1.INTRODUÇÃO
Tem-se observado, nos últimos vinte anos, uma verdadeira celeuma em torno de uma fórmula legislativa para restringir o direito aos benefícios previdenciários, em especial à possibilidade de sua revisão judicial.
Os debates no âmbito governamental – quase sempre abalizados na tese de que a Previdência Social é um fundo econômico [01] que precisa preservar um relativo grau de certeza em suas relações e que, por isso, não deve sofrer ingerências externas praticadas, sobretudo, pelo Judiciário – sofrem constantemente de uma profunda crise de identidade que se renova cada vez que se aproxima o fatídico termo final do prazo decadencial fixado em lei.
Receosos em desagradar os beneficiários que desde sempre gozaram do direito de revisar seus benefícios, mesmo que concedidos há anos, e sabedores de que a legislação previdenciária é de difícil acesso a grande maioria da população, os nossos legisladores procuram estender o prazo decadencial previsto na lei sempre que se aproxima a data de seu limite, obrigando nossos tribunais a um esforço interpretativo acerca do alcance dessas contra-medidas.
Recentemente, a Turma Nacional de Uniformização, órgão jurisdicional responsável pela centralização e padronização das decisões no âmbito dos Juizados Especiais Federais, tem se inclinado em admitir a regra da decadência previdenciária com base nos seguintes argumentos:
PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE BENEFÍCIO. APLICABILIDADE DO PRAZO DECADENCIAL DO ART. 103 DA LEI Nº 8.213/1991 AOS BENEFÍCIOS ANTERIORES E POSTERIORES À EDIÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.523- 9/1997. POSSIBILIDADE.
1. Tomando, por analogia, o raciocínio utilizado pelo STJ na interpretação do art. 54 da Lei 9.784/99 (REsp n° 658.130/SP), no caso dos benefícios concedidos anteriormente à entrada em vigência da medida provisória, deve ser tomado como termo a quo para a contagem do prazo decadencial, não a DIB (data de início do benefício), mas a data da entrada em vigor do diploma legal.
3. Em 01.08.2007, 10 anos contados do "dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação" recebida após o início da vigência da Medida Provisória nº 1.523-9/1997, restou consubstanciada a decadência das ações que visem à revisão de ato concessório de benefício previdenciário instituído anteriormente a 26.06.1997, data da entrada em vigor da referida MP.
3. Pedido de Uniformização conhecido e provido
(Turma Nacional de Uniformização, PU. n 2008.72.50.002989-6. Rel. p/ Acórdão: Otávio Port DJ: 24/06/2010)
E M E N T A PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE BENEFÍCIO. APLICABILIDADE DO PRAZO DECADENCIAL DO ART. 103 DA LEI Nº 8.213/1991 AOS BENEFÍCIOS ANTERIORES E POSTERIORES À EDIÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.523-9/1997. POSSIBILIDADE.
1. A Turma Nacional de Uniformização, na sessão realizada em 08.02.2010, no julgamento do PEDILEF nº 2006.70.50.007063-9, entendeu ser aplicável o art. 103 da Lei nº 8.213/1991 à revisão de todos os benefícios previdenciários, sejam eles anteriores ou posteriores à Medida Provisória nº 1.523-9/1997.
2. Tomando, por analogia, o raciocínio utilizado pelo STJ na interpretação do art. 54 da Lei 9.784/99 (REsp n° 658.130/SP), no caso dos benefícios concedidos anteriormente à entrada em vigência da medida provisória, deve ser tomado como termo a quo para a contagem do prazo decadencial, não a DIB (data de início do benefício), mas a data da entrada em vigor do diploma legal.
3. Em 01.08.2007, 10 anos contados do "dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação" recebida após o início da vigência da Medida Provisória nº 1.523-9/1997, operou-se a decadência das ações que visem à revisão de ato concessório de benefício previdenciário instituído anteriormente a 26.06.1997, data da entrada em vigor da referida MP.
