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Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?

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Agenda 18/08/2010 às 06:23

CAPÍTULO 2 - A CONSTITUIÇÃO COMO EXPRESSÃO DO ESTADO

"Enquanto o Estado é a própria sociedade organizada, é soberano. Não pode ter limite jurídico: não pode ser limitado pelos direitos públicos subjetivos, nem se pode dizer que ele se autolimite. O direito positivo não pode constituir limite ao Estado porque pode ser modificado pelo Estado, em qualquer momento, em nome de novas exigências sociais etc [...] enquanto existir uma organização jurídica, o Estado se submete a ela; se quiser modificá-la, o fará substituindo-a por outra organização, isto é, o Estado só pode agir no sentido jurídico (mas como tudo que o Estado faz é jurídico, pode-se continuar até ao infinito)." Antonio Gramsci [49]

Configurando a organização fundamental - social, política e jurídica - do Estado, a Constituição delineia os limites em que coexistirão e interagirão a sociedade e as estruturas de poder desenvolvidas para garantir a consecução de projetos viabilizadores dos anseios sociais. Com esse objetivo nasceram os Estados, segundo as mais diversas teorias políticas, do Leviatã de Hobbes, passando pelo contrato social de Rousseau, às teorias globalizantes da atualidade. Apesar de necessariamente apresentarem características que lhes conferem atributos de durabilidade e de permanência, por dever refletir a vontade geral e manifestar as aspirações da sociedade, as Constituições não são imutáveis.

Resultado dos fatores de poder de um país, em que se contrapõem e interagem forças sociais - presidencialistas e parlamentaristas, fisiologistas e idealistas, milionários e miseráveis, burguesia e classe média, operariado, elite intelectual, camponeses e estudantes, a título de exemplo -, a Constituição deve representar um pacto, compromisso dos interesses em jogo, entre os diversos grupos sociais, refletindo determinado estado de tensão social. Conforme ensina José Eduardo Faria, "[...] toda Constituição tem um caráter jurídico, mas encerra também uma natureza social. É a conjugação desses aspectos que revela a vontade política que regulará e reprimirá os conflitos". [50]

Por consubstancializar a estrutura do Estado, a Lei Maior deve necessariamente possuir um grau de estabilidade que garanta sua manutenção. Porém, sua eficácia deriva de sua capacidade de absorver e fixar os valores e as vontades que a sustentam, construindo o futuro a partir do presente. Sendo histórica e politicamente inviável sua perpetuidade, preservam-se os valores essenciais à sua existência enquanto somatório axiológico - e quanto a esses pontos devem ser inflexíveis -, relativizando-se os demais, na medida exata em que configuram as mudanças sociais.

O positivismo legal extremado - "idólatra das leis" [51] -, que compreende o corpo dos códigos como algo completo e acabado, insuscetível de interpretações e modificações [52], historicamente impregnou o entendimento da Constituição como instrumento intangível [53], tutelador de princípios imutáveis. No caso da América Latina, com raras exceções, como no caso da Costa Rica e Uruguai [54], a tendência à intangibilidade tem sido uma constante - como antídoto contra os golpes de Estado que caracterizaram o exercício do poder durante os últimos séculos -, refletindo a experiência de nações submetidas a constantes e sucessivas fases de instabilidade política [55].

Tradicionalmente, do ponto de vista sociológico, a Constituição é considerada o conjunto de forças sociais e políticas que regem um país, espelhando a própria realidade social, que a torna real, que lhe confere status de legitimidade; do contrário, não passará de "um pedaço de papel" (ein Stück Papier), expressão utilizada na célebre conferência sobre a essência da Constituição, proferida por Lassalle em Berlim, em 1862). Do ponto de vista político, é entendida como a decisão essencial que lhe confere unicidade, que a transforma em um todo equivalente ao próprio Estado, explicitando os matizes que expressam suas características próprias, seja liberal, revolucionária, fascista ou conservadora; é o poder que tem o Estado - enquanto sociedade - de decidir a respeito de sua forma de ser, o que poderá sempre fazer, a partir de decisões políticas, conforme ensinou Gramsci [56]. Do ponto de vista jurídico, é a lei fundamental, conjunto de normas básicas articuladas e coordenadas de forma a e atuar tecnicamente, às quais as demais se submetem. [57]

