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Revisão contratual como instrumento de justiça social: uma visão crítica e emancipada do direito contemporâneo

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Agenda 02/09/2010 às 15:47

RESUMO

Este trabalho realiza uma breve abordagem acerca da revisão contratual. Para tanto, tece considerações sobre a evolução do contrato no tempo, buscando-se estabelecer seus pressupostos econômicos, filosóficos e sociais em cada época. A pesquisa, por fim, insere-se na teoria contratual crítica e contemporânea que pressupõe a reconstrução do instituto com base na nova ordem axiológica. Tenta-se delinear uma teoria tópica e emancipada que atenda de maneira firme e eficaz aos anseios constitucionais.

Palavras-chave: Revisão contratual. Crise dos contratos. Princípios. Direito crítico.

ABSTRACT

This paper provides a brief review about the contractual approach. To that end, this paper discusses the evolution of the contract in time, seeking to establish its economic assumptions, philosophical and social each season. The research ultimately falls under the critical and contemporary contract theory assumes that the reconstruction of the institute based on the new axiological order. Tries to outline a theory that addresses topical and emancipated firmly and effectively to the constitutional aspirations.

Keywords: Review contract. Crisis of contracts. Principles. Right critical.


1 INTRODUÇÃO

Não é mais desconhecida a relevância do contrato na vida moderna. Pode-se afirmar sem dúvida alguma que, dado o seu valor na realidade atual, sua supressão poderia causar uma verdadeira estagnação na sociedade. [01]

Como se verá, a atual configuração do contrato fundou-se com a ideologia individualista [02], quando do liberalismo, momento em que se afirmou como eminente instrumento da vida econômica, guiado pela autonomia da vontade. Vale dizer, inclui-se entre seus pressupostos a noção da inflexibilidade do acerto (pacta sunt servanda) como garantia de segurança jurídica e que deriva do valor dado à palavra emitida.

Ocorre que a liberdade irrestrita de contratar, especialmente nas situações de desequilíbrio material entre os contratantes, historicamente deu ensejo a situações de grande injustiça, gerando a necessidade da relativização do princípio da autonomia da vontade e intervenção estatal com base em normas cogentes de vedação, cláusulas de estilo, e, em determinados casos, na imposição do dever de contratar.

Para além desses casos, a dogmática jurídica previu as hipóteses de revisão contratual calcadas nas cláusulas abusivas, na lesão e na alteração das circunstâncias contemporâneas à formação do contrato. Insuficiente, contudo. É que muitas situações de escancarada injustiça continuam existindo ante a impossibilidade de modificação do conteúdo contratual alheia aos institutos susos.

Assim sendo, fez-se mister lançar mão da seguinte pergunta: É possível a flexibilização do princípio da intangibilidade para permitir a ingerência estatal no contrato, podendo o juiz revisar o contrato para criar, modificar ou excluir cláusulas além das hipóteses expressamente previstas pela lei, a fim de se evitar uma injustiça? De início, apesar da grande complexidade de pronto à vista, uma hipótese se afigurou plausível: É possível a modificação judicial dos contratos por força dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da função social, da eticidade, da cooperação e do equilíbrio.

No que concerne à plausibilidade da tese ora defendida, encontra-se viabilidade na tendência contemporânea de transformação do Direito, que atinge frontalmente a matiz Civil. O constitucionalismo moderno assume seu lugar na ponta da pirâmide dos interesses jurídicos, trazendo consigo princípios fundamentais calcados na dignidade da pessoa humana e que se supervalorizam. Estes comportam normas de cunho geral e aberto, alcançando com maior eficiência a vontade da lei.

No intuito de construir um diálogo lógico e coeso, será explorado o contrato de forma crítica, tentando-se recriá-lo de acordo com o conhecimento contemporâneo. Em seguida, serão definidos os princípios sociais principais tidos atualmente como normas fundamentais de aplicabilidade direta, sendo estes orientadores e legitimadores da intervenção estatal. A revisão contratual será, então, vista sob um viés crítico, emancipado e tópico, traçando a sua importância como verdadeiro princípio contratual juntamente com o princípio da conservação dos contratos. Cumpre lembrar a relevância da pesquisa e construção doutrinária que, reconhecidamente, desempenha o mister de servir de base às decisões dos Tribunais e à elaboração legislativa.


