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A questão da relativização da coisa julgada

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Agenda 23/08/2010 às 12:58

5. Apreciação crítica da teoria da relativização

Consoante o direito constitucional de ação, busca-se pelo processo a tutela jurisdicional adequada e justa. A sentença justa é o ideal – utópico – maior do processo. Para servir a esse ideal, há uma série de princípios e instrumentos, como o contraditório, a ampla defesa, o sistema de provas, enfim, todo um sistema, que pode ser enfeixado sob o princípio maior do devido processo legal. A justiça é, e sempre foi, indubitavelmente, uma grande preocupação dos estudiosos do direito processual.

Constitui, porém, valor não menos importante, e, como já destacado anteriormente, essencialmente ligado a uma concepção democrática de estado de direito, a segurança das relações sociais e jurídicas. E, nesse contexto, a coisa julgada material exsurge como verdadeiro elemento de existência, ou como na dicção de alguns mestres, é a pedra de toque da segurança jurídica.

A idéia, portanto, de relativização da coisa julgada, sugere, inevitavelmente, o embate entre esses dois valores máximos da organização social.

A tese contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por "justiça" e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da Filosofia do Direito acerca do tema. Aparentemente, parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberta por qualquer cidadão médio, o que a torna imprestável ao seu desiderato, por sofrer de evidente inconsistência.

É importante que se tenha em mente que o processo jurisdicional é método de construção da norma jurídica individualizada. A decisão judicial produz uma norma jurídica nova, não revela uma norma já existente. Essa nova regra jurídica é resultado de um procedimento cooperativo e organizado em contraditório, o que garante a participação democrática dos interessados na solução da lide. Não há uma "justiça" anterior ao processo, que deve ser encontrada ou descortinada pelo magistrado. [09] A justiça refere-se ao caso concreto e é sempre construída pelos sujeitos processuais em contraditório e cooperativamente. Esse método de obtenção da justiça parece, inquestionavelmente, ser o melhor até hoje inventado pelo gênio humano.

Condicionar a prevalência da coisa julgada, pura e simplesmente, à verificação da justiça da sentença significa golpear de morte o próprio instituto. Afinal de contas, poucas vezes a parte vencida se convence de que sua derrota foi justa. Se quiserem abrir-lhe sempre a possibilidade de obter novo julgamento, sob o único fundamento de que o anterior fora injusto, ter-se-á que suportar uma série indefinida de processos com idêntico objeto.

Como muito bem alertado por Didier Jr., "o processo garante-nos a certeza dos meios e a incerteza do resultado." [10] Esquecem os adeptos da corrente relativista que, tendo em vista a absoluta incerteza do direito litigioso, basta àquele que pretenda rediscutir a coisa julgada alegar que ela é injusta ou inconstitucional para que seja instaurado o processo. E, uma vez instaurado, seu resultado é incerto, pode o demandante ganhar ou perder.

Vê-se claramente, pois, que a possibilidade de o juiz simplesmente desconsiderar a coisa julgada diante de determinado caso concreto incentivará a eternização dos conflitos e contribuirá, inevitavelmente, para o abarrotamento do Judiciário e para a demora na solução dos litígios, representando, assim, construção que destoa completamente das atuais preocupações da doutrina contemporânea referentes à celeridade e efetividade da prestação jurisdicional.

Considerando a natureza humana e, especialmente, a cultura jurídica brasileira, é fundamental que a disciplina da vida social não fique entregue às mil e uma opiniões dos homens que a constituem nas suas recíprocas relações. Pelo fato de esses homens terem ou poderem ter opiniões e crenças opostas, é que a vida social tem necessariamente de ser disciplinada de uma maneira uniforme por uma força que se ache colocada acima dos indivíduos.

É óbvio que uma teoria que conseguisse fazer com que todos os processos terminassem com um julgamento justo seria o ideal. Mas, na sua falta, não há dúvida de que se deve manter a atual concepção da coisa julgada material, sob pena de serem cometidas injustiças muito maiores do que as pontuais e raras cogitadas pela doutrina relativista. [11]

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Há quem, como o professor Nelson Nery Jr., perceba no movimento relativista uma marcante inspiração ditatorial, registrando, inclusive, que Adolf Hitler assinou uma lei para intervenção do Ministério Público no Processo Civil, dando poderes ao parquet para dizer se a sentença seria justa ou não, se atendia aos fundamentos do Reich e do povo alemão. Caso entendesse pela negativa, poderia o órgão propor ação rescisória para que isso fosse reconhecido pelo Judiciário. Merecem, portanto, ser reproduzidas as reflexões do mestre sobre o tema:

"Interpretar a coisa julgada, se justa ou injusta, se ocorreu ou não, é instrumento do totalitarismo, de esquerda ou de direita, nada tendo a ver com democracia, com o estado democrático de direito. Desconsiderar-se a coisa julgada é ofender-se a Carta Magna, deixando de dar-se aplicação ao princípio fundamental do estado democrático de direito." [12]

De todas as propostas "relativizadoras", a do desembargador Cândido Rangel Dinamarco parece ser a mais articulada, procurando identificar os casos merecedores de tratamento especial recorrendo à acepção liebmaniana da coisa julgada, segundo a qual esta seria a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença. Como já dito em momento anterior, a essência de sua argumentação reside em que, incidindo a autoridade da coisa julgada sobre os efeitos substanciais da sentença, onde esses efeitos inexistam, inexistirá também a coisa julgada material. Versa o mestre, como visto, sobre as "impossibilidades jurídicas", referindo-se a decisões que, embora de mérito, não podem dar vazão a seus efeitos substanciais por contrariarem normas de nível superior.