Contrapondo-se às teses tradicionalmente desenvolvidas por Lassalle, Schmitt e Kelsen, entre outros, Konrad Hesse [58], em aula inaugural na Universidade de Freiburg, República Federal da Alemanha em 1959, explicita o entendimento de que a Lei Fundamental não deve sucumbir às forças da realidade e que a concepção de um efeito determinante exclusivo da Constituição real (sein) significa a negação da Constituição jurídica (sollen); a Constituição expressa uma forma motivadora e ordenadora da vida do Estado, sendo ao mesmo tempo um ser e um dever ser, configurando mais que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, causa e efeito de sua eficácia, o que lhe garante o poder de "impor tarefas", não obstante não poder ela própria "realizar nada" [59].

2.1 A supremacia da Constituição

"[...] a instauração da supremacia da Constituição, ou da sua eficácia peculiar, somente ocorrerá na medida em que os encarregados do seu cumprimento reconheçam e respeitem tal qualidade, o que implica, por um lado, na ampla participação política da população, assim capaz de exercer o controle dos atos normativos de seu interesse e, por outro, numa certa adequação da Constituição formal à realidade material a que se refere." [60]

O Estado de Direito pressupõe a existência de uma Constituição que atue como ordem jurídica fundamental, vinculativa de todos, dotada de supremacia. Na lição de Canotilho [61], do princípio da supremacia da Constituição deduzem-se elementos caracterizadores do Estado de Direito, determinando a vinculação do legislador e de todos os atos do Estado, a existência de uma "reserva de constituição" garantidora da exclusividade de tratamento constitucional de determinadas questões, a força normativa da Constituição, o sistema de direitos fundamentais, a divisão, limitação e responsabilidade dos poderes.

Para Konrad Hesse, os fatos e as normas estão na base conceito de convergência de duas constituições - uma real e outra jurídica -, que se condicionam mutuamente, apesar de não dependerem exclusivamente uma da outra. Ainda que de forma não absoluta, a constituição jurídica tem significado e vontade própria [62], cuja realização lhe imprime força normativa, garantindo-lhe eficácia.

Oportuno lembrar a lição de Pinto Ferreira [63], desenhando a "Constituição total" como um edifício de quatro andares, dos quais o primeiro se estrutura a partir das relações econômicas, o segundo, a partir das instituições e formas de organização social, o terceiro, das normas jurídicas que conformam a Carta política e o quarto, a partir dos princípios de justiça e dos valores que norteiam o sistema constitucional. Do edifício solidamente estruturado de Pinto Ferreira à pirâmide normativa erigida por Kelsen, tem-se a Constituição como a norma superior, fundamento de sua supremacia [64]. Acima dela é de se admitirem apenas valores e princípios integrantes, como um todo unívoco, de determinado ordenamento jurídico, como ensinam as palavras de Otto Bachov, pronunciadas na Alemanha do imediato pós-guerra:

"Pressuposto da obrigatoriedade da ideia de justiça para o direito é, todavia, a existência de um consenso social acerca pelo menos das ideias fundamentais da justiça. [...] creio que deve reconhecer-se um tal consenso: o respeito e a protecção da vida humana e da dignidade do homem, a proibição da degradação do homem num objecto, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, a exigência da igualdade de tratamento e a proibição do arbítrio são postulados da justiça de evidência imediata.

Um Estado poderá certamente desrespeitar tais princípios, poderá fazer passar também por "direitos" as prescrições e os actos estaduais que os desrespeitem e poderá impor a observância destes pela força. Um tal direito aparente nunca terá, porém, o suporte do consenso da maioria dos seus cidadãos e não pode, por conseguinte, revindicar a obrigatoriedade que o legitimaria" [65].