2 A TEORIA CONTRATUAL TRADICIONAL

O contrato, no decorrer da evolução histórica, passou por inúmeras modificações, variando o seu conceito e pressupostos de acordo com a estrutura filosófica, política e econômica da sociedade.

Entretanto, a concepção tradicional do contrato apenas teve origem quando do movimento iluminista francês, o qual, segundo uma escancarada vocação antropocêntrica firmada na vontade racional do homem como centro do universo, determinando, assim, uma supervalorização da força normativa do contrato, levou às suas últimas conseqüências o pacta sunt servanda. O contrato se afirmou como eminente instrumento da vida econômica, guiado pela autonomia da vontade das partes e pela noção da inflexibilidade do acerto [03].

Pode-se dizer que a Revolução Francesa de 1789 foi o fato histórico representativo desse momento. Fundada nos lemas liberté, egalité e fraternité, e influenciada pelas idéias iluministas e liberais, teve como força motriz a ânsia da classe burguesa em obter os poderes político e jurídico, com o propósito de garantir o patrimônio, a aquisição de capital e os necessários meios de produção [04].

O Estado Liberal, assim, promoveria a separação entre o Estado e a Sociedade, elevando o indivíduo e sua vontade, a partir da premissa básica de que a liberdade dos indivíduos originava-se não do status nobiliárquico ou clerical, mas sim pela sua própria vontade, pela titularidade de direitos e deveres pelos indivíduos, agora sujeitos de direito [05].

Está-se, portanto, a dissertar sobre a construção doutrinária em torno de um sistema econômico que surgia (capitalista) cujo objetivo principal era o de superação do regime anterior (feudal). E ao se falar em plano econômico diz a respeito de contrato, já que os "interesses que constituem a substância real de qualquer contrato podem ser resumidos na idéia de operação econômica". O desenvolvimento teórico-jurídico dos contratos, a denominada teoria contratual clássica ou tradicional, atenderá, portanto, a uma missão clara: consolidar, de maneira ampla o capitalismo emergente [06].

O fenômeno contratual será legitimado, por sua vez, pelo princípio da autonomia da vontade. Como bem ensina Cunha [07] a idéia liberal de que a vontade dos indivíduos, enquanto sujeitos de direitos e não como detentores de status previamente estabelecidos, é hábil para a produção de efeitos jurídicos, constituiu-se idéia central da própria conceituação de contratos.

O voluntarismo jurídico, inspirado no kantismo confirmou o conceito contratual clássico com base no princípio da autonomia da vontade, consagrando-o como o vínculo jurídico capaz de produzir lei entre as partes. Homens livres só deveriam se vincular voluntariamente, mas o contrato, uma vez celebrado, vincularia indissoluvelmente a vontade (princípio do pacta sunt servanda) [08].

Como bem salienta Cordeiro [09] a doutrina kantiana trouxe reflexões especiais no campo da ética sendo, posteriormente, aproveitadas na teoria contratual. Isso contribuiu para a construção do que o autor chama de armadura ético-jurídica, tornando-o intangível e imodificável, a não ser pela vontade das partes. Rosalice Fidalgo Pinheiro [10] é quem melhor explica essa aura ético-jurídica que o pensamento de Kant revestiu o contrato e o cumprimento irrestrito de seu pacto, senão vejamos:

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E sob a influência da ética kantiana que a expressão autonomia da vontade encontra seu maior significado. Trata-se da ética autônoma fundada por Kant; sua moralidade fundamenta-se na vontade racional pura, destituída de condicionamentos externos. Ela inspira-se na razão e revela o homem considerado como fim em si mesmo e não como um meio. Trata-se de conferir valor e dignidade ao homem, em si próprio, impedindo-o de submeter-se a outras leis, senão aquelas que lhe dê a si mesmo. Tais idéia reveladas pelo ‘personalismo ético" de Kant, somadas à concepção herdada do jusracionalismo de que o homem é livre, vão caracterizar a soberania à vontade individual. Isso quer dizer que esta é a única fonte de toda a obrigação jurídica, delineando-se, assim, os quadrantes da autonomia da vontade. A partir desta formulação, também ficam esgotadas as possibilidades de injustiça, pois esta torna-se impossível ocorrer, à medida que o homem decide-se por si mesmo. A tal acepção, encontra-se ligada a idéia de que toda a justiça provém do contrato, o que não poderia ser mais adequado à doutrina econômica liberal, pois ‘quem diz contratual diz justo’.

