetrada pela EC nº. 45/04:

         Uma dessas certezas é que a aplicação do Princípio da Supremacia da Constituição (que permite o controle de constitucionalidade dos atos jurídicos infraconstitucionais) passa a ter como parâmetro um conjunto de atos normativos, que no início não estará consolidado ou codificado, de forma sistematizada, num único diploma normativo. Com efeito, o ordenamento constitucional passa a ser composto do texto positivado e pelos elementos implícitos inseridos no corpo permanente e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) pelo constituinte de 1988, pelos preceitos expressos e implícitos constantes apenas nas emendas de revisão produzidas com amparo no art. 3º do ADCT (vale dizer, dispositivos constitucionais que não foram introduzidos no corpo permanente ou no ADCT, mas que têm hierarquia constitucional) e, agora, também pelos preceitos expressos e implícitos contidos nos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados nos moldes do §3º do art. 5º do ordenamento constitucional. [16]

         Para o autor, este conjunto de normas e princípios conformam o denominado bloco de constitucionalidade:

         Dessa reunião de diplomas normativos, todos com hierarquia constitucional, o sistema jurídico brasileiro passa a se valar [sic] da noção de bloco de constitucionalidade, qual seja Constituição em sentido formal e material (portanto, hierárquico, permitindo o controle de constitucionalidade em decorrência da Supremacia da Constituição) que agora representa a reunião de diplomas normativos diversos, ainda que não consolidados em um único "código". [17]

         Fixadas as premissas que envolvem esta sindicância jurídica, passa-se a análise do regime de controle jurisdicional de constitucionalidade ao qual foi dado maior ênfase nesta pesquisa, como se justificará abaixo.

         3.1 CONTROLE CONCENTRADO

         Pode-se dizer que o controle concentrado de constitucionalidade surgiu na Europa, no século XX, quando Hans Kelsen atendeu ao projeto de Constituição da Áustria Oktober Verfassunj em 01/10/1920. Caracteriza-se por atribuir o controle a um único órgão jurisdicional, o Tribunal Constitucional.

         Segundo a doutrina tradicional, o controle de constitucionalidade concentrado, que deve ser realizado à luz da lei ou do ato normativo em tese, também pode ser denominado controle abstrato de constitucionalidade.

         Tal circunstância justifica a inexistência de partes ou de lide no processo, que é iniciado por uma ação especial de caráter objetivo, onde não há contraditório ou ampla defesa e que tem natureza dúplice [18].

         Dessa maneira, a improcedência da demanda em uma ação direta de inconstitucionalidade implica na declaração de constitucionalidade da norma impugnada. Já a improcedência da demanda em sede de ação direta de constitucionalidade redunda na declaração de inconstitucionalidade.

         Portanto, o controle concentrado de constitucionalidade se dá com ações objetivas, contra as quais não cabem recursos (excetuando-se os embargos de declaração) [19] e não é permitido desistência (art. 169, § 1º do RISTF). Sua decisão tem eficácia contra todos e em regra, efeito ex nunc.

         Trata-se de ações com "causa de pedir aberta", que permite ao órgão julgador decidir a questão da constitucionalidade com base em qualquer fundamento, mesmo se não ventilado pelo autor.

         Em outras palavras, a causa de pedir aberta viabiliza a análise do parâmetro Constitucional como um todo, de modo que, verbi gratia, ainda que a inicial indique a violação do art. X da Carta a ação poderá ser acolhida pelo desrespeito ao art. Y. Com efeito, o processo objetivo:

         É espécie de processo que não predispõe à tutela de situações subjetivas – sem vinculação a quaisquer pendengas concretas e individuais – mas, sim, de uma situação eminentemente objetiva: a adequação de norma infraconstitucional às normas constitucionais. Destina-se, assim, à guarda da Constituição, à defesa da ordem constitucional. Seu escopo é, portanto, estritamente político [20].

         Na lição de Gilmar Mendes, o controle concentrado ou abstrato de normas teria as seguintes características:

         Ao contrário dos sistemas dotados de um Tribunal Constitucional especial, nos quais o processo de controle abstrato de normas é apenas uma modalidade entre as diversas formas de controle de normas, o controle abstrato de normas no Brasil representava a única possibilidade de atacar-se, diretamente, perante o Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade de uma lei estadual ou federal. Pode-se afirmar, pois, que o controle abstrato de normas preenchia, nos modelos constitucionais de 1946, após a Emenda n. 16, de 1965, e de 1967/69, uma função supletiva e uma função corretiva do "modelo incidente" ou "difuso". [...] O controle abstrato de normas desempenhava, também uma função corretiva na medida em que, mediante decisão direta e definitiva do Supremo Tribunal Federal, permitia superar a situação de insegurança jurídica e da contraditoriedade dos julgados proferidos pelos diferentes juízes ou Tribunais sobre a mesma matéria. [...] A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas. [21]

         Verifica-se que muitos defendem que o Brasil adotou uma concepção eclética na matéria, pois admite tanto o controle concentrado (ou abstrato – segundo a classificação tradicional) como o controle difuso (ou concreto) de constitucionalidade.

