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Ações afirmativas e cotas nas universidades

Agenda 21/09/2010 às 08:33

As ações afirmativas causam polêmica não só no âmbito jurídico, mas em toda a sociedade, especialmente quando relacionadas com questões raciais. Contudo, as cotas raciais não devem ser analisadas sob uma perspectiva reducionista de seus efeitos, mas sim levando em conta sua contribuição para a concretização do direito fundamental à educação.

Não se deve ignorar que nem toda diferenciação legal ou discriminação é ilícita. O princípio da igualdade ou isonomia é abordado pela doutrina e pelos tribunais não somente em seu ponto de vista material, mas também sob uma perspectiva formal: o primeiro diz respeito ao tratamento efetivamente isonômico de todos, conferindo iguais oportunidades e proteção (mesmo que por meio de ações diferenciadas), enquanto a igualdade formal consiste no tratamento equânime pela lei, sem considerar qualquer diferença pessoal ou coletiva.

Desse modo, o princípio previsto no caput do art. 5º da Constituição, de que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, (...)", limita-se à igualdade formal. De outro lado, a igualdade material tem fundamento em diversos dispositivos constitucionais, tais como os arts. 3º, III ("erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais"), 7º, XXX ("proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil") e XXXI ("proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência"), 170, VII ("redução das desigualdades regionais e sociais"), 226, § 5º ("Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher"), e 227, § 6º ("Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação"). Portanto, se de um lado o aspecto formal da isonomia demanda um tratamento similar pelas normas, o cunho material autoriza o tratamento diferenciado, a fim de igualar os desiguais.

A conceituação de ação afirmativa possui algumas peculiaridades que geram controvérsia, porém, suas características genéricas não geram dissonância relevante: a) podem ser compulsórias ou voluntárias, permanentes ou temporárias; b) conferem benefícios ou vantagens a grupos sociais definidos (usando algum critério de delimitação do grupo, como o sexo, a raça, idade, religião, deficiência, opção sexual, condição econômica, etc.); c) têm por objetivo atingir a igualdade, de tratamento ou oportunidade, ou seja, equilibrar uma situação desigual; d) em regra, impõem medidas relacionadas com a educação, o emprego ou a saúde, o que não impede sua aplicação em outras áreas.

Não devem ser confundidos os conceitos de ações afirmativas e cotas, como políticas públicas distintas: as primeiras consideram a raça (ou outro elemento, como sexo, idade, etc.) como apenas um dos critérios da política a ser efetivada, e as segundas compreendem um percentual fixo de vagas reservadas para minoria(s) em determinado processo de seleção. Pode-se afirmar que as cotas são espécies do gênero ação afirmativa.


Origens e Normas

A ação afirmativa surgiu na Índia, como um modo de reduzir as desigualdades impostas pelo sistema de castas que existe há mais de 2.500 anos. Porém, teve grande repercussão a partir de sua implantação nos EUA, como um meio de minimizar o racismo existente no país, especialmente contra os negros. Como um embrião dessa iniciativa, o primeiro ato do Poder Público consistiu na Executive Order nº 8802, de 25/06/1941 (Fair Employment Act), do presidente Franklin Roosevelt, que vedava a discriminação de negros na seleção de pessoas para trabalhar em órgãos governamentais relativos à defesa nacional.

Afirma-se que desde 1968 já existe uma preocupação do Poder Público para a implantação de ações afirmativas no Brasil. Nesse ano, servidores do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho formularam um documento com a proposta de elaborar lei contendo a imposição de cotas mínims de pessoas negras nas empresas privadas, como o único meio de coibir a discriminação racial no mercado de trabalho.

Especificamente sobre a discriminação racial, o art. 3º, IV, da Constituição, lista como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça e cor (além do sexo, idade e outras formas). Ainda, o art. 4º, VIII, arrola o repúdio ao racismo como um dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil, e a prática do racismo constitui um crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII). Efetivando essa norma, a Lei nº 7.716/89 tipifica crimes em virtude de atos de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Ainda, a Medida Provisória nº 111/2003 (convertida na Lei nº 10.678/2003) cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, órgão de assessoramento imediato da Presidência da República. Entre suas atribuições (listadas no art. 2º), estão o auxílio ao Presidente da República na formulação, coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial; na formulação, coordenação e avaliação das políticas públicas afirmativas de promoção da igualdade e da proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos.

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Entre as medidas de políticas públicas que visam à redução da discriminação racial, está ainda o estudo obrigatório da história e cultura afrobrasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados (acréscimo do art. 26-A, pelas Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, à Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).

Não há lei federal permitindo a adoção de cotas nas universidades públicas federais, que utilizam esse sistema com base em norma interna, tendo como fundamento a autonomia universitária assegurada pelo art. 207 da Constituição: "As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão". A Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) limita-se a prever, em seu art. 51, que "as instituições de educação superior credenciadas como universidades, ao deliberar sobre critérios e normas de seleção e admissão de estudantes, levarão em conta os efeitos desses critérios sobre a orientação do ensino médio, articulando-se com os órgãos normativos dos sistemas de ensino". Assim, a autonomia universitária no Brasil abrange atualmente a possibilidade de cada instituição elaborar sua forma de seleção dos alunos, não sendo sequer obrigatório o concurso vestibular. Há, por outro lado, algumas leis estaduais regulamentando o tema, incidentes sobre as respectivas universidades.

