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Da nulidade contratual à dignidade da pessoa do obreiro.

Ressignificando o ilícito administrativo

Agenda 07/10/2010 às 07:22

Busca-se uma reinterpretação da nulidade dos contratos de trabalho sem concurso público, questionando a Súmula 363 do TST, em garantia dos direitos do trabalhador.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 2. FUNDAMENTOS DA NULIDADE CONTRATUAL POR AUSÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO: BREVES CONSIDERAÇÕES. 2.1 Interesse Público e Interesse Privado. 2.2 Dos princípios inspirativos da nulidade do art. 37, § 2º, da CF/1988. 3. A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICO-FINALISTA DA CARTA MAGNA: PONDERAÇÃO DE VALORES. 3.1 Ponderação de valores: uma solução razoável e proporcional aos conflitos entre princípios. 4. A NULIDADE CONTRATUAL E AS RELAÇÕES EMPREGATÍCIAS: ESPECIALIDADE PRINCIPIOLÓGICA. CONCLUSÃO


INTRODUÇÃO

Alçada em coluna do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana apresenta amplitude tal que, embora sugira uma carga programática e flexível, demonstra-se plena e imediatamente aplicável na resolução dos conflitos postos em juízo. Delimitar, minimamente, o seu núcleo normativo é tarefa salutar cuja viabilidade verifica-se caso a caso.

Neste pensar, o presente artigo se propõe a questionar a Constituição pela própria Constituição, aferindo a importância do citado princípio na superação de entraves positivados na Lei Maior. Especificamente, buscar-se-á, aqui, estreitar a distância entre a justiça – solução socialmente legítima, no sentindo de que, se o poder emana do povo, deve se encontrar nele a percepção do justo – e uma reinterpretação da nulidade dos contratos de trabalho desacompanhados de concurso público, nos termos do art. art. 37, § 2º, da Carta Magna, excluídos da matéria os vínculos existentes em cargos de livre nomeação e exoneração.

Seja afirmado, então, o objeto deste artigo será a apresentação de uma alternativa a tal nulidade, quiçá uma interpretação conforme, com vistas à demonstração da importância de uma análise do tema sob os ditames da razoabilidade e da proporcionalidade e, enfim, da mitigação dos efeitos jurídicos nefastos ao trabalhador.

Assim posto, restará firme o propósito deste estudo no simples fato de se questionar a posição corrente na doutrina e jurisprudência pátrias, alinhada à Súmula 363 do TST, discutindo-se a necessidade de garantia dos direitos trabalhistas do maior prejudicado pela nulidade contratual em comento, o Trabalhador.


2. FUNDAMENTOS DA NULIDADE CONTRATUAL POR AUSÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO: BREVES CONSIDERAÇÕES

A Constituição Federal, em garantia da moralidade dos atos da Administração Pública, estabelece no art. 37, § 2º, a nulidade dos contratos de trabalho por ela celebrados sem a realização de concurso público.

O fundamento de tal dispositivo é certamente digno de aplausos. A administração Pública, conforme o