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Adaptabilidade, cooperação e ônus da prova: por uma teoria dinâmica da responsabilidade probatória

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Agenda 18/08/2010 às 13:52

"Descobrir o verdadeiro sentido das coisas/É querer saber demais/Querer saber demais"

(Sonho de uma flauta - O Teatro Mágico)

Sumário: 1. Intróito: O neoprocessualismo e os direitos fundamentais processuais. 2. Princípio da Adaptabilidade. 3. Princípio da Cooperação. 4. A situação de incerteza e o ônus probatório. 5. A importância da teoria dinâmica do ônus da prova na consecução da efetividade jurisdicional. 6. Conclusão. 7. Referências.


1. Intróito: O neoprocessualismo e os direitos fundamentais processuais.

A temática acerca da prova merece ser estudada à luz de toda concepção pós-moderna do Direito. Dessa forma, busca-se, no âmbito do direito processual contemporâneo, a justiça do caso concreto de sorte a pacificar os conflitos sociais. Nesse turno, o direito probatório deve, sim, ser interpretado em consonância com esse novo modelo.

Ocorre que a partir da segunda guerra mundial, com a derrota dos regimes totalitários, tornou-se indispensável uma redefinição dos paradigmas jurídicos a fim de conter abusos por ventura pretendidos pelo Estado. Neste quadro, surge uma nova forma de entender o Direito, notadamente com a positivação da Constituição Italiana, de 1947, e da Lei Fundamental de Bonn (1949). No Brasil, por sua vez, este modelo começou a ser implementado após a Constituição de 1988, proporcionando, inclusive, "o mais longo período de estabilidade institucional da história republicana do país" [01].

Neste novo paradigma, portanto, buscou-se positivar nas Cartas Constitucionais verdadeiras declarações de direitos de modo a prestigiar os princípios e os valores fundamentais. Fica evidente tal postura no ordenamento pátrio ao examinarmos o extensivo rol do Título II, relativo aos Direitos e Garantias Fundamentais, da atual Lei Maior.

Este método de compreender a ciência jurídica - chamado neoconstitucionalismo - é marcado por características essenciais, as quais repercutiram em todos os ramos do direito – inclusive no sub-ramo relativo à prova -, não se restringindo, então, ao direito constitucional. Neste quadro, este (neo)constitucionalismo [02], no âmbito teórico, é qualificado pelo reconhecimento da força normativa da Constituição [03], pela relevância da jurisdição constitucional e pelo desenvolvimento de uma nova interpretação constitucional gerando um mecanismo de constitucionalização do direito [04].

Diante disso, a Lei Suprema começa a ser vista como verdadeira Paramount Law de sorte que seus dispositivos passam, sim, a normatizar condutas; deixou, portanto, de ser vista como mera carta de intenções, atravessando o momento de imposição, vinculadamente, de seus preceptivos. Nesta toada, inclusive, o mestre de Coimbra J. J. Canotilho afirma a possibilidade de falar na morte das normas constitucionais programáticas – "não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político" [05].

Clarividente, então, a importância da Constituição, atribuída por esta concepção, tornando-se indispensável um sistema eficaz de proteção de sua proeminência. Nessa esteira, além do controle difuso de constitucionalidade, cuja matriz está relacionada com o judicial review americano, o Brasil adotou também a proteção concentrada da Carta Magna com significativa ampliação da legitimidade e de ações específicas no universo jurídico contemporâneo. Verifica-se, dessarte, o amplo rol dos legitimados (art. 103, CR [06]) para propor as inúmeras ações de controle concentrado, v.g., ação direita de inconstitucionalidade por ação e por omissão, ação de inconstitucionalidade interventiva, ação declaratória de constitucionalidade, argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Como salientado, nesta forma de compreender o direito, ganham substancial importância os direitos fundamentais, bem como os princípios que lhes dão suporte. Os mesmos, como valores de suma relevância para toda comunidade, devem estar positivados na Norma Suprema de modo a afastar, por inconstitucional, qualquer lei ou ato normativo contrário. Nítido tal atenção do legislador constituinte que logo no preâmbulo trouxe a preocupação com a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