A esse respeito, escreveu Mestre Afonso Arinos em outras palavras e por todos:

"[...] os juristas observaram que o caráter escrito das Constituições não limita ao texto nela contido toda a matéria constitucional. Em outras palavras, a Constituição chamada escrita [...] é completada, para se executar realmente, por uma quantidade de costumes, que terminam por fazer uma trama inseparável do próprio texto. A vida efetiva da Constituição escrita só se realiza assim, pela circulação incessante que se processa, na realidade, entre o texto primitivo e os costumes incorporados ou justapostos." [66]

A supremacia é característica da Constituição brasileira, escrita e rígida quanto ao processo especial adotado para alteração de suas normas, o que se infere da leitura de vários de seus dispositivos, a saber:

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- cláusula pétrea expressa, no tocante a proposta de emenda que tenda a abolir as matérias constantes dos incisos I a IV do art. 60;

- condições e limites específicos ao poder de emenda (art. 60, caput, incisos I a III e §§ 1º, 2º, 3º e 5º);

- hipótese de realização de revisão constitucional uma única vez, após transcorridos cinco anos de sua promulgação (art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT);

- compromisso dos presidentes da República e do Supremo Tribunal Federal e dos membros do Congresso Nacional - e, por simetria, governadores, presidentes dos Tribunais de Justiça, das Assembléias Legislativas com a manutenção, defesa e cumprimento da Constituição (art. 1º do ADCT);

- crime de responsabilidade do presidente da República por seu descumprimento (arts. 85, I a VII e 86);

- veto presidencial a projeto de lei considerado inconstitucional (art. 66 § 1º);

- controle direto de inconstitucionalidade de leis e de atos normativos federais ou estaduais (art. 102 I a, 1ª parte);

- procedimento especial, formalização e restrição da legitimação ativa à propositura de ação direta de inconstitucionalidade (art. 103 e §§);

- ação declaratória de constitucionalidade de leis e de atos normativos federais ou estaduais (art. 102, I a, in fine [67]);

- medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, p);

- recurso extraordinário (art. 102 III, a a c).

A recorrência de normas consagradoras da supremacia da Constituição, além do elenco, intencionalmente reiterado, dos direitos e garantias individuais e coletivos [68], são indício da preocupação e apreensão do legislador constituinte, com a ânsia de participação de uma sociedade historicamente sempre alijada do processo político, como que prevendo uma possível exacerbação de conflitos de interesses antagônicos, que sempre caracterizaram a vida política brasileira, calcada no fisiologisno e no clientelismo, conforme visto no Capítulo precedente.

2.1.1 A força da Constituição

"Se o Estado moderno é a relação social em que se condensam as contradições de um determinado modo de produção e das lutas sociais que elas suscitam, o direito positivo não é uma instância autônoma e subsistente por si mesma, porém dependente de outras instâncias que o determinam e o condicionam, ao mesmo tempo em que também acabam sendo por ele determinadas e condicionadas. A positivação do direito apresenta-se, ela própria, produto do conflito hegemônico entre grupos e classes que procuram manipular e adaptar os mecanismos de regulação e repressão a seus fins, impondo, mantendo e assegurando um padrão específico de relações sociais". [69]

A Constituição brasileira de 1988 representou o grande marco da restauração do Estado democrático no Brasil. Foi uma Carta Política emblemática, afirmando a redemocratização do país após quase vinte e cinco anos de governo militar autoritário, assinalado pela intolerância e pela violência. Significou, notadamente, a reafirmação dos direitos fundamentais, máxime os de cidadania. Em decorrência, foi e tinha que ser uma Constituição "prolixa", "redundante", "casuística", "extensa", "detalhista", "pormenorizada" e, em muitos momentos, "corporativista" [70]. Explica-se. O Estado que se pretendia estruturar acabava de sair de um regime de força, ao qual se submetera a sociedade que ele refletia, desacostumada ao pluralismo e ao discurso político. Muitos de seus membros dirigentes, por opção, contingência ou oportunismo, dele haviam sido partícipes, como os Senadores ditos "biônicos", não eleitos pelo sufrágio universal [71]. A opção, porém, de não se eleger uma Assembléia Constituinte exclusiva [72], delegando-se poderes específicos aos membros do Congresso Nacional regularmente eleitos, não pressupôs a integração desses senadores, cujo mandato já havia expirado. O Congresso Nacional, com poderes constituintes, era complexo e contraditório, assim como a própria sociedade brasileira que representava.