4. Pedido de Uniformização conhecido e não provido
(Turma Nacional de Uniformização, TNU. PU. 200851510445132. Rel. Joana Carolina Lins Pereira. DJ: 11/06/2010)
Como se vê, a análise da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, tomando por base um raciocínio empregado pelo Superior Tribunal de Justiça, leva em consideração a data de entrada em vigor da Medida Provisória nº 1.523-9/1997 para determinar o dies a quo do prazo decadencial, em nenhum momento discorrendo sobre o conteúdo material dessa medida legislativa.
A Jurisprudência que vem se formando, porém, tem uma visão perfunctória do direito ao benefício previdenciário e não se preocupa em debater a real dimensão do direito que se pretendeu restringir.
À primeira vista, parece lógico o argumento adotado pelos arestos acima citados, mas essa exegese não resiste a um olhar mais apurado do hermeneuta preocupado com o respeito a direitos reconhecidamente fundamentais do segurado.
Sendo assim, analisar-se-á, no presente artigo, o verdadeiro alcance das medidas legislativas de imposição de um prazo decadencial sobre o direito ao benefício previdenciário, não a partir da superficialidade da lei ou mesmo da Jurisprudência ainda tão empobrecida sobre o tema, mas tomando por base a natureza jurídica dos institutos mencionados, sem olvidar a interpretação constitucional mais consentânea com os princípios de Direito Público com que se envolve, necessariamente, a matéria.
II-DECADÊNCIA PREVIDENCIÁRIA E INTERPRETAÇÃO
O centro de toda a polêmica em torno da decadência previdenciário está, inegavelmente, no artigo 103 da Lei nº 8.213/91, que sofreu diversas modificações nos últimos anos, diminuindo ou aumentando o prazo de decadência do direito ao benefício previdenciário. O dispositivo está assim redigido atualmente:
Art. 103. É de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo. (Redação dada pela Lei nº 10.839, de 2004)
Referido dispositivo tinha a seguinte redação originalmente:
Art. 103. Sem prejuízo do direito ao benefício, prescreve em 5 (cinco) anos o direito às prestações não pagas nem reclamadas na época própria, resguardados os direitos dos menores dependentes, dos incapazes ou dos ausentes.
Nada dispunha sobre a Decadência do direito ao benefício previdenciário, apenas se referindo às parcelas resultantes da revisão ou concessão administrativa e judicial, em nítida referência ao instituto da prescrição qüinqüenal previdenciária.
Mas até que ponto a legislação tem liberdade para atuar extinguindo direitos ou mesmo limitando o seu gozo? Deve-se observar que a grande maioria dos estudos acerca dos institutos da prescrição e da decadência toma por base as técnicas tradicionais de interpretação de origem tipicamente civilista e que, em tempos de constitucionalização dos direitos, necessita ser revista, se não pelo seu contato direto (em boa parte dos casos em visível confronto) com princípios constitucionais, com certeza pela necessidade de uma interpretação consentânea com os objetivos do Estado e da própria sociedade.
A restrição às ‘regras de interpretação tradicionais’ não compreende o objetivo da interpretação constitucional; ela deixa a estrutura interna e as limitações do procedimento de interpretação, em grande medida, de lado e pode, por conseguinte, também só limitadamente vencer a tarefa da interpretação exata segundo princípios firmes. [02]
Diz-se isso em razão do auge da doutrina civilista coincidir com um período de liberalismo exacerbado, que eximiu, durante longos anos, o Estado de seu importante papel social, o que não se coaduna com a concretização de direitos sociais, que se pretendeu efetiva com a criação, em grande parte dos países, de um sistema de proteção previdenciária estatal elevado a nível constitucional, merecendo, pois, interpretação especial.
