O Superior Tribunal de Justiça, no dia 30 de março de 2009, editou o enunciado 375 da sua Súmula de Jurisprudência dominante, cujo teor é o seguinte:
- DJe 30/03/2009 - O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.STJ Súmula nº 375
Não foram poucos os doutrinadores que receberam com bons olhos o posicionamento do STJ, positivamente impressionados com a proteção dada por esta Colenda Corte ao adquirente de boa-fé de um bem do executado, em detrimento do credor exeqüente.
No entanto, como se pretende demonstrar a seguir, o enunciado não está imune a críticas.
Com efeito, a redação da súmula, quando confrontada com os dispositivos do CPC que tratam do assunto, causa certa perplexidade. Da mesma forma, a feição dada à fraude à execução pelo STJ parece ir de encontro às tradicionais lições de civilistas e processualistas quando diferenciavam este instituto da fraude contra credores e da alienação de bem penhorado.
Ora, como a fraude contra credores é um vício social do negócio jurídico que precede o ajuizamento de uma ação, os requisitos para sua caracterização sempre foram mais rígidos do que aqueles necessários para a configuração da fraude à execução, pois neste caso já há procedimento judicial em curso contra o suposto devedor.
Tendo isso em vista, é cediço o ensinamento de que na fraude contra credores haveria a necessidade da presença de dois elementos, quais sejam:
a)Eventus damni (elemento objetivo), que é aquele que pode levar o devedor ao estado de insolvência;
b)Concilium fraudis (elemento subjetivo), entendido como o conluio entre o alienante e o adquirente no negócio jurídico que pudesse levar o primeiro à insolvência.
Preliminarmente, deve ficar assentado que o CC/02, inteiramente informado pela boa-fé objetiva e pelo princípio da confiança, mudou o perfil do citado instituto.
Com efeito, o art. 159 do Diploma Substantivo dispõe que, para que seja anulável o negócio jurídico, basta que a insolvência seja notória ou perceptível, dispensando a má-fé, e, portanto, o concilium fraudis. Satisfaz-se o legislador com a perceptibilidade da situação pelo adquirente, pois isso demonstra que este não cumpriu o dever anexo de cuidado, oriundo da boa-fé objetiva, incorrendo, portanto, no que se denomina violação positiva do contrato.
Não causa espécie a postura do novel legislador, eis que, como se sabe, a boa-fé objetiva demanda um padrão ético de conduta, em oposição à boa-fé subjetiva, que se tratava de um estado psicológico de ignorância do ilícito cometido.
Assentada essa premissa, e partindo para a análise da fraude à execução, percebe-se que a lição clássica em relação a esta sempre foi apartá-la da fraude contra credores com base na desnecessidade do elemento subjetivo, qual seja, o conluio entre o devedor executado e o terceiro adquirente.
Isso se devia ao fato de que a existência de uma ação executória pendente contra o devedor, baseada em um título executivo judicial ou extrajudicial, é indicativa de grande probabilidade de derrota, hipótese na qual o credor exeqüente deveria ser mais eficazmente protegido contra fraudes que dilapidassem o patrimônio do executado.
Portanto, a partir do momento em que o enunciado sumular comentado exige a má-fé do adquirente (má-fé que, sabidamente, contrapõe-se à concepção subjetiva de boa-fé), está exigindo requisitos mais rígidos para a fraude à execução do que o CC/02 exige para a fraude contra credores (apenas a perceptibilidade), subvertendo a lógica dos institutos.
E este não é o único ponto a merecer reparos.
Veja-se que o marco inicial para a configuração da fraude contra credores sempre foi considerado, de forma majoritária, a citação para a demanda que podia reduzir o devedor à insolvência, pois este é o momento em que ele toma ciência da mesma. Neste sentido o art. 593, II, do CPC.
No entanto, o legislador reformista do CPC inseriu neste Diploma o art. 615-A. O dispositivo tinha o claro objetivo de não deixar a descoberto o período que ia do ajuizamento da demanda à efetivação da citação, de forma que se o exeqüente averbasse no registro competente a certidão de distribuição da execução, qualquer alienação efetuada pelo executado presumir-se-ia de má-fé. Segundo Didier, tal presunção é de índole absoluta (iuris et de iure).
Há ainda que se mencionar o art. 659, §4º do CPC, que prevê que a averbação do registro de penhora gera presunção absoluta de má-fé da alienação desses bens penhorados. Some-se a isso vetusta e cediça lição de que a alienação de bens penhorados é ineficaz em relação ao exeqüente, dispensando não só o concilium fraudis, mas também o eventus damni.
Essa breve digressão tem o objetivo de demonstrar que a Lei Adjetiva prevê hoje três marcos a partir dos quais a configuração da fraude à execução é possível, que são, em ordem cronológica:
1.A possibilidade de averbação da certidão de distribuição da execução ajuizada (art.615-A).
Ressalte-se, por oportuno, que esse é um ônus, e não um dever do exeqüente.
2.A citação regularmente realizada (art.593,II), caso não tenha o exeqüente se desincumbido do ônus previsto no art. 615-A.
3.A averbação do registro de penhora (ar.659, §4º), momento a partir do qual, a rigor, estaremos na seara da alienação de bens penhorados, e não da fraude à execução.
Pois bem, o maior erro do enunciado 375, no entendimento aqui proposto, foi ter condicionado o reconhecimento da fraude à execução a dois requisitos não cumulativos: à prova da má-fé do adquirente ou ao registro da penhora, quando o legislador, de forma expressa, prevê, no art. 593, II, CPC, que a simples pendência da demanda executiva que possa levar o executado à insolvência faz com que as alienações ou onerações dos bens deste considerem-se em fraude à execução.
Ora, ainda que se entenda que tal presunção do art. 593, II, é relativa, e que não tenha sido realizada a averbação prevista no art. 615-A, não se entende como pode o STJ exigir que o exeqüente faça a dificílima prova da má-fé do adquirente. Se o art. 593, II, pretende dar uma proteção ao credor que já tem um título executivo a seu favor, deveria ser, quando muito, oportunizado ao adquirente provar sua boa-fé, e não ser exigida, contra legem, realização de prova diabólica pelo exeqüente.
O enunciado não padeceria de tão graves equívocos se estivesse se referindo à alienação de bens penhorados, de forma que, fosse esse o caso, poderia ser interpretado o requisito do registro da penhora como uma exigência do STJ para a configuração do instituto e para a eclosão de seus efeitos.
Da forma como foi redigida, a súmula 375 do STJ não apenas desvirtua a fraude a execução, mas também ignora disposições legais, mormente o art. 593, II.