O neoconstitucionalismo, como destacado, irradiou influências para todos os ramos da ciência jurídica, principalmente em razão da "constitucionalização do direito" [07]. Dessa forma, o estudo do processo também passou a evidenciar aquelas características, de sorte que a doutrina apelidou este cenário de neoprocessualismo (em evidente alusão ao neoconstitucionalismo). Assim, inúmeros institutos processuais encontram guarida na Constituição, e aqueles que continuam positivados em normas legais são examinados afinados ao tom constitucional. Nesse universo neoprocessualista, portanto, "para além de princípios processuais constitucionais, hoje se fala em direitos fundamentais processuais" [08] (direito fundamental à vedação das provas ilícitas, por exemplo).

Por fim, cumpre salientar que tantos os direitos fundamentais materiais como os processuais, expressados por princípios, devem ser interpretados em vista da máxima efetividade. Neste sentido, inclusive, Robert Alexy afirma que os princípios são mandamentos de otimização esclarecendo que "o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes" [09]. Isso não significa, todavia, que eles não possam ser restringidos no caso concreto; nestes casos, urge utilizar o postulado da proporcionalidade.

Diante dessa nova forma de compreender o direito, com a força normativa da constituição, expansão da jurisdição constitucional e, principalmente, como a visão sobranceira dos direitos fundamentais, o processo deve ser visto como um caminhar, observado os direitos fundamentais processuais, para a realização daqueles princípios. Nas palavras do professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, "realmente, se o processo, na sua condição de autêntica ferramenta de natureza pública indispensável para a realização da justiça e da pacificação social, não pode ser compreendido como mera técnica, mas, sim, como instrumento de realização de valores e especialmente de valores constitucionais, impõe-se considerá-lo como o direito constitucional aplicado" [10]. "Com efeito, o processo distancia-se de uma conotação privatística, deixando de ser um mecanismo de exclusiva utilização individual para se tornar um meio à disposição do Estado para a realização da justiça, que é um valor eminentemente social." [11]

No afã da prestação jurisdicional justa, portanto, impõe-se a repartição dinâmica do ônus da prova, ou seja, diante do caso concreto, tal encargo recairá sobre aquele com maiores condições de desincumbir-se. Somente assim, vale dizer, os direitos fundamentais processuais da cooperação, boa-fé, lealdade, adaptabilidade do procedimento e igualdade estariam sendo atendidos, "na busca da aplicação dos ideais constitucionais". Não se pode olvidar, também, que esta teoria da responsabilidade probatória minimizaria certos prejuízos causados pela situação de incerteza, diferente do que ocorre com o atual modelo estático, onde a lei previamente fixa a parte incumbida de provar.

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2. Princípio da Adaptabilidade:

Diante deste contexto de busca da justiça, mister salientar que o princípio da inafastabilidade do poder judiciário não pode mais ser visto, como outrora concebido, apenas para permitir o acesso a um juízo natural. "Não basta a simples garantia formal do dever do Estado de prestar a Justiça; é necessário adjetivar esta prestação estatal, que há de ser rápida, efetiva e adequada." [12] Portanto, tendo o processo por escopo a realização da justiça com a entrega da tutela jurisdicional qualificada, o procedimento para tanto há de ser amoldado neste desiderato [13].

Surge, assim, como corolário do direito fundamental à ação, o princípio da adequação e da adaptabilidade. Adotando-se a denominação do sempre didático professor Fredie Didier Jr., o primeiro seria "pré-jurídico, legislativo, como informador da produção legislativa do procedimento em abstrato". Já o segundo é "processual, permitindo ao juiz, no caso concreto, adaptar o procedimento de modo a melhor afeiçoá-lo às peculiaridades da causa" [14].