Preceito preliminar e fundamental da Hermenêutica é o que manda definir, de modo preciso, o caráter especial da norma e a matéria de que é objeto, e indicar o ramo de direito a que a mesma pertence, visto variarem o critério de interpretação e as regras aplicáveis em geral, conforme a espécie jurídica de que se trata...As disposições de Direito Público se não interpretam do modo que as do Direito Privado; e em um e outro ainda os preceitos variam conforme o ramo particular a que pertencem as normas: os utilizáveis no Constitucional diferem dos empregados no Criminal; no Comercial não se procede exatamente como no Civil, e, no seio deste, ainda a exegese dos contratos e das leis excepcionais se exercita mediante regras especiais. [03]
A partir da segunda metade do século XX, com o final da Segunda Guerra Mundial, passou-se a se questionar principalmente em Direito Público o não reconhecimento da importância do estudo dos valores na Ciência do Direito e a existência de valores de conteúdo inquestionável, não em razão da condição natural do ser humano – como pretendia a Escola do Direito Natural –, mas em virtude da evolução da racionalidade humana que tornou inequívoca a necessidade de proteção da liberdade, da igualdade e da própria democracia.
Talvez por se tratar de uma matéria relativamente recente na doutrina jurídica pátria – vez que até pouco tempo não se tinha determinado se o seu estudo era afeito ao Direito Constitucional ou ao Direito do Trabalho – ou mesmo devido à dificuldade de estabelecer, na Jurisprudência, uma teoria verdadeiramente material da Constituição, a práxis jurídica tem, não raras vezes, desprestigiado a força dos princípios constitucionais em geral e, no caso específico os Princípios de Direito Previdenciário, deixando-os, na grande maioria das vezes, à mercê da interpretação dada pelo legislador ordinário, invertendo-se o sistema de forças das normas constitucionais.
As condições dessa interpretação, contudo, merecem atenção especial e é o que se pretende realizar no tópico seguinte.
III-A QUEM SE APLICA O BROCARDO DORMIENTIBUS NON SUCCURRIT JUS?
Se o Direito não socorre aqueles que dormem, resta indagar: o silencio do beneficiário é mais ou menos importante que a responsabilidade do Estado em promover a proteção previdenciária?
Convém lembrar que a decadência não atinge diretamente o direito de pleitear judicial ou administrativamente o benefício previdenciário ou de rever o ato de concessão, mas sim o próprio direito material ao benefício, o que, via de conseqüência, impede o exercício do direito de ação [04].
Assim, ao regulamentar a Decadência previdenciária, o legislador, em verdade, atinge diretamente o direito material ao benefício, não o direito de ação. Para este já existe o instituto da Prescrição, que, conforme Jurisprudência consolidada no país, não atinge o "fundo de direito", mas apenas as parcelas anteriores aos cinco anos que antecedem o ajuizamento da Ação Judicial.
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. VALOR DO BENEFÍCIO REDUZIDO. RELAÇÃO DE TRATO SUCESSIVO. DECADÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 85/STJ. AGRAVO IMPROVIDO.
1. Ao ato administrativo que, em última análise, reduz benefício de índole previdenciária, pode ser aplicável a teoria do trato sucessivo, cujo prazo decadencial para a impetração da ação mandamental se renova periodicamente, não havendo que se falar em negativa do fundo de direito. Incidência do enunciado sumular nº 85/STJ.
2. Agravo regimental improvido.
(AgRg no Ag 942.602/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 01/06/2010, DJe 21/06/2010)
PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DA RENDA MENSAL INICIAL. PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. NÃO OCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 85/STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
I - Em se tratando de retificação de renda mensal inicial, não há a prescrição do fundo de direito, mas somente das parcelas vencidas há mais de cinco anos, contados do ajuizamento da ação. Inteligência da Súmula 85/STJ.
II - Agravo interno desprovido. (AGA 200700292063, GILSON DIPP, STJ - QUINTA TURMA, 06/08/2007)
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL EX-CELETISTA. CONTAGEM TEMPO DE SERVIÇO. ATIVIDADE INSALUBRE. POSSIBILIDADE. PRESCRIÇÃO. FUNDO DE DIREITO. INOCORRÊNCIA. SÚMULA 85/STJ.