Existem diversos projetos de lei sobre o assunto em tramitação na Câmara dos Deputados. O PL nº 73/1999 versa sobre a reserva de cota de 50% das vagas nas universidades públicas federais e estaduais para alunos que atingirem um coeficiente de rendimento no ensino médio (a outra metade das vagas seria preenchida por meio de vestibular); o PL nº 615/2003 fixa cotas para indígenas que forem aprovados em um processo seletivo; o PL nº 1313/2003 reserva um percentual (variável conforme o Estado) para indígenas nas instituições de ensino superior; e o PL nº 3.627/2004 estipula 50% de cotas para alunos egressos de escolas públicas, além de reservar, dentro desse percentual, vagas para negros e indígenas (que também varia de acordo com cada Estado).


Discussão Judicial

O STF começou a decidir a constitucionalidade – ou não – da existência de cotas raciais como um requisito para as universidades aderirem ao ProUni, discutida em três ações diretas de inconstitucionalidade, de nº 3314, 3330 e 3379, propostas pelo partido político Democratas, pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN), e pela Federação Nacional dos Auditores-Fiscais da Previdência Social (FENAFISP), que teve sua ilegitimidade ativa declarada pelo STF. Em sessão do Plenário realizada no dia 02 de abril de 2008, o relator. Min. Carlos Britto, votou pela improcedência dos pedidos, logo, declarou a constitucionalidade das cotas. Entre os principais fundamentos de seu voto estão a necessidade de efetivação do direito social à educação e a busca pela igualdade material (tratando desigualmente os desiguais). Porém, o julgamento foi adiado em virtude de pedido de vista do Min. Joaquim Barbosa, e ainda não foi retomado.

Também sobre a questão, o partido político Democratas ajuizou no STF, em 20/07/2009, a ADPF nº 186, na qual pleiteia a declaração de inconstitucionalidade de atos da Universidade de Brasília que instituíram cotas raciais nos vestibulares. Após o parecer do Ministério Público Federal e a manifestação da Advocacia Geral da União, favoráveis à reserva de cotas, no dia 31/07/2009 o Min. Gilmar Mendes indeferiu o pedido liminar. Em sua decisão, apesar de realçar que entende que a situação econômica é um fator de exclusão de maior repercussão, e que o assunto gera polêmica, concluiu que não havia comprovação de urgência para justificar a concessão de medida liminar, principalmente tendo em vista que as cotas raciais são utilizadas pela UnB desde 2004, e a ADPF foi proposta somente em 2009.

Ainda no STF, o RE 597285, apresentado em 10/02/2009, contesta o sistema de cotas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Nesse recurso extraordinário, e na ADPF 186, ambas relatadas pelo Min. Ricardo Lewandowski, foi designada a realização de audiência pública, para os últimos dias 03 a 05 de março, com a oitiva de pessoas de diversas áreas de atuação, com conhecimento técnico no tema.

Logo, após a audiência pública, e levando em conta que nos processos citados já houve a manifestação escrita de diversos interessados e amici curiae, os Ministros do STF terão subsídios (jurídicos, científicos, morais, sociais, políticos, culturais, econômicas, etc.) para motivar seus votos.

Os principais argumentos favoráveis ao uso das ações afirmativas nas universidades públicas são: a) é um modo de compensação pelos danos historicamente praticados contra as minoria a ser favorecidas; b) a existência de benefícios que serão produzidos com a integração social dos grupos até então prejudicados; c) equilibra uma situação de desigualdade.

Por outro lado, entre os fundamentos opostos estão: a) a violação de normas constitucionais, tais como a dignidade da pessoa humana, a legalidade, o preconceito de cor e a discriminação, o repúdio e o combate ao racismo, o direito universal à educação, a igualdade nas condições de acesso ao ensino e o princípio meritocrático de acesso ao ensino segundo a capacidade de cada um; b) trata-se de um sistema de reserva de vagas para determinados grupos, prejudicando os demais (ou seja, combate a discriminação por meio de uma medida igualmente discriminatória – "racismo às avessas"); c) ao buscar reparar injustiças históricas, promove novas injustiças.

A conclusão desses processos no STF, com a apreciação dos argumentos prós e contras, terá importância para atribuir segurança jurídica à utilização – ou não – das cotas pelas universidades, evitando novas discussões judiciais e pleitos individuais acerca da constitucionalidade do sistema.

Sobre o autor
Oscar Valente Cardoso

Professor, Doutor em Direito, Diretor Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF da 4a Região, Palestrante, Autor de Livros e Artigos, e Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Oscar Valente. Ações afirmativas e cotas nas universidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2638, 21 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17451. Acesso em: 23 dez. 2024.

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