Sumário: 1. Introdução 2. A Questão da Cessão Fiduciária de Créditos 3. A Lei 11.101/2005 e o Tratamento do Crédito Cedido Fiduciariamente 4. Conclusão. Referências.
Resumo: Tendo em vista o reconhecimento da propriedade fiduciária e a sua vasta utilização com respaldo na legislação vigente, são observadas algumas discussões sobre a matéria principalmente após o advento da Lei 11.101/2005 que não submeteu aos efeitos da recuperação judicial os créditos decorrentes da propriedade fiduciária de credor. Assim, busca o trabalho trazer alguns conceitos necessários ao debate sobre a matéria, traçar o significado de cada um dos conceitos elementares, bem como opinar e trazer algum entendimento jurisprudencial ainda não pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça, principalmente no que versa sobre a possibilidade de submeter aos efeitos da recuperação judicial os créditos cedidos fiduciariamente.
Palavras chave: Cessão Fiduciária; Recuperação Judicial; Jurisprudência; Créditos.
1.INTRODUÇÃO
O negócio fiduciário, conforme deverá ser tratado em linhas posteriores com maior profundidade, representa um negócio jurídico que foi inserido na legislação pátria há algum tempo, sendo o mesmo largamente utilizado com o escopo primordial de fomentar a concessão de créditos junto ao sistema financeiro nacional.
Ocorre que, com o advento da Lei 11.101/2005, as inovações já trazidas pela legislação pátria enfrentam inúmeras polêmicas.
Verificam-se principalmente na jurisprudência de alguns Tribunais confusões acerca do instituto da cessão fiduciária com a do credor de crédito pignoratício, fazendo proliferar, inclusive, decisões salomônicas que de certo modo ignoram a hermenêutica jurídica.
Assome-se à questão outras polêmicas também já enfrentadas, dentre as quais merece destaque a inovação que opinou pela exclusão da recuperação judicial dos créditos cedidos fiduciariamente pelo recuperando, por força do disposto no art. 49, §3º da Lei 11.101/2005.
A partir das premissas acima traçadas, limitando a disposição da Lei 11.101/2005, bem como as disciplinas legais que versam sobre a propriedade, alienação e cessão fiduciária, buscará realizar alguns breves apontamentos de forma a pautar pela cientificidade no tratamento de cada uma dessas matérias.
2.A QUESTÃO DA CESSÃO FIDUCIÁRIA DE CRÉDITOS
Conforme pode ser visto no Brasil, pelos diversos diplomas legais, há o reconhecimento da propriedade fiduciária em concomitância com a propriedade que se pode dizer convencional. A esse respeito há o reconhecimento da doutrina pátria em torno da questão:
[...] a despeito do que diz a grande maioria da doutrina brasileira, a aceitação expressa da propriedade fiduciária em garantia em nosso sistema legal, na forma como é normatizada e aplicada no país atualmente, pressupõe a existência de dois direitos de propriedade distintos e simultâneos, em moldes muito semelhantes ao que ocorre nos sistemas de common law, e que, diferentemente do que se tem defendido, tal dicotomia não é em si algo que ofende a lógica dos sistemas jurídicos de base romanísticas. (NOGUEIRA, 2008, p. 57)
Assim, partindo-se de um desdobramento conceitual, tem-se que por força da propriedade fiduciária, não há a simples oferta de garantia para o cumprimento e inadimplemento de dada obrigação, e sim a transferência de propriedade ao credor. Logo, ocorre que no referido negócio jurídico, conforme Chalhub (2000, p. 11), o fiduciário, recebendo do fiduciante a propriedade de um bem, assume a obrigação de dar a ele destinação e de restituí-lo a este uma vez atingido o objetivo enunciado da convenção.
Assim, considerando o conceito de propriedade fiduciária, nota-se o efeito dúplice produzido pelo negócio fiduciário. O primeiro efeito diz respeito às implicações reais do negócio, face a transferência da propriedade ao credor fiduciário. O segundo diz respeito à obrigação do fiduciário em remancipar os bens adquiridos pelo cumprimento das finalidades do negócio, em consonância com Fiúza (2000, p. 15).
Desta forma, tendo em vista a redação dada pela Lei 10.931/2004 ao art. 66-B da Lei 4.728/1965, a alienação fiduciária de créditos tem sido utilizada largamente no mercado financeiro como garantia para a concessão de créditos a empresas. Verifica-se ainda que, para a formalização da referida garantia, é utilizado o formato da cessão fiduciária que, por sua natureza, representa contrato bilateral entre as partes pelo qual a parte cedente fiduciante cede ao cessionário fiduciário crédito para a garantia de uma dada obrigação. Finda esta, o cessionário realiza a remancipação dos bens anteriormente adquiridos pelo cumprimento das finalidades do negócio.