Vale dizer, ainda, que o princípio-base do devido processo legal (ou melhor, devido processo constitucional), caracterizado não só pela regularidade formal, mas também por sua manifestação de razoabilidade (substantive due processo of law), é aplicado a todos o meios de produção de normas jurídicas: processo judicial, processo administrativo, processo legislativo e, inclusive, processo negocial. Nesse quadro, o legislador, ao estabelecer normas jurídicas processuais através do rito constitucionalmente previsto, deverá agir não só nos termos formalmente estabelecidos nos arts. 59 e seguintes da Norma Fundamental, mas, também, fixando medidas adequadas ao fim do processo – prestação jurisdicional justa. Essa faceta do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição é que legitima o princípio da adequação.

Diante disso, o Poder Legislativo, em sua atividade leginferante, adotará meios compatíveis com a relação substancial posta à apreciação pelo Poder Judiciário. Sendo assim, tais normas poderão levar em consideração os eventuais litigantes (adequação subjetiva) – por exemplo: diferenciação nas regras de competência quando a demanda envolver a União, entidade autárquica ou empresa pública federal (art. 109, CR) -; a função do procedimento (adequação teleológica) – diferenças, v.g., existentes no rito cognitivo em relação ao executivo -; bem como pela natureza, pela forma como se apresenta e pela situação de urgência do direito material (adequação objetiva) [15].

As regras e princípios de direito processual, em suma, postos pelo legislador, deverão estar em harmonia com as peculiaridades do direito material que ligam as partes em conflito. Portanto, pelo princípio da adequação, ao se editar normas jurídicas para regular a relação processual, não se pode olvidar o direito material. Evidente, então, que o direito processual é fundamentado pelo direito material e, ao mesmo tempo, aquele concretiza este. Neste sentido, inclusive, salienta Francesco Carnelutti: "entre o processo e direito material ocorre uma relação circular, o processo serve ao direito material, mas para que lhe sirva é necessário que seja servido por ele" [16].

Ocorre, entretanto, que não se pode prever todas as situações possíveis diante do caso concreto, id est, não há como imaginar o prognóstico de todas as condições que podem ser levadas à juízo estabelecendo normas processuais aptas a melhor protegê-las. Ora, é possível que ocorra hipótese de suma peculiaridade em que o legislador não positivou normas processuais adequadas àquela circunstância específica.

Nesses casos, em razão do princípio da adaptabilidade, pode o magistrado ajustar o procedimento às particularidades – não previstas pelo legislador – da hipótese levada a sua apreciação. Assim, o ideal é mesmo a adaptabilidade do procedimento pelo juiz já que a aplicação da norma processual, prevista para as hipóteses gerais, pode ensejar violações aos direitos fundamentais processuais. Sendo, por exemplo, a prova diabólica (impossível de ser produzida) para a parte a quem compete desincumbir-se do ônus, contudo, facilmente realizável pela outra, aplicar a regra geral prevista no art. 333, do CPC, implicaria em inconstitucionalidade circunstancial. Ora, como vimos, a tutela jurisdicional deve ser efetiva, e objetiva a realização da justiça de modo que os entraves legislativos não podem obstar tal fim [17].

Nesse diapasão, também as normas processuais podem, em que pese abstratamente constitucionais, à luz do caso concreto, ser consideradas inconstitucionais. Sobre este fenômeno, inclusive, Ana Paula de Barcellos salienta que "é possível cogitar de situações nas quais um enunciado normativo, válido em tese e na maior parte de suas incidências, ao ser confrontado com determinadas circunstâncias concretas, produz uma norma inconstitucional" [18]. Tais regras, portanto, devem ser afastadas não se subsumindo na hipótese, sob pena de ofensa à Constituição.