Nesse sentido, a Constituição Coragem ou Cidadã, cujo texto integral deveria ser divulgado à população (através de escolas, cartórios, sindicatos, quartéis, igrejas e outras instituições representativas da comunidade), por força do art. 64 do ADCT, configurou um rito de passagem do totalitarismo dos anos 60/70 à democracia dos anos 80/90 [73].

Corroborando o que se vem afirmando ao longo deste estudo, vale ressaltar as palavras de Ulysses Guimarães, ao prefaciar a primeira edição preparada pelo Senado Federal (documento que, por não integrar o texto constitucional, foi dele expurgado), citado por Nagib Slaibi Filho [74]:

"A CONSTITUIÇÃO CORAGEM. O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem sáude, sem casa, portanto, sem cidadania.

A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o país.

Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem.

Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a Constituição-cidadã.

Cidadão é o que ganha, come, sabe, mora, pode se curar.

A Constituição nasce do parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade.

Por isso, mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do governo e a administração dos impasses. O Governo será praticado pelo Executivo e o Legislativo.

Eis a inovação da Constituição de 1988: dividir competências para vencer dificuldades, contra a ingovernabilidade concentrada em um, possibilita a governabilidade de muitos.

É a Constituição coragem.

Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu, destroçou tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei.

A Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça".

Assume especial relevo a natureza anímica conferida à Constituição, representada como um soldado em guerra, que luta com coragem para vencer a miséria - grande adversário, inviabilizador da cidadania, logo, da dignidade e da justiça. A Constituição configurou o nascimento de um novo Estado, assim como "a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa" [75], na forma como Hobbes definiu o nascimento do Estado.

Os dados relativos à implantação e desenvolvimento dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, bem como os esforços envidados para sua votação, conforme se evidenciará no próximo Capítulo, permitem aduzir que a Constituição da República impregnou-se das condicionantes capazes de garantir-lhe força normativa.

A força da Constituição de 1988 é proporcional à amplitude dos debates que nortearam os trabalhos constituintes, em um processo tendente a reunir partes que originaram o projeto final. Oito comissões e vinte e quatro subcomissões temáticas recolheram sugestões, realizaram audiências públicas e formularam estudos parciais. Em 15/07/1987 a Comissão de Sistematização organizou o primeiro anteprojeto, iniciando o processo formal de tramitação: impasses, negociações e confrontos somaram, ao todo, nas várias fases, 65.809 emendas. Entre junho de 1987 (primeiro anteprojeto) e setembro de 1988 (redação final), foram apresentados nove projetos [76].

Apesar de não ter sido eleita para a desempenhar exclusivamente o poder de constituir que lhe foi delegado, a Assembléia Nacional Constituinte, por sua presença assídua em Plenário, por suas constantes declarações à imprensa e pela provocação de discussões e debates a respeito de muitas das posições assumidas, terminou por criar um sistema de confiança pública, motivador de um apoio consensual, de certa forma difuso, da sociedade brasileira. Se ninguém esteve a favor de todas as medidas adotadas, todos, salvo melhor juízo, aceitaram o processo. Mais de 12 milhões de assinaturas e 112 emendas populares asseguraram soberania, dignidade e pluralismo político à Constituição da República Federativa do Brasil - a primeira a estruturar-se a partir de tamanha base participativa. Pode-se afirmar que os Constituintes atuaram como representantes daqueles que os elegeram.

Nas palavras do sempre citado constitucionalista [77], a Carta de 1988

"É um texto moderno, com inovações de relevante importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial. Bem examinada, a Constituição Federal, de 1988, constitui, hoje, um documento de grande importância para o constitucionalismo em geral. [...]