I - Em se tratando de ação proposta com o fito de obter revisão de benefício previdenciário, relação de trato sucessivo e natureza alimentar, a prescrição que incide é aquela prevista na Súmula 85/STJ: "Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura da ação.". Inocorrência da chamada prescrição do fundo de direito.
II - O servidor público ex-celetista tem direito a que seja averbado em sua ficha funcional o tempo de serviço que prestara no regime anterior, em condições nocivas à saúde, com o acréscimo legal decorrente da insalubridade. Precedentes. Agravo regimental desprovido.
(AGA 200601921530, FELIX FISCHER, STJ - QUINTA TURMA, 06/08/2007)
O "fundo de direito" a que se referem os magistrados nada mais é do que o direito material ao próprio benefício, devendo este se manter intacto, mesmo após superado o prazo prescricional. Esse raciocínio se deve ao fato de que, na época da formação do entendimento, não se discutia a decadência em matéria previdenciária, por inexistência completa de previsão legal.
Mas, com a regulamentação do artigo 103 supra-citado pela nona edição da Medida Provisória nº1.523/1997, a questão passou a ser debatida nos tribunais brasileiros com muito maior ênfase, culminando nas decisões já citadas no presente artigo.
Acontece que, como se pode perceber, a interpretação do referido dispositivo tomou um caminho inverso ao de se averiguar a validade jurídica da instituição da decadência previdenciária, se concentrando apenas na determinação do termo inicial e final prazo decadencial, segundo regras hermenêuticas de aplicação retroativa ou não da norma que o instituiu.
Neste momento propõe-se outro nível de discussão: a possibilidade de se instituir prazo de decadência sobre o benefício previdenciário segundo a natureza jurídica do instituto e do próprio benefício.
Quer-se, portanto, nesse aspecto, avaliar as condições de caducidade do direito ao benefício, não apenas levando em consideração sua constitucionalidade, mas, sobretudo, sua própria natureza jurídica, posto que a Constituição não inaugura os valores instituídos pelo Direito que a ela precede, devendo, o julgador, se cercar de cautela na utilização de uma interpretação restritiva a direitos considerados fundamentais.
É cediço que o ordenamento como um todo deve obediência a princípios (valores) que lhe são maiores, não apenas aqueles instituídos pelo Poder Constituinte, uma vez que uma norma constitucional não deve ser produzida fora do contexto histórico do constitucionalismo moderno [05].
Ciente dessa condição, não se pode afirmar a natureza jurídica de qualquer instituto sem antes proceder a um escorço histórico acerca do mesmo.
O benefício previdenciário, como é sabido, não se constitui em mero proveito econômico em favor do segurado da previdência social, por este ter nela investido. Ele se convola, isto sim, em política pública estatal de proteção ao trabalhador em situação de vulnerabilidade (morte, invalidez, idade avançada, desemprego, etc) sempre que presentes as condições previstas em lei.
Mas, ao contrário de uma política pública originada do exercício legítimo da discricionariedade administrativa, esse benefício é a consubstanciação do dever estatal de proteção ao trabalhador, erigido, portanto, a categoria de Direito Humano de 2ª Dimensão, ou de matriz social. Nesse sentido, oportuna a observação de Konrad Hesse sobre a obrigatoriedade estatal e limitação da atuação do legislador no que concerne aos direitos fundamentais sociais, dentre os quais podemos mencionar o direito à proteção previdenciária.
Garantias de tal índole (direitos fundamentais sociais) como, por exemplo, o direito ao trabalho, a uma remuneração adequada ou o direito a habitação, são, todavia, de estrutura totalmente diferente como aquela dos direitos fundamentais clássicos. Eles não se deixam realizar já por eles serem organizados, respeitados e protegidos, senão pedem ações estatais para a realização do programa social contido neles, que requerem regularmente um tornar-se ativo não só do legislador, mas também da administração...Ao fim e ao cabo, direitos fundamentais sociais mal se diferenciam, por isso, de determinações de objetivos estatais, isto é, normas constitucionais que determinam obrigatoriamente tarefas e direção da atuação estatal, presente e futura. Os estabelecimentos de objetivos fixados jurídico-constitucionalmente obtém, com isso, primazia sobre estabelecimentos de objetivos políticos; nisso, a liberdade conformadora do legislador é restringida. [06]
Nesse sentido, a ordem para o estabelecimento de uma ação estatal dessa espécie (vinculativa) poderia advir de dois "senhores": a) da lei em sentido amplo, observada a importância dos objetivos pré-determinados constitucionalmente ou b) da esfera jurídica internacional, na forma de direito cogente internacional (jus cogens).