Como corolário lógico da autonomia da vontade e da própria vinculação obrigatória é que se depreende, então, o princípio da intangibilidade. Nestes termos, formado o acordo, suas cláusulas constituem comandos imperativos justos que obrigam as partes, face a liberdade individual de negociação. Decorrente desta construção, o princípio da intangibilidade indica a concepção de que somente novo pacto pode modificar ou extinguir (distrato) a estipulação anterior.

A vontade como centro do contrato, articulada à regra da igualdade dos contratantes, obriga a reconhecer que tanto o legislador como o juiz lhe devem fiel observância, não podendo intervir naquilo que houver sido pactuado pelas partes contratantes. Estas têm ampla liberdade quanto à fixação das obrigações que voluntariamente se auto-imponham; o que é querido é, nesta medida, obrigatório; e a determinação do conteúdo do querer compete exclusivamente ao indivíduo. A lei referente aos contratos – salvo quando tem em vista proteger, precisamente, a livre formação e manifestação do consentimento – legitima-se como reprodução da tácita vontade dos contratantes, e, por essa razão, tem caráter dispositivo, não se aplicando quando a vontade tácita deixar de coincidir com a vontade expressamente manifestada em sentido contrário. [11]


3 O CONTRATO NO DIREITO CONTEMPORÂNEO

A evolução histórica com as invariáveis mudanças, principalmente nas searas política, científica, econômica e social, e nos próprios valores humanos, acabaram por modificar a noção da teoria geral do Direito e, por conseguinte do próprio contrato, sobretudo após as duas guerras mundiais, provocando, inclusive, a introdução de novos elementos constitutivos e a necessidade de intervenção estatal na economia, e mesmo na autonomia individual de seus cidadãos.

A ideologia liberal que preconizava uma igualdade formal entre homens como instrumento de segurança para a manutenção do equilíbrio entre os contratantes independentemente de sua condição social mostrou-se falaciosa diante da tomada de posse do poder pela burguesia, trazendo grande insatisfação social.

Assim, podemos constatar que se impõe no mundo contemporâneo uma noção pós-moderna de contrato, onde o princípio da autonomia da vontade e a "pacta sunt servanda" tem valor relativo e onde ditames novos, tais como a relatividade dos contratos, a boa fé objetiva, a equidade das prestações, a defesa do hipossuficiente, a justiça contratual e a finalidade do contrato devem ser observadas. [12]

A política interventiva do Estado atingiu, por sua vez, o contrato, na sua cidadela, ao restringir a liberdade de contratar, na sua tríplice expressão de liberdade de celebrar o contrato, da liberdade de escolher o outro contratante e da liberdade de determinar o conteúdo do contrato [13]. Falou-se, então, numa verdadeira crise dos contratos.

Em divergência com a doutrina assente, insinuam-se novas construções jurídicas, como as que advogam, na conceituação do negócio jurídico, a substituição da teoria da vontade pela da confiança ou da auto-responsabilidade, a de intervenção do juiz na economia do contrato, quer através de sentença normativa, quer com fundamento na doutrina da imprevisão, e a que proclama existência de contratos de fato, a do respeito aos efeitos jurídicos aparentes, a que atribui eficácia externa à vinculação fiduciária, a que admite a existência de comunhão orgânica de interesses, a de substituição do controle material da relação jurídica pelo controle simplesmente formal, a do abuso de direito e tantas outras, que alteram consideravelmente a dogmática do Direito Contratual nos traços riscados pela ciência das Pandectas [14].

Para estudiosos como Cordeiro [15], "a crise do Estado Liberal, com a intervenção do Estado na atividade privada marcou também a crise das codificações liberais e, em especial, a crise da própria concepção de contrato".

A crise do contrato suscita, desse modo, uma rica e frutífera reflexão em torno dos problemas contratuais. Passa-se a contestar os mitos e dogmas sedimentados quando da formulação da teoria contratual clássica ou tradicional, a começar pela própria idéia de que o direito contratual não é afeto a mudanças. Então, a partir de uma teoria contratual crítica, indaga-se as maneiras pelas quais pode-se redesenhar o contrato. A melhor resposta para esta pergunta entende que o contrato deve ser construído de forma condizente com o seu tempo, revitalizado pela principiologia constitucional calcada na valorização da pessoa e na solidariedade social [16].