Ainda, além das prerrogativas inerentes ao negócio fiduciário, Fiúza (2000, p. 19), de forma a distinguir das demais cessões de crédito, pontua com bastante precisão o que caracteriza a cessão fiduciária:
Trata-se, no caso, de cessão de crédito mais pactum fiduciae. Este é fundamental para que se configure a cessão fiduciária. Não fosse assim, ter-se-ia cessão de crédito com mandato, ou outra figura que o valha.
Corroborando o ensinamento acima, de modo a estabelecer necessária distinção, tem-se, pela redação do art. 18 da Lei 9.514/1997, que mediante o contrato de cessão de crédito em garantia opera-se a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos.
Diante dos conceitos acima, faz-se necessária a distinção de outros institutos já confundidos pela jurisprudência com o da cessão fiduciária. A exemplo, tem-se que este não pode ser confundido com o penhor de créditos, afinal verifica-se que o penhor é um direito real, assessório, que se aperfeiçoa pela entrega do objeto, conforme posto por Rodrigues (2003, p. 350). Tem-se que não trata de uma modalidade de propriedade e sim de um direito de garantia. Desta feita, não merece prosperar o entendimento que entende pela caracterização da cessão fiduciária de créditos como penhor, direito pignoratício, e que, por isso, metade dos créditos cedidos estariam sujeitos aos efeitos da recuperação judicial.
A esse respeito, a partir desse entendimento destoante, posicionou-se o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
Direito empresarial. Recuperação judicial de empresa. Credor que se apresenta como proprietário fiduciário mas, na verdade, é credor pignoratício. Sujeição dos créditos garantidos por penhor ao processo de recuperação. Legitimidade da decisão judicial que autoriza o levantamento de metade dos recebíveis, liberando tais verbas do mecanismo conhecido como "trava bancária". Aplicação dos princípios da preservação da empresa e da função social do contrato. Recurso a que se nega provimento. (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº 2009.002.01890 – Relator(a): Exmo. Des. Alexandre Câmara – Data do Julgamento 18/02/2009)
Portanto, a postura de sujeitar parte do crédito cedido fiduciariamente aos efeitos da recuperação judicial revela ser essa decisão conflitante aos anseios colocados pela Lei 11.101/2005 pois, ao contrário, busca a dita lei fomentar o crédito, propiciar melhores condições e negociações calcadas na segurança jurídica para a verdadeira viabilização do mercado de crédito, bem como da empresa – não apenas o da recuperanda mas de todas aquelas, mesmo não estando em processo de recuperação judicial.
3.A LEI 11.101/2005 E O TRATAMENTO DO CRÉDITO CEDIDO FIDUCIARIAMENTE
A Lei 11.101/2005 foi inserida no nosso ordenamento em substituição à arcaica Lei de Falências e Concordatas (Decreto-Lei 7.661/1945). Com o seu advento, observa-se a nítida intenção do legislador em oferecer ao ordenamento jurídico resposta efetiva e eficaz não apenas ao adimplemento dos créditos das empresas em dificuldades financeiras, como também à viabilidade do prosseguimento da atividade empresarial em momentos de dificuldades.
Assim, busca a Lei 11.101/2005 precipuamente a recuperação da atividade empresarial, diferentemente do Decreto-Lei 7.661/1945 com o instituto da concordata, conforme bem lembrado por Fazzio Júnior (2005, p. 105):
A finalidade precípua da concordata era a concessão de prazos e melhores condições para que o devedor pudesse satisfazer as suas obrigações; dessa forma, protegia timidamente alguns credores, não resolvia a conjuntura deficitária da empresa [...]
[...] Para dizer pouco, a concordata não recuperava a empresa. Quase sempre, prorrogava a sua agonia.
Mostra-se evidente objetivo do legislador em buscar novas possibilidades para as empresas em dificuldade econômica. E nisso buscou a Lei 11.101/2005 em diversos de seus dispositivos, dentre os quais se podem exemplificar: a instituição da recuperação extrajudicial e da judicial; a alteração da classificação dos créditos na falência; e, por fim, a não sujeição à recuperação judicial dos créditos existentes na data do pedido, tratando-se o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio.
Assim, verifica-se que, com o não atingimento dos efeitos da recuperação dos créditos decorrentes de cessão ou alienação fiduciária, abrem-se à empresa recuperanda novas possibilidades de negócios para viabilizar a realização da sua atividade fim, além de respeitar a disposição da propriedade fiduciária mencionada em item anterior, uma vez que os créditos cedidos fiduciariamente representarão um elemento a mais de garantia no oferecimento ao mercado para o financiamento da atividade empresarial.