Por mais sedutora que possa parecer a idéia, a sua aceitação esbarra em sérios óbices. Primeiro, parte de uma premissa complicada, já que, conforme demonstrado, nada há de consenso em torno da correta acepção de coisa julgada. Independentemente dos equívocos dogmáticos que se possa apontar na proposição de Liebman, o fato é que o Código de Processo consagrou acepção diversa, consoante já demonstrado, o que fragiliza, sobremaneira, a tese de Dinamarco.

Além disso, discorrendo sobre as impossibilidades jurídicas, o ilustre autor lança mão de exemplos bastante pitorescos, como sentenças que declarassem o recesso de algum Estado brasileiro, ou que condenassem uma pessoa a dar a outrem, em cumprimento de cláusula contratual, determinado peso de sua carne, em conseqüência de dívida não honrada, dentre outros, igualmente esdrúxulos. Este último, retirado da obra de Shakespeare, "O Mercador de Veneza", que fora, inclusive, brilhantemente copiado e adaptado pelo genial Ariano Suassuna em uma de suas obras-primas, "O Auto da Compadecida", evidencia o caráter irreal e fantasioso dos exemplos, o que finda por denotar a fragilidade da tese em si.

Não se pode teorizar o absurdo casuístico e pontual, ou seja, situações particulares absurdas não podem gerar teorizações, que são sempre abstratas, exatamente porque excepcionais. Simplesmente porque o absurdo pode acontecer não vale a pena criar uma cláusula geral de revisão atípica da coisa julgada.

Como se vê, a aceitação da desconsideração indiscriminada da autoridade da coisa julgada, ou seja, à revelia dos instrumentos processuais e prazos previstos em lei, dá ensejo a uma perigosa crise de segurança e certeza jurídicas, o que se reflete, inevitavelmente, em instabilidade das relações sociais. Parece estar com a razão, portanto, o professor José Carlos Barbosa Moreira, crítico ferrenho das idéias relativizadoras, que pontua, com a percuciência que lhe é peculiar:

"A segurança das relações sociais exige que a autoridade da coisa julgada, uma vez estabelecida, não fique demoradamente sujeita à possibilidade de remoção. Ainda quanto às sentenças eivadas de vícios muito graves, a subsistência indefinida da impugnabilidade, incompatível com a necessidade da certeza jurídica, não constituiria solução aceitável no plano da política legislativa, por mais que em seu favor se pretendesse argumentar com o mal que decerto representa a eventualidade de um prevalecimento definitivo do erro. O legislador dos tempos modernos, aqui e alhures, tem visto nesse o mal menor. Daí a fixação de prazo para a impugnação; decorrido certo lapso de tempo, a sentença torna-se imune a qualquer ataque. É o que acontece na generalidade dos ordenamentos contemporâneos." [13]

É preciso reconhecer, contudo, em tempo, a singularidade do caso das ações investigatórias. Não se pode desprezar, no contexto da presente discussão, os novos paradigmas ditados pelos avanços tecnológicos no que tange às ações de filiação.

Diante do desenvolvimento do exame de DNA, que permite, com precisão, a determinação da paternidade, a partir das influências genéticas, os estudiosos do processo se viram na contingência de repensar o instituto da coisa julgada. A possibilidade de se constatar, por critérios científicos, e, portanto, objetivos, erros cruciais em sentenças envolvendo o estado das pessoas, eternizadas pela imutabilidade decorrente do trânsito em julgado, fomentou (e fomenta) importantes debates sobre o tema.

Se antes as ações de investigação de paternidade eram julgadas com base em indícios relacionados ao quotidiano das partes envolvidas e ilações feitas ao longo da instrução, em semelhanças físicas, enfim, com inegável apoio na impressão pessoal do juiz, com o advento do exame genético, a questão tornou-se extremamente objetiva.

Bem ilustra as distorções encontradas nas demandas em comento um dos incríveis casos narrados por Sidney Sheldon em uma de suas obras de ficção, "A Ira dos Anjos". No livro, a protagonista, a advogada Jennifer Parker, constituída pelo infante em uma ação investigatória, percebendo, ao longo da audiência, a mania que tinha o suposto pai de passar a língua sobre os lábios, em um intervalo da sessão passou óleo de groselha na boca da criança, que, dali em diante, inevitavelmente, passou a repetir, incessantemente, o curioso movimento da língua, tal qual o réu. Resultado: a ação foi julgada procedente.