Sobre este princípio, insta, ainda, trazer à baila os ensinamentos do saudoso Piero Calamandrei ao tratar do (à época novo) Código italiano:

A inovação verdadeiramente fundamental introduzida em matéria de formas pelo novo Código, é, pelo contrário, outra: a que a Rel. Grandi, n. 16, denomina: "o princípio da adaptabilidade do procedimento às exigências da causa", ou, como se tem dito também, de "elasticidade processual". (...) O Código tem tratado de temperar a excessiva rigidez, adotando, no lugar de um tipo de procedimento único e invariável para todas as causas, um procedimento adaptável às circunstâncias, que pode ser, em caso de necessidade, abreviado ou modificado, podendo assumir múltiplas figuras, em correspondência com as exigências concretas de cada causa."

A rigidez de um procedimento regulado de um - Adaptabilidade do procedimento como maneira de temperar a legalidade das formas - modo uniforme para todas as causas possíveis, tem o grande inconveniente de não prestar-se a satisfazer simultaneamente a exigência de cuidadosas e exaustivas investigações, que se sente especialmente em certas causas mais complicadas e difíceis, e a exigência de uma rápida resolução, que predomina nas causas mais simples e urgentes. [19]

Atualmente, não há como negar o papel criativo do poder judiciário de modo que o juiz não pode ser visto mais como a bouche de la loi. [20] Assim, a doutrina afirma que "se nas teorias clássicas o juiz apenas declarava a lei ou criava a norma jurídica individual a partir da norma geral, agora ele constrói a norma jurídica a partir da interpretação de acordo com a Constituição, do controle de constitucionalidade e da adoção da regra do balanceamento (ou regra da proporcionalidade em sentido estrito dos direitos fundamentais do caso concreto)" [21]. Ora, essa mesma interpretação deve ser realizada também acerca das normas do processo. É possível, como vimos, no caso concreto, que determinada regra processual seja inconstitucional em razão do confronto com os direitos fundamentais processuais. Diante desta inconstitucionalidade circunstanciada, o juiz terá papel criativo também em torno de regras processuais, sob pena de aplicar lei inconstitucional no caso concreto violando direitos dos mais prestigiados em tempos hodiernos: direitos fundamentais (processuais). Neste sentido, nos ensina o Carlos Alberto Alvaro De Oliveira:

À luz dessas considerações, a participação no processo e pelo processo já não pode ser visualizada apenas como instrumento funcional de democratização ou realizadora do direito material e processual, mas como dimensão intrinsecamente complementadora e integradora dessas mesmas esferas. O próprio processo passa, assim, a ser meio de formação do direito, seja material, seja processual. Tudo isso se potencializa, quando se atenta em que o processo deve servir para a produção de decisões conforme a lei, corretas a esse ângulo visual, mas, além disso, dentro do marco dessa correção, preste-se essencialmente para a produção de decisões justas. [22]

Vale ressaltar, inclusive, que este tem sido o caminho de ordenamentos jurídicos estrangeiros ao preverem expressamente a possibilidade de o juiz adaptar o procedimento com objetivo de atender a finalidade do Processo: promoção da justiça! Neste sentido, exempli gratia, o Código de Processo Civil Português trouxe em seu artigo 265.º-A: (Princípio da adequação formal) quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, bem como as necessárias adaptações. Sugere-se, pois, de lege ferenda, norma semelhante com fito de promover uma maior segurança jurídica.

No exemplo citado da impossibilidade de manejo das provas por aquele a quem compete o ônus, a teoria da distribuição dinâmica da responsabilidade probatória parece solucionar tal porfia. Adotando essa noção na forma como o direito brasileiro está disciplinado, as regras do art. 333, CPC, seriam consideradas apenas uma norma geral o que não impede a sua mitigação – em razão da inconstitucionalidade circunstanciada – quando não for apta a realização do fim processual. Nesses casos, cumpre ao magistrado o poder de distribuir o ônus da prova para aquele que tiver melhores condições de produzi-las à luz do caso concreto. À obviedade, tal distribuição deve ser realizada em tempo hábil para desincumbir-se desta imposição judicial, caso contrário, haveria flagrante ofensa ao direito fundamental de participação e de influência na decisão (princípio do contraditório).