Ademais, revela-se claro o intuito da lei que traz consigo o princípio da segurança jurídica ao trazer à recuperação judicial tão somente os bens da empresa devedora, daí a necessidade de se excluir os créditos e bens cedidos fiduciariamente. Talvez, por essa razão, de modo a não reconhecer referida distinção, é que também existem opiniões destoantes acerca da disposição contida no art. 49, §3º da Lei 11.101/2005, conforme Bezerra Filho (2007, p. 142):
[...] ponto que mais diretamente contribuiu para que a Lei deixasse de ser conhecida como "lei de recuperação de empresas" e passasse a ser conhecida como "lei de recuperação do crédito bancário" ou "crédito financeiro", ao estabelecer que tais bens não são atingidos pelos efeitos da recuperação judicial
Não obstante o nobre entendimento em sentido diverso, as decisões judiciais deverão obedecer ao comando legal e não inovar a matéria.
Também, deve-se ater ao fato de que a recuperação judicial não deve atingir propriedade de terceiro, inclusive aquela cedida fiduciariamente.
Em consonância com referido entendimento, verifica-se que outros Tribunais vêm adotando entendimento diferente do julgado acima transcrito do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no sentido de reconhecer a exclusão dos créditos oriundos de cessão fiduciária aos efeitos da recuperação judicial, em função do reconhecimento da propriedade fiduciária – ademais espera ser esse o entendimento a ser pacificado pelos Tribunais Superiores:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO - CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS - RECEBÍVEIS DE CARTÃO DE CRÉDITO - PRELIMINAR DE NULIDADE DA DECISÃO POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO REPELIDA - CRÉDITO QUE NÃO SE SUBMETE AO PROCEDIMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL - INTELIGÊNCIA DO ART. 49, § 3º DA LEI Nº 11.101/2005 - RETENÇÃO DOS VALORES PELO CESSIONÁRIO NO PERCENTUAL PACTUADO - POSSIBILIDADE - DECISÃO REFORMADA. 1. (...). 2. O crédito garantido por negócio fiduciário, especificamente, cessão fiduciária de direitos creditórios não se submete ao procedimento de recuperação judicial da empresa devedora, por expressa previsão legal (art. 49, § 3º da Lei nº 11.101/05). 3. Recurso conhecido e provido." (PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento nº 0472508-8 – Relator(a) Exmo. Dês. Ruy Muggiati – Data do Julgamento 27/08/2008)
Portanto, tem-se que esse entendimento certamente é o mais ponderado em torno da matéria uma vez que assegura o atendimento dos princípios da Lei 11.101/2005, em conformidade com o constitucional da segurança jurídica, tendo em vista que não se deve aceitar a sujeição de crédito de terceiro aos efeitos da recuperação judicial.
4.CONCLUSÃO
O presente trabalho buscou, através de elementos legais, jurisprudenciais e doutrinários, trazer a discussão acerca de alguns desdobramentos e implicações da não submissão dos créditos oriundos de cessão ou alienação fiduciária aos efeitos da recuperação judicial.
Assim, mostra-se fundamental primeiramente a distinção dos institutos de direito, ou seja, não se deve confundir a cessão fiduciária com qualquer outro, a exemplo de um crédito pignoratício. Com esses elementos as premissas necessárias para a conclusão do julgador o levarão a conclusões seguras ao enfrentar a matéria.
Portanto, por força de disposição legal, o crédito de terceiro não deverá submeter-se aos efeitos da recuperação judicial e, considerando o crédito cedido fiduciariamente ser de propriedade do cessionário fiduciário, os créditos objeto de cessão fiduciária não se submeterão aos efeitos da recuperação judicial por análise lógica e por força do art. 49, §3º da Lei 11.101/2005.
Referências
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada. 4ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
CHALHUB, Melhim Namem. Negócio Fiduciário. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Editora Atlas, 2005.
FIÚZA, César. Alienação Fiduciária em Garantia. 1ª Tiragem. Rio de Janeiro: Aide Editora, 2000.
NOGUEIRA, André Carvalho. Propriedade Fiduciária em Garantia: o sistema dicotômico da propriedade no Brasil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Ano 11, nº 39, jan a mar/2008. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 56-78.
PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento nº 0472508-8 – Relator(a) Exmo. Des. Ruy Muggiati – Data do Julgamento 27/08/2008
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº 2009.002.01890 – Relator(a): Exmo. Des. Alexandre Câmara – Data do Julgamento 18/02/2009
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil Vol. 5. 28ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2003