Assim, em meio à doutrina relativista, ganhou espaço a idéia segundo a qual as ações de filiação não podem ficar emolduradas nas estreitas latitudes da coisa julgada regulada pelo CPC. Passou-se a defender, pois, que, se a intangibilidade da coisa julgada quedara mitigada nas ações coletivas, com muito maior razão deve ser relativizada nas ações filiatórias. [14]

Consideradas, portanto, as peculiaridades das ações filiatórias, é mister afirmar que a coisa julgada nelas se dará sob a técnica secundum eventum probationes. Ou seja, a coisa julgada se forma a depender do resultado da produção probatória, identicamente ao que se tem nas ações coletivas.

Nessa linha de raciocínio, não se cogita sequer da necessidade de ajuizamento de ação rescisória, uma vez que se parte da premissa de que a decisão judicial, em casos tais, que não exaurir os meios de prova, simplesmente não passa em julgado, afastando-se, assim, do manto da coisa julgada.

A idéia discrepa do pensamento de Marinoni, que, embora seja um dos mais convictos críticos da teoria da relativização da coisa julgada, reconhece a peculiaridade existente nas ações filiatórias, mas propõe solução diversa, preocupado em não extravasar os limites e hipóteses descritos em lei para a revisão de casos passados em julgado. Sugere o mestre paranaense, desta feita, a adequação do caso a uma das hipóteses de cabimento da ação rescisória, qual seja, a obtenção de "documento novo", pontuando que "nos casos em que a investigação de paternidade ocorreu na época em que o exame de DNA ainda não existia, não há dúvida que o laudo de DNA pode ser equiparado a um documento novo." [15] Deparando-se com o problema do prazo decadencial, o autor propugna por uma intervenção legislativa no art. 485 do CPC, a fim de disciplinar esse caso peculiar, e conclui afirmando que, no estado atual das coisas, a sentença de ação de investigação de paternidade pode ser rescindida a partir de prazo contado da ciência da parte vencida sobre a existência do exame de DNA.

Observa-se, portanto, que, mesmo entre os autores mais resistentes à proposta de relativização, há preocupação no que tange ao caso particular das ações relativas a filiação.

Destarte, exceção feita ao caso do laudo de DNA, que se insere em um contexto particular, permeado pela objetividade, a idéia de se criar uma cláusula aberta de revisão da coisa julgada parece encontrar sérios obstáculos e resta bastante fragilizada quando submetida a uma análise mais minuciosa, além de representar, em certa medida, um grande perigo para a paz social.


Notas

  1. MOREIRA, José Carlos Barbosa. "Considerações sobre a chamada ‘relativização’ da coisa julgada material." Revista Dialética de Direito Processual, v. 22, p. 91-92.
  2. DELGADO, José. "Pontos polêmicos das ações de indenização de áreas naturais protegidas – Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais". Revista de Processo. São Paulo: RT, 2001, n. 103.
  3. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. "A concretização da Constituição pelo Legislador e pelo Tribunal Constitucional." Nos dez anos da Constituição. Lisboa: 1987, p.357.
  4. DINAMARCO, Cândido Rangel. "Relativizar a coisa julgada material." Revista de Processo. São Paulo: RT, 2003, n. 109.
  5. THEODORO JR., Humberto. "O Tormentoso Problema da Inconstitucionalidade da Sentença Passada em Julgado". Relativização da Coisa Julgada – Enfoque Crítico. Salvador: JusPODIVM, 2006.
  6. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 556.
  7. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. São Paulo: RT, 2003, p.35.
  8. DINAMARCO, Cândido Rangel. "Relativizar a coisa julgada material." Revista de Processo. São Paulo: RT, 2003, n. 111.
  9. Ob. Cit. p. 507.
  10. Ob. Cit. p. 508.
  11. MARINONI, Luiz Guilherme, e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 5ª edição. São Paulo: RT, 2006, p. 681.
  12. Ob. Cit. p. 48.
  13. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1999, vol. 5, p. 214.
  14. FARIAS, Cristiano Chaves de. "Um alento ao futuro: novo tratamento da coisa julgada nas ações relativas à filiação." Relativização da Coisa Julgada – Enfoque Crítico. Salvador: JusPODIVM, 2006.
  15. Ob. Cit. p. 674.
Sobre o autor
Gustavo Leonardo Maia Pereira

Procurador Federal em exercício na Coordenação de Tribunais Superiores da Procuradoria-Geral Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Especialista em Direito Processual Civil. Ex-Procurador do Estado de Goiás. Ex-Coordenador de Tribunais Superiores da PGF/AGU. Ex-Assessor Legislativo da Secretaria-Geral da Presidência da República. Ex-Chefe Adjunto da Assessoria Jurídica junto à Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Gustavo Leonardo Maia. A questão da relativização da coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2609, 23 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17242. Acesso em: 5 nov. 2024.

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