É a Constituição Cidadã, na expressão de Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte que a produziu, porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania."

A simples constatação da força de sua originalidade e da existência de dispositivos formalizadores de sua supremacia não é bastante para garantir-lhe a efetividade. O fato de aqueles a quem a Lei das Leis incumbiu de cumprir seus comandos a poderem violar constante e impunemente, como vem ocorrendo - tema sobre o qual se discorrerá a seguir -, demonstra que sua supremacia, de fato, somente se efetivará através de um político atuar social, pelo exercício do poder de controle e fiscalização imanente à sociedade, como detentora da autoridade constituinte originária, concretizando, assim, a necessária adequação da Lei Maior à realidade material que lhe dá razão de ser.

2.1.2 Mudança social: Estado de Direito e Estado Social

O conceito de Estado de Direito [78] nasceu da necessidade de se garantir certeza e segurança das liberdades individuais, após as revoluções burguesas do final do século XVIII, com o constitucionalismo do início do século XIX, a partir das idéias que embasaram a formação do pensamento liberal. Enquanto o Estado de Direito se caracteriza pelo individualismo e pela propriedade privada, o Estado Social [79] eleva os direitos fundamentais à esfera de direitos mais amplos - econômicos, sociais, culturais. A liberdade de ir e vir transmuda-se na liberdade do atuar social, do controlar e do fiscalizar o poder público, em prol de um interesse maior, da coletividade. Em todo o mundo, o Estado Social intensifica a regulamentação dos mercados, planifica a economia, cria empregos, fiscaliza e controla a atividade econômica, tende a redistribuir a riqueza.

Contra o individualismo neutralista que caracterizou o Estado liberal insurgiram-se os movimentos sociais da segunda metade do século dezenove, buscando eliminar as injustiças e pugnando por um ideal de justiça social, pela consecução do bem estar social geral (Welfare State). Neste sentido, é de se entender que no Estado Social deva inexistir o dualismo entre Estado e Sociedade (que caracteriza o état gendarme), dado que representa o interagir de ambos; porque, dialeticamente, o Estado encontra seu fundamento na legitimação das aspirações sociais, o que será tão mais viável quanto a Constituição referenciar um sistema de valores passível de nortear sua realização. Na virada do milênio, as Constituições passam, em conseqüência, a dedicar capítulos próprios aos direitos econômicos e sociais, no afã de alcançar objetivos considerados fundamentais, como a construção de uma sociedade livre e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem comum [80].

Cabe notar que Afonso Arinos de Melo Franco, vencido na Comissão de Sistematização da Assembléia Constituinte, preferiu a expressão Estado Social de Direito, significando

"uma evolução da antiga idéia liberal (e restritiva da atuação estatal) visando a atuação do Estado em um sentido transcendente do interesse individual, com a prevalência dos interesses coletivos totais exigindo do Poder Público a efetiva prestação de serviços que visem a diminuir as discriminações, como, por exemplo, educação, saúde, previdência, justiça". [81]

É oportuno destacar a manifesta contrariedade de José Afonso da Silva a respeito do tema, ao ponderar que

"Talvez, para caracterizar um Estado não socialista preocupado, no entanto, com a realização dos direitos fundamentais de caráter social, fosse melhor manter a expressão Estado de Direito, que já tem uma conotação democratizante, mas, para retirar dele o sentido liberal burguês individualista, qualificar a palavra Direito com o social, com o que se definiria uma concepção jurídica mais progressista e aberta, e então, em lugar de Estado Social de Direito, diríamos Estado de Direito Social." [82]

Na passagem da ordem constitucional brasileira, o Estado Social não foi excludente do Estado de Direito, conforme demonstrado, o que se evidencia pela convivência do princípio da soberania e dos direitos fundamentais (art. 1º parágrafo único I a III) com o princípio da democracia econômica, social e cultural, enquanto objetivos da democracia política, também expresso nos incisos IV e V do mencionado art. 1º, assim como nos incisos I a IV do art. 3º, amálgama recorrente nos setenta e sete incisos do art. 5º. [83]