Em que pese todas as denominações e formas jurídicas adotadas por cada Estado, o benefício previdenciário tem sua gênese sempre em duplo estatuto. Diz-se isso em razão desse instrumento de proteção encontrar assento tanto no ordenamento internacional, na forma de norma cogente que obriga os estados a garantirem, permanentemente, a segurança social necessária a manutenção do padrão de vida do trabalhador em caso de infortúnio, como nos ordenamentos jurídicos estatais, muitas das vezes inserta na própria Constituição do Estado entre os direitos e garantias fundamentais, como ocorre no Brasil, não sendo possível saber, até pela história de anos de luta da classe trabalhadora e desenvolvimento paralelo dos ordenamentos internos, que diploma sucedeu ao outro, se o internacional ou o nacional.
Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 proclama a segurança social em diversas passagens, deixando ao direito de cada país a forma de estabelecimento dessa proteção ao infortúnio:
Artigo XXII
Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
Ainda, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, reafirma a importância da proteção através da Previdência Social, ressaltando os limites de atuação estatal na restrição a esses direitos:
Art. 5º - 1. Nenhuma das disposições do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou de praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhes limitações mais amplas do que aquelas nele previstas.
2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer país em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob o pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.
Art. 9º - Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social.
Dessa forma, ao impor restrições ao legítimo exercício de revisão dos benefícios previdenciários por parte do segurado, o legislador está, em verdade, limitando o gozo do direito à proteção previdenciária segundo a realidade de sua contribuição e, consequentemente, de seu padrão de vida. No momento em que o segurado pleiteia a revisão de seu benefício ele o faz porque necessita provar que o Estado, que se obrigou internacionalmente em prover da forma mais ampla possível a proteção previdenciária, não cumpriu com o seu papel institucional da forma que devia, violando a Carta Magna dos Direitos Humanos e, portanto, o direito cogente internacional.
Não é demais lembrar que a decadência atinge justamente o direito material ao benefício previdenciário, que, como visto, se constitui em desdobramento óbvio da concretização de um Direito Fundamental [07] previsto em Convenções Internacionais e que, ressalte-se, não prevêem essa limitação ao seu exercício.
Por outro lado, nossa Constituição recepcionou com mesma intensidade o direito à ampla proteção previdenciária, consubstanciando, entre os Princípios da Previdência Social, a manutenção do "valor real" do benefício.
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a
§ 4º É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios definidos em lei
Apesar de fazer referência à forma da lei, isso não quer dizer que o valor real não deve ser mantido quando a lei assim determinar, mas sim que o critério de reajustamento deve estar definido em lei e que este critério não pode dissociá-lo da realidade.
Assim, a realidade do benefício não pode ser, em momento nenhum, uma realidade distorcida, fora daquilo que prevê a lei e a própria Constituição, garantindo, dessa forma, o direito de revisar, em caráter permanente, o benefício sempre que este esteja dissociado da realidade do valor ou da atividade exercida pelo trabalhador.
Dessa forma, se, por exemplo, um beneficiário da Previdência Social recebe, durante 15 anos, um benefício que corresponde à metade do que deveria receber por erro da Administração, o Estado tem o dever de corrigi-lo, mesmo de ofício, pois, do contrário, estaria descumprindo uma ordem constitucional de preservação permanente da incolumidade do benefício, e violando, não somente um Direito Fundamental do cidadão, mas, também, um dever do Estado brasileiro perante seus pares em âmbito internacional.