No conceito clássico de contrato, enquanto acordo de vontade entre interesses opostos, em antagonismo, imperavam os princípios da intangibilidade e do pacta sunt servanda e o papel do estado era simplesmente garantir o seu cumprimento, pois que necessariamente justo. Contemporaneamente, no entanto, prevalece a noção de contrato como vínculo de cooperação e a percepção da necessidade de atuação cooperativa entre os pólos da relação contratual [17].

O carro chefe das mudanças que operaram no mundo jurídico brasileiro contemporâneo sem dúvida foi a Constituição Federal de 1988. Com viés social, mas sem se despreocupar dos interesses individuais, a Lex Mater inverteu a pirâmide dos valores, sobrepondo a tudo o princípio maior da dignidade da pessoa humana e lançando mão de imperativos de solidariedade, justiça, erradicação da pobreza e o bem de todos sem preconceitos como objetivos da República Federativa do Brasil.

É de se dizer que toda a legislação infraconstitucional teve de atender à vontade estatuída pela Carta Suprema, sendo derrogadas todas as normas incompatíveis com o novo sistema. O arcabouço legal civilista deixou de ser jurídica e ideologicamente a voz do ordenamento pátrio e cedeu às forças constitucionalistas. Um novo Código Civil nasceu já sob a nova perspectiva, invertendo a sistemática dos dispositivos que representaram, ao final, verdadeira mudança de paradigma. O ser humano em todas suas facetas hoje é o ponto central de qualquer inferência jurídica, deixando de lado o patrimonialismo que sempre foi carregado no bojo da ordem até então instalada

Na seara contratual também acontece uma verdadeira reviravolta epistemológica transformando o instituto qualitativamente. O contrato passa a ser visto como composição de interesses humanos, afirmação que traz em si a proibição da superlativização da obrigação nele traduzida (que leva à opressão econômica) e a facilitação de sua utilização como instrumento de aquisição de bens indispensáveis à vida. Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, pode-se afirmar que o contrato dignifica o homem, em que o valor patrimonial tem por base o valor existencial [18].

O que se quer dizer é que o contrato deve estar voltado ao cumprimento de sua função social. Deve ele guardar não somente o transito jurídico de bens mas ser um verdadeiro instrumento de realização e desenvolvimento humano, perfazendo, sobretudo, os objetivos constitucionais de valorização da cidadania, dignidade da pessoa humana, construção de uma sociedade livre justa e solidária, erradicação da pobreza e marginalização, redução das desigualdades sociais, promoção do bem de todos, enfim, a concretização de uma verdadeira justiça social.


4 OS PRINCÍPIOS REGENTES DO DIREITO CONTRATUAL COMO NORMAS FUNDAMENTAIS DE APLICABILIDADE DIRETA

No cerne das transformações operadas pela Constituição, as normas principiológicas desempenharam papel fundamental, sendo uma opção adequada ao perfil axiológico que se descortinava em lugar da hermenêutica positivista.

Interessante notar que, conforme esclarece Rothenburg [19], da generalidade e da vagueza decorre a plasticidade que os princípios jurídicos apresentam, permitindo-lhes amoldarem-se às diferentes situações e assim acompanharem o passo da evolução social. Essa é uma característica predominantemente formal vez que prende-se antes à expressão lingüística dos princípios que a seu sentido. Este deve ser sempre preciso em dado contexto, refletindo com precisão a tradução jurídico-normativa dos valores mais caros e oportunos.

Importante salientar que a dimensão axiológica da função objetiva dos princípios e direitos fundamentais, uma vez que decorrentes da idéia de que estes incorporam e expressam determinados valores objetivos fundamentais da comunidade, implica ora numa aplicação indireta da Constituição por intermédio de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados previstos na nova codificação ou servindo de suporte para interpretação emancipada de dispositivos legais, ora numa aplicação direta dos princípios e valores constitucionais fundamentais às relações contratuais. Tanto a aplicação direta como indireta revestem-se de igual importância ao permitir um efetivo grau de concreção, calcado em uma análise tópico-sistemática, fundamental para a efetivação dos valores e princípios constitucionais [20].