Constata-se que com o evoluir da História evoluiu a teoria constitucional. O Estado, que nos últimos dois séculos teve papel privilegiado de ator absoluto na cena política, agente exclusivo da ordem jurídica, prevalente sobre a sociedade civil, foi instado - pela atual ordem constitucional - a assumir novo papel, relativizado pela posição conquistada pela sociedade civil. As liberdades individuais, consagradas pelo liberalismo que caracterizou os últimos séculos do primeiro milênio, substituem-se pelo exercício dos direitos sociais e, no final do milênio, pelos direitos de terceira geração [84], no processo de democratização progressiva por que vem passando o Estado em todo o mundo.

As transformações políticas e relacionais exigem a mudança das Constituições, e a Constituição brasileira, prevendo a possibilidade de sua própria alteração, reconhece que a sociedade vive um processo dinâmico de câmbios que determinam a mudança de feição do Estado. Idealmente, uma reforma social capaz de preencher o imenso vazio que sempre existiu entre o país formal e o país real que convivem dentro de um mesmo Brasil [85]. Resta verificar qual o grau e dimensão dessa reforma, seus fundamentos de validade e eficácia e de que forma deve realizar-se.

2.1.3 O plebiscito e a revisão constitucional

"Estados têm sido admittidos á União, cada qual com a sua Constituição própria, e vintenas de convenções se tem reunido ou para votarem novas constituições, ou para emendarem e alterarem os instrumentos existentes. [...] Algumas vezes é conveniente a revisão constitucional dos Estados existentes, e quando se tornam necessarias mais que simples emendas, é costume convocar convenções para aquelle fim. Algumas constituições estabelecem o modo de convocar as convenções, e outras tratam do modo pelo qual periodicamente se submete ao povo a questão da revisão". [86]

Dadas as diferentes tendências políticas dominantes no Congresso [87] e no seio da sociedade, a Constituição previu a realização de plebiscito [88], visando à definição pelo povo da forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) a vigorar no País. Em conseqüência, dispôs o art. 3º do ADCT a revisão constitucional que se faria necessária, caso vitoriosa forma não republicana e sistema não presidencialista de governo.

Divergem doutrinadores a respeito da revisão constitucional, conforme prevista no ADCT, alinhando-se em três correntes distintas de opinião, na lição de Luís Roberto Barroso [89]:

- Geraldo Ataliba, Seabra Fagundes e Paulo Bonavides entendem que somente teria lugar uma vez, limitada pelo art. 60, após e em função da realização do Plebiscito; com semelhante entendimento, porém, sem limitação de competência, José Afonso da Silva;

- Marco Aurélio Greco entende tratar-se de uma "reserva de Poder Constituinte originário", que por cinco anos se prolongasse intacto [90];

- o terceiro posicionamento doutrinário é desenvolvido por Michel Temer, para quem a revisão pode dar-se a qualquer momento - e não necessariamente até o quinto ano após a promulgação da Constituição, limitada pelas cláusulas pétreas; nessa direção conclui também Luís Roberto Barroso [91], entendendo que os direitos e garantias individuais a que se refere o art. 60, § 4º extrapolam o art. 5º.

É de se entender que a opção do texto constitucional por definir nesse dispositivo, verbis, "A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição" [grifou-se], refere-se à exclusiva hipótese de fazer-se tal reforma necessária se vitoriosa no plebiscito de que trata o art. 2º (realizado em 21 de abril de 1993) outra forma e sistema de governo que não a república presidencialista. Ao definir a revisão, não se referiu o texto a qualquer uma, porém a uma revisão definida, in casu, a que se faria imperiosa se se mudasse a forma e o sistema de governo. Não fora assim e a localização do mencionado dispositivo no ADCT, logo abaixo do art. 2º, seria desinfluente, já que não é de se admitir interpretação topicamente isolada de norma constitucional. Na inteligência de Carlos Maximiliano,