         Cumpre consignar, neste ponto, a lição peculiar de Edvaldo Brito:

         Há controle concentrado naqueles sistemas jurídicos, como o alemão, que prevêem um órgão com a exclusividade de apreciar e decidir sobre a constitucionalidade das leis. Nesse tipo, portanto, somente um órgão tem a competência. Tanto que, verificada por qualquer outro, no caso concreto, a ofensa, este suspenderá a apreciação do caso, submeterá o incidente àquele, aguardando a decisão para, então, reiniciar o procedimento. [22]

         Assim, seria incorreto afirmar que há no Brasil o controle concentrado, uma vez que todos os juízos em qualquer grau podem analisar a inconstitucionalidade argüida, sem outorgar ao STF exclusividade.

         Ainda segundo o mestre baiano, o Brasil adotou unicamente o controle difuso:

         Dissemos que ele é difuso. Isto porque, não somente há a declaração de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, no plano jurisdicional, mas, também, porque qualquer órgão da estrutura do Estado, com atribuição para praticar atos decisórios, seja ele legislativo ou administrativo, pode agir em conformidade com a Constituição fazendo, pelo seu próprio controle, a seleção entre as normas válidas, recusando aquela flagrantemente ofensiva à Lei Maior para aplicar aquela que lhe seja compatível, sempre que a antinomia, entre elas, revelar conflito. Quando um órgão da Administração diz, porém, que ele não pode fazer esse controle é natural que está confundindo duas situações: a do controle de constitucionalidade, que exclui a norma do sistema mediante uma declaração, com a desse controle pela via da rejeição em aplicar normas geradoras de feitos opostos aos decorrentes da Constituição. Controle de constitucionalidade não significa, sempre, declarar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade do ato normativo, mas, praticar atos regendo-os com normas que estejam em conformidade com a Constituição. [23]

         Portanto, o autor afasta-se da concepção tradicional que identifica o controle concentrado como controle abstrato de normas e o controle difuso como controle concreto.

         Para ele, o controle de constitucionalidade jurisdicional pode ser concentrado (como no exemplo do Tribunal Alemão) ou difuso, o qual se subdivide em in abstrato (da lei em tese) e in concreto (ou incidental, no caso concreto).

         Dessa forma, não haveria, tampouco, um controle de constitucionalidade "misto" no Brasil.

         Mencione-se que neste trabalho, a despeito da brilhante distinção acima aludida, foi adotada a classificação tradicional eis que mais difundida e comum, para fins de facilitar o entendimento e o desenvolvimento do tema.

         Assim, quando se fizer referência ao controle concentrado, leia-se controle in abstrato, e quando se falar de controle difuso, deve-se ler controle in concreto – sempre na modalidade jurisdicional.

         Fato é que, no tocante ao controle jurisdicional de constitucionalidade das leis orçamentárias, dada a natureza do objeto de regulação destas leis, o controle difuso de constitucionalidade se mostra inócuo.

         É que por regulamentar a aplicação de recursos públicos, fins e montantes, bem como determinar a atividade administrativa de obtenção, criação, gestão e dispêndio de recursos públicos, as leis orçamentárias não fixam deveres de observância universal tampouco direitos públicos subjetivos.

         Isto significa que o conteúdo das leis orçamentárias não contempla proposições cujo destinatário seja sujeito universal (generalidade) ou ação universal (abstração). Estas características, como se demonstrará, segundo jurisprudência ortodoxa do STF tem o poder de blindar tais espécies legislativas do controle de constitucionalidade, o que será objeto de crítica e reprovação.

         Diga-se ainda que o Supremo Tribunal Federal, há muito tempo, entende que a simples previsão da despesa no orçamento público não gera o direito subjetivo à realização dos gastos ou ao seu pagamento.

         Este é o teor da ação rescisória nº. 929 de relatoria do Ministro Rodrigues Alckmin:

         ORÇAMENTO. VERBAS DESTINADAS A INSTITUIÇÃO ASSISTENCIAL. - A PREVISÃO DE DESPESA, EM LEI ORÇAMENTÁRIA, NÃO GERA DIREITO SUBJETIVO A SER ASSEGURADO POR VIA JUDICIAL. - AÇÃO RESCISÓRIA IMPROCEDENTE. [24]

         Por todas estas razões, o controle difuso de constitucionalidade é imprestável para impugnar as leis orçamentárias, justamente porque elas não veiculam conteúdo de deveres ou direitos, presentes nos conflitos inter-individuais. Daí não fazermos um estudo sobre este tipo de controle de constitucionalidade.

         Indicada a relevância da modalidade concentrada, ressaltada também pelo efeito vinculante e eficácia contra todos, justifica-se o realce maior dado a esta forma de controle de constitucionalidade no presente trabalho.

         Passa-se agora a analisar o controle de constitucionalidade das leis orçamentárias em face da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, objeto central do presente trabalho.

Sobre o autor
Roberto Mizuki Santos

Advogado-sócio MDL Advogados Associados. Procurador do Estado da Paraíba. Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Faculdade Internacional da Paraíba (FPB) onde leciona Direito Administrativo e Processo Civil. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito do Estado pela Unyahna/BA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Ex-Procurador Federal (2008) e Ex-Procurador do Estado do Piauí (2009-2012). Ampla experiência em concursos públicos: aprovado nos certames para procurador da PGF(AGU), PGE/PI, PGE/CE, PGE/PB e PGM/SP. Autor de artigos e capítulos publicados em revistas e livros jurídicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Roberto Mizuki. A evolução do controle de constitucionalidade das leis orçamentárias enquanto instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2561, 6 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/16935. Acesso em: 25 dez. 2024.

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