3. Princípio da Cooperação:

No Estado Constitucional de Direito, como já se viu, muito mais que princípios e garantias referentes ao processo estabelecidas na Constituição, existem verdadeiros direitos fundamentais processuais. Nesta senda, tais direitos devem ser interpretados da forma a maximizar sua efetividade e não restringi-los a um mínimo existencial. Conforme salientado, também, isso não impede, à luz do caso concreto, a mitigação de tais direitos em virtude da colisão com outros direitos fundamentais (devendo ser otimizados a fim de que ambos sejam aplicados na maior medida possível).

Nesta perspectiva, o contraditório, por exemplo, não pode ser visto mais como uma garantia minimalista de participação no processo. Direito fundamental que é, ele deve ser compreendido, além desse aspecto formal, numa visão substancial, ou seja, há de ser viabilizado o poder de influência [23]. Nessa concepção material, o princípio do contraditório é o fundamento para a cooperação e colaboração dos sujeitos processuais de modo que o próprio magistrado está submetido a tal garantia, obrigando-se a debater, dialogar.

Infere-se, portanto, da estrutura deontológica estatuída na Magna Carta o princípio da cooperação, impondo ao juiz uma postura dialética - destinatário que também é do contraditório. Sendo assim, o órgão jurisdicional, na condução do processo, atuará ao lado das partes, participando como colaborador.

Para atingir essa vertente cooperativa, o professor Daniel Mitidiero demonstra a evolução histórica da organização social e sua influência no papel atribuído à magistratura. Nesse diapasão, o autor esclarece que existiram três modelos em relação ao problema da divisão do trabalho entre o juiz e as partes. Elucida o autor que no primeiro momento – modelo paritário de organização social – havia "certa indistinção entre a esfera política, a sociedade civil e o indivíduo, de modo que o juiz (presentante do Estado, como diríamos em linguagem corrente) se encontra no mesmo nível das partes" [24]. Aqui, o juiz guiava o processo sem qualquer intervenção no âmbito jurídico das partes. Era o que ocorria, v.g., na experiência política grega e ítalo-medieval.

No paradigma hierárquico, por sua vez, existia "nítida distinção entre o indivíduo, sociedade e Estado (ou Império), estabelecendo-se uma relação vertical de poder entre esse e aquele. O juiz, nesse modelo hierárquico, vai alocar-se acima das partes." [25] Esse momento, outrossim, é marcado por um juiz autoritário e inquisitivo. Essa estrutura - num Estado, não só de Direito, mas, também, Democrático - não mais se sustenta plenamente. Como já ressaltado, os direitos fundamentais processuais impõem uma conduta cooperativa para o juiz. Embora nesse padrão colaborativo a distinção entre Estado, sociedade e indivíduo permaneça, a organização dessas relações é diferente.

Conforme enfatiza Mitidiero, neste Estado Constitucional se prestigia a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CF) no intuito de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I). "Daí a razão pela qual a sociedade contemporânea pode ser considerada ela mesma um empreendimento de cooperação entre os seus membros em vista da obtenção de proveito mútuo." [26] Neste paradigma atual, por conseguinte, o órgão jurisdicional assume dupla função: de um lado, tem uma posição paritária com ênfase dialética e, do outro, assimétrica na tarefa decisória.

Diante dessa postura do magistrado, submetendo-se também ao contraditório, a doutrina costuma trazer os deveres fundamentais do juiz. Sendo assim, deverá esclarecer suas dúvidas em relação a quaisquer postulações das partes (pedido, alegações etc.) – dever de esclarecimento -; consultar as partes sobre eventuais questões não levadas à apreciação – dever de consultar [27] -; deve, também, apontar eventuais equívocos nas postulações a fim de serem supridas – dever de prevenção -; por fim, existe ainda o dever de auxílio, ou seja, "o dever de auxiliar as partes na superação de eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de um ônus ou deveres processuais". [28]