"O Direito Constitucional apoia-se no elemento político, essencialmente instável, a esta particularidade atende, com especial e constante cuidado, o exegeta. Naquele departamento da ciência de Papiniano, preponderam os valores jurídico-sociais. Devem as instituições ser entendidas e postas em função de modo que correspondam às necessidades políticas, às tendências gerais da nacionalidade, à coordenação dos anelos elevados e justas aspirações o povo." [92]

Porém, a resposta ao plebiscito exigiria, necessariamente, a revisão técnica do texto constitucional. De outra forma, não seria cabível o menor quorum exigido para a revisão constitucional (maioria absoluta, em sessão unicameral), comparativamente aos três quintos, em sessão bicameral, exigidos para a aprovação de Emenda Constitucional. Nas palavras de Geraldo Ataliba,

"Tal redução de quorum, por absolutamente excepcional quanto à matéria e quanto à ocasião (uma única e exauriente oportunidade), deve - é óbvio, é evidente - ser interpretada estritamente. Só se aplica a esse momento (designado também singularmente de revisão constitucional) e a essa matéria: forma e sistema de governo.

Tudo isso mostra o caráter sistemático da Constituição e a harmonia, recíproca integração e solidariedade de suas partes e unidade fundamental de seu espírito, provendo que a lei é, verdadeiramente, mais sábia que o legislador.

E evidencia que o art. 3º só pode ser interpretado em conjunto com o 2º, ambos operando como exceções à norma perene do art. 60, sem abalar seu rico e forte § 4º.

A revisão irá abranger, na verdade, apenas e tão somente aquilo que for necessário para dar concreção ao que há foi decidido diretamente pelo povo.

[...] Interpretar diversamente, data venia, é afirmar a quase inocuidade da Constituinte de 1987/88. [...] É dizer que tudo nela [a Constituição] é provisório, é precário. Que ela foi inteirinha feita para valer 'só por cinco anos" [93].

É incontroverso que a Constituição previu a revisão de seu texto cinco anos após promulgada. Independentemente da amplidão e intensidade da revisão prevista - e que não ocorreu -, importa destacar que os artigos 2º e 3º do ADCT consagram a soberania popular expressa como princípio fundamental [94]. Ainda os incisos I e II, do art. 14 e XV, do art. 49 dispõem sobre a primazia da participação popular "direta", prevendo e garantindo a realização de plebiscito e referendo.

A respeito da representação popular, é exemplar o ensinamento do grande mestre Afonso Arinos de Melo Franco, lembrando que, historicamente,

"Entre os precursores mais próximos das Revoluções americanas e francesa, vamos encontrar Locke, Montesquieu e, um pouco mais tarde, Sieyès, como partidários do conceito da chamada tese da soberania nacional, que considera o poder político incorporado na nação, entidade abstrata e diversa do simples agregado concreto dos indivíduos que compõem o povo. A soberania nacional tende para a democracia representativa. Do lado dos que defendem a chamada tese da soberania popular, deparamos sobretudo com a influência de Jean-Jacques Rousseau. Este escritor, na sua obra política capital, que é o Contrato Social, depois de elaborar a tese da soberania na vontade geral sempre renovável, refuta energicamente o princípio da representação, como constituindo uma verdadeira burla ao corpo eleitoral. Para Rousseau, os eleitos não são mandatários, mas simples "comissários do povo" (expressão por ele utilizada e que se viu consagrada na terminologia soviética), os quais exercem suas funções sob a possibilidade de destituição a cada momento. A soberania popular tende, assim, para a democracia direta." [95]

A importância e atualidade do tema são aspectos objetivamente tratados por Hans Kelsen, verbis:

"[...] a democracia direta representa, naturalmente, um grau de democracia muito superior à democracia parlamentar ou indireta, que corresponde ao princípio técnico da divisão do trabalho social. [...] procura-se introduzir no sistema representativo que, apesar de tudo, hoje se impõe, certas instituições que o aproximam da democracia direta; em vez de limitar a grande massa dos titulares dos direitos políticos - "o povo"-, que é, segundo a ficção da soberania popular - sustentáculo da ideologia democrática - a verdadeira detentora da força pública, ao simples ato da eleição do Parlamento, pretende-se fazê-la participar mais diretamente na própria legislação. Com esse fim, as Constituições modernas dão um lugar cada vez maior a duas dessas instituições: a iniciativa popular e o referendum" [96].