Inclinamo-nos hoje – pelo menos à luz do direito constitucional positivo brasileiro – em prol de uma necessária vinculação direta (imediata) também dos particulares aos direitos fundamentais (salvo, é claro, os que têm por destinatário precípuo o Poder Público), sem deixar de reconhecer, todavia, na esteira de Canotilho e outros, que o modo pelo qual se opera a aplicação dos direitos fundamentais às relações jurídicas entre particulares não é uniforme, reclamando soluções diferenciadas. Tal entendimento, dentre outras razões que aqui não iremos desenvolver, justifica-se especialmente entre nós, pela previsão expressa da aplicabilidade direta (imediata) das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, o que, por sua vez, não se contrapõe ao fato de que, no âmbito da problemática da vinculatividade dos particulares, as hipóteses de um conflito entre os direitos fundamentais e o princípio da autonomia privada pressupõem sempre uma análise tópico-sistemática, calcada nas circunstâncias específicas do caso concreto, devendo ser tratada de forma similar às hipóteses de colisão entre direitos fundamentais de diversos titulares, isto é, buscando-se uma solução norteada pela ponderação dos valores em pauta, almejando obter um equilíbrio e concordância prática, caracterizada, em última análise, pelo não-sacrifício completo de um dos direitos fundamentais, bem como pela preservação, na medida do possível, da essência de cada um. [21]

Neste diapasão, em julgamento paradigmático, o Supremo Tribunal Federal pátrio surpreendeu quando foi pródigo em reconhecer a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas. A decisão, realizada nos autos do Recurso Extraordinário 201819/RJ, consubstancia o entendimento aqui defendido de que as normas e princípios constitucionais têm aplicabilidade direta fazendo-se incidir inclusive nas relações contratuais em que a autonomia da vontade sempre fora colocada como postulado intangível.

Como se sabe, a dignidade da pessoa humana é, em verdade, o princípio viga fundante de todo ordenamento jurídico. Ao enquadrar-se como regra de ouro e mais importante, não possui o suporte necessário em qualquer lei, tratado ou constituição, vez que é auto-suficiente. Necessário, então, esclarecer que pertence ao mundo dos princípios supralegais e qualquer norma contrária resta esvaziada de legitimidade.

A dificuldade de conceituação do princípio da dignidade da pessoa humana obriga à colação do magistério de Silva [22], assim escrito:

Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. ‘Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-las para construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana’. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.

Também o princípio da solidariedade mostra-se, assim como os outros princípios sociais, como um valor trazido com a Constituição de 1988. Importa esclarecer que Estatuto Supremo fez menção expressa ao princípio em comento quando elencou como objetivos da República Federativa do Brasil, no art. 3º, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

A formatação da norma e os outros incisos trazem em si mesmos elementos úteis à definição do princípio da solidariedade, prendendo-se este à convivência em uma sociedade que seja justa e promova o bem de todos, além de reduzir as desigualdades sociais e favorecer ao desenvolvimento nacional.

A solidariedade redimensiona a função do contrato, passando de uma feição essencialmente econômica para uma visão social. A liberdade contratual deixa de ser a realização egoística das partes e passa ser concebida como grande instrumento de justiça social: ‘a solidariedade não é somente um valor inserido na Constituição, sem papel definido no plano da regra. Ao contrário, ela reflete novo espírito ético da sociedade brasileira que, efetivamente, pretende encontrar um Brasil no século XXI livre da miséria econômica e das desigualdades sociais" [23].

Quanto ao princípio da cooperação, decorre também de uma postura ética a ser enfrentada na relação contratual. Pode ser entendido, assim, como a combinação de esforços para a consecução dos fins comuns do contrato.

[...] diferentemente do que ocorria no passado, o contrato, instrumento por excelência da relação obrigacional e veículo jurídico de operações econômicas de circulação de riqueza, não é mais perspectivado desde uma ótica informada unicamente pelo dogma da autonomia da vontade. Justamente porque traduz relação obrigacional – relação de cooperação entre as partes, processualmente polarizada por sua finalidade – e porque se caracteriza como o principal instrumento jurídico de relações econômicas, considera-se que o contrato, qualquer que seja, de direito público ou de direito privado, é informado pela função social que lhe é atribuída pelo ordenamento jurídico, função esta, ensina Miguel Reale, que é mero corolário dos imperativos constitucionais relativos à função social da propriedade e à justiça que deve presidir a ordem econômica [24].