Acentue-se, por evidente, que a teoria dinâmica da responsabilização probatória está em harmonia com essa nova vertente de enxergar o processo no cenário constitucional e imbuído pela realização da justiça. "Esse expediente (...) encontra-se em total consonância com a ideia de processo civil pautado pela colaboração, pressupondo mesmo para sua aplicação um modelo de processo civil cooperativo. Seu fundamento está na necessidade de velar-se por uma efetiva igualdade entre as partes no processo e por uma escorreita observação dos deveres de cooperação nos domínios do direito processual civil, notadamente do dever de auxílio do órgão jurisdicional para com as partes." [29]

Essa postura cooperativa, frise-se, é uma preocupação que não se restringe aos estudiosos do direito processual brasileiro. Muitos ordenamentos jurídicos, inclusive, positivaram norma expressando essa necessidade dialógica entre o juiz e as partes. Assim, por exemplo, Código de Processo Civil de Portugal o estabeleceu em seu art. 266, in verbis:

ARTIGO 266.º (Princípio da cooperação) 1. Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. 2. O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência. 3. As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n° 3 do artigo 519.º. 4. Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.

No mesmo sentido, estabelece o §139 da ZPO Alemã:

CONDUÇÃO MATERIAL DO PROCESSO. (1) O órgão judicial deve discutir com as partes, na medida do necessário, os fatos relevantes e as questões em litígio, tanto do ponto de vista jurídico quanto fático, formulando indagações, com a finalidade de que as partes esclareçam de modo completo e em tempo suas posições concernentes ao material fático, especialmente para suplementar referências insuficientes sobre fatos relevantes, indicar meios de prova, e formular pedidos baseados nos fatos afirmados. (2) O órgão judicial só poderá apoiar sua decisão numa visão fática ou jurídica que não tenha a parte, aparentemente, se dado conta ou considerado irrelevante, se tiver chamado a sua atenção para o ponto e lhe dado oportunidade de discuti-lo, salvo se se tratar de questão secundária. O mesmo vale para o entendimento do órgão judicial sobre uma questão de fato ou de direito, que divirja da compreensão de ambas as partes. (3) O órgão judicial deve chamar a atenção sobre as dúvidas que existam a respeito das questões a serem consideradas de ofício. (4) As indicações conforme essas prescrições devem ser comunicadas e registradas nos autos tão logo seja possível.Tais comunicações só podem ser provadas pelos registros nos autos. Só é admitida contra o conteúdo dos autos prova de falsidade. (5) Se não for possível a uma das partes responder prontamente a uma determinação judicial de esclarecimento, o órgão judicial poderá conceder um prazo para posterior esclarecimento por escrito. [30]

Não é diferente, por fim, o Côde de Procédure Civile Français que estabeleceu norma semelhante ao firmar, em seu art. 16, que "o juiz deve, em todas as circunstâncias, fazer observar e observar ele mesmo o princípio do contraditório; ele não pode considerar, na sua decisão, as questões, as explicações e os documentos invocados ou produzidos pelas partes a menos que estes tenham sido objeto de contraditório; não pode fundamentar sua decisão em questões de direito que suscitou de ofício, sem que tenha, previamente, intimado as partes a apresentar suas observações". Clarividente, portanto, a preocupação com o princípio da cooperação primando por uma atividade dialética entre partes e juiz. Neste sentido, no Brasil, posto que inexista norma expressa, sua ideia pode ser extraída dos demais direitos fundamentais processuais positivados na Constituição Federal, e.g., devido processo legal, inafastabilidade jurisdicional, contraditório, ampla defesa etc.

Sobre o autor
Marcel Santos Mutim

Advogado. Pós-graduando em Direito do Estado pelo JusPodivm e Faculdade Baiana de Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUTIM, Marcel Santos. Adaptabilidade, cooperação e ônus da prova: por uma teoria dinâmica da responsabilidade probatória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2604, 18 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17208. Acesso em: 25 dez. 2024.

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