Se a democracia direta praticada nas ágoras atenienses, pelos gregos, é hoje inviável, em razão das contingências demográfica e urbana, a participação popular é possível - e reiteradamente desejada pela Lei das Leis -, através de institutos como plebiscito, iniciativa legislativa popular, júri, escabinato, participação de entidades da sociedade civil em órgãos colegiados administrativos, atuação de sindicatos e órgãos de representação profissional na defesa de interesses individuais homogêneos e coletivos. Essa participação é almejada como fonte viva de legitimidade e supremacia, conforme se depreende da leitura de inúmeros dispositivos constitucionais [97]:

Não obstante fundar-se em valores liberais, a Constituição de 1988 preconiza um Estado Social. Consagrando a soberania popular, prevê e pressupõe, reiteradamente em dezesseis dispositivos distintos (além de outros, complementares, não considerados no rol da nota 49 acima, como o art. 49, XV, por exemplo), a participação popular como forma de atuar político garantidor de legitimidade. Proporcionalmente aos 247 artigos da Constituição, o elenco supra referido equivale a aproximadamente 6,5% do conjunto dos dispositivos constitucionais. Por óbvio, dos 16 artigos de que se trata, há uma maioria atinente ao Título VIII - Da Ordem Social (artigos. 204 II, 206 VI, 216 § 1º e 231 § 3º). Porém, os 3/4 restantes disseminam-se por quase todo o texto constitucional, excetuando-se, também por óbvio e por sua eminência técnica, os Títulos V - Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, que trata dos Estados de Defesa e de Sítio, das Forças Armadas e da Segurança Pública e VI - Da Tributação e do Orçamento.

Como exemplificação e adotando a mesma técnica reiterativa, cabe ressaltar que a participação popular é prevista no Títulos I - Dos princípios fundamentais; II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais; III - Da Organização do Estado; IV - Da Organização dos Poderes; VII - Da Ordem Econômica e Financeira; VIII - Da Ordem Social; é pressuposto da ação governamental em seis hipóteses (artigos 31 § 3º, 187, 204 II, 206 VI, 216 § 1º e 231 § 3º).

Além da participação popular, são exemplos do que se vem afirmando os Capítulos relativos à Ordem Social, bem como a forma reiterada com que se define um verdadeiro sistema constitucional de valorização e proteção do meio-ambiente, com a previsão de processo de desenvolvimento sustentável (arts. 3º II e III, 5º LXXIII e LXXI, 129 II, 170 VI, 186 II, 23 III e IV, 24 VI, 225). Ainda, destaque é de ser dado à relativização da propriedade em face da função social que esta deve desempenhar (arts. 156 § 1º, 170 III, 182 § 2º, 184, 185 parágrafo único, 186 I a IV, 243).

Quanto à definição e realização de um novo modelo de Estado, que insitamente prevê, a Constituição indica dialeticamente o caminho a seguir: o da participação popular, capaz de garantir e evidenciar o compromisso entre os interesses conflitantes dos diversos e complexos grupos sociais - conforme experimentado pela Constituinte -, assegurando um mínimo de critérios e de valores comuns e legitimando as opções realizadas.

Sobre a autora
Regina Helena Machado

Jurista. Bacharel em Direito (Faculdades Integradas Candido Mendes, Ipanema, 1992/1996). Especialização (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 1997/1999). Gestora em Direitos Humanos (Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República, 2005). Autora de livros: "Medida provisória ou a medida do poder (Rio de Janeiro: Liber Juris, 1997); "Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001) e de vários artigos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Regina Helena. Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2604, 18 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17116. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Obra originalmente publicada como livro "Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?" (Lumen Juris, 2000).

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