Deve-se entender que analisar o contrato sob o prisma do princípio da cooperação é reformular a estrutura contratual e deixar de lado a antiga concepção de que a relação contratual é um acordo bilateral de vontades onde as partes têm interesses diversos e opostos.

No que concerne ao princípio da boa-fé, sem obstar da dificuldade de sua conceituação, traduz o dever de conduta que as partes têm de assegurar a probidade em todos os contratos. Observa-se que representa uma tendência que afeta não somente a matiz contratual, mas que se revela comportamento assumido em todas as searas do conhecimento, já que as pessoas devem ser éticas em todas suas relações.

Na sociedade pós-moderna, o princípio da boa-fé vem se consolidando como base fundamental dos negócios jurídicos, flexibilizando a rigidez da pacta sut servanda. Assim, na teoria dos contratos, em substituição ao princípio da autonomia da vontade, a tecnologia jurídica articula o princípio da boa-fé objetiva que implica um conjunto de deveres impostos pela lei às partes contratantes [25].

Interessante notar o perspicaz ensinamento do professor Gonçalves [26], para quem a boa-fé é uma cláusula geral para aplicação do direito obrigacional, que permite a solução do caso levando em consideração fatores metajurídicos e princípios gerais. Ressalta ainda que o novo sistema civil implantado no país, como já se disse alhures, fornece ao juiz um novo instrumental, diferente do que existia no ordenamento revogado, que privilegiava os princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade dos contratos, seguindo uma diretriz individualista. Hoje, a boa-fé objetiva é uma cláusula geral que o juiz deve rigorosamente aplicar no julgamento das relações obrigacionais.

Outrossim, de grande importância foi a construção do princípio da função social do contrato. Ultrapassado o período em que a autonomia da vontade era considerada imperativo basilar de toda teoria contratual, a função social hoje orienta as relações no sentido de não permitir a celebração de ajustes entre as partes que não tenham uma utilidade para a sociedade.

A função social do contrato, preceito de ordem pública, encontra fundamento constitucional no princípio da função social do contrato lato sensu (art. 5º, XXII e XXIII, e 170, III), bem como no princípio maior de proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), na busca de uma sociedade mais justa e solidária (art. 3º, I) e da isonomia (art. 5º, caput). Isso, repita-se, em uma nova concepção do direito privado, no plano civil-constitucional, que deve guiar o civilista do nosso século, seguindo tendência de personalização [27].

Em relação ao princípio da equivalência material, busca preservar uma igualdade material e política, de direitos e deveres na relação contratual, para a harmonização dos interesses contrapostos. Sustenta-se com base num juízo de equidade buscando uma justiça social, que perfaz, ainda, verdadeiro elemento constitutivo e essencial para a formação do próprio contrato.

Enzo Roppo [28] explica que a igualdade jurídica, em sua acepção clássica, é só igualdade de possibilidades abstrata, igualmente em posições formais, a que, na realidade, podem corresponder - numa sociedade dividida em classes correspondem necessariamente - gravíssimas desigualdades substanciais, profundíssimas disparidades das condições concretas de força econômico-social entre contraentes que detêm riqueza e poder e contraentes que não dispõe senão da sua força de trabalho.

Ocorre que a equidade não deve ser analisada apenas quanto às partes, mas também em relação à própria comutatividade. Para Messineo [29], a paridade jurídica existente no contrato corresponde de regra a paridade econômica, no sentido de que, em sendo o contrato oneroso, o sacrifício de um dos contratantes deve equiparar-se ao do outro. É que a paridade econômica encontra-se implícita nos contratos e o eventual desequilíbrio contratual, o qual seja devido em razão de disparidade, que não decorra da lei, seria ilegítimo.

Como se disse, os princípios sociais e constitucionais desempenharão papel fundamental na utilização da revisão dos contratos enquanto ferramenta de verdadeira justiça. A aplicabilidade direta dos princípios é a base desse esquema teórico do qual se passa a falar.

Sobre o autor
Ruano Fernando da Silva Leite

Assistente Técnico-Administrativo do Ministério Público do Estado da Bahia; Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Ruano Fernando Silva. Revisão contratual como instrumento de justiça social: uma visão crítica e emancipada do direito contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2619, 2 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17322. Acesso em: 5 nov. 2024.

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