Ainda como forma de exemplificar a gravidade de se estabelecer limites ao gozo de um direito fundamental social, pode-se analisar, mutatis mutandis, a situação de um aposentado que, desde o início de sua aposentadoria, recebeu um benefício de valor menor que um salário mínimo.
Ora, é cediça a regra constitucional que eleva à condição de direito fundamental social o salário mínimo estabelecido no país, mas, quanto a isso, não se discute a existência de prazo decadencial para a revisão do benefício, pois a violação a esse importante direito fundamental se renova a cada vez que o beneficiário vai ao caixa sacar o benefício. Ao contrário, a persistir o entendimento que corrobora a decadência previdenciária prevista em lei, também nesse caso estaríamos impedindo o gozo de um direito fundamental social com base em uma norma de menor status, olvidando os princípios constitucionais, em especial os princípios previdenciários.
Não é demais lembrar que a importância dos princípios em geral (não somente os previdenciários) no pensamento jurídico contemporâneo acontece na mesma medida em que a Constituição se desenvolve como elemento fundante de todo o sistema jurídico hierarquizado e, também, como repositório de valores sociais erigidos à categoria de direitos fundamentais do homem, da sociedade e do próprio Estado.
Devido à importância desse diploma para a sociedade democrática, tornou-se necessário conceber a Constituição não apenas do ponto de vista programático, como um protocolo privilegiado de intenções voltado ao governo do Estado sem intenção de concretização imediata. Deve-se, isto sim, tê-la à disposição do cidadão para, através dos instrumentos sociais admitidos pelo ordenamento (que não são apenas judiciais), realizar suas necessidades vitais, ou seja, deve a Constituição e seus princípios serem instrumento efetivo de realização plena dos direitos tidos como fundamentais, não se admitindo a restrição fora dos limites que impõe a própria interpretação, como fez o legislador ordinário ao instituir prazo decadencial previdenciário.
A interpretação da norma constitucional sob as condições impostas pela esfera internacional e suas normas cogentes leva à conclusão insofismável que o equilíbrio da relação entre Estado-provedor e pessoa do segurado reside na garantia permanente de um benefício consentâneo com a manutenção do padrão de vida do segurado (como dispõe o já citado artigo 201, §4º da Constituição Federal de 1988) e que, por se tratar de matéria de ordem pública e dever do Estado, não deve sobre ele recair o instituto da decadência.
IV-CONCLUSÃO
Portanto, ao impor uma restrição ao exercício de um direito material previsto em Convenções internacionais de Direitos Humanos, o legislador olvida o compromisso brasileiro de dar ampla eficácia ao exercício desse direito, desprestigiando valores previstos nessas mesmas convenções.
Por outro lado, o estabelecimento, por lei, da decadência previdenciária viola frontalmente o princípio constitucional previdenciário de preservação permanente do valor real do benefício (com previsão expressa no artigo 201, §4º da Constituição Federal de 1988), norma que se constitui em direito fundamental social do beneficiário da Previdência Social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pág. 60.
MAXIMILIANO. Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes Editora, 2009.
The World Bank. Averting the old age crisis: Policies to protect the old and promote growth. EUA: Oxford University Press, 1994.
Notas
- Argumento que ganhou força após a edição, pelo Banco Mundial e Universidade de Oxford, em setembro de 1994, do informe intitulado Averting the old age crisis: Policies to protect the old and promote growth, que propunha a substituição, nos países que o aplicam, do sistema solidário ou de repartição, para o sistema de capitalização.
- HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pág. 60.
- MAXIMILIANO. Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, pág. 303.
- Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, pág. 519-522.
- Nesse sentido e, em interessante abordagem sobre o âmbito das Constituições nacionais no cenário internacional, vide: NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes Editora, 2009.
- HESSE, Konrad. Op cit.,pág. 170-171.
- A expressão "Direitos Fundamentais" substitui de forma satisfatória o conceito de "Direitos Humanos", sendo aquela a designação mais adotada por juristas de escólio, que seguem os ensinamentos do Direito Público alemão (Andreas Krell, Paulo Bonavides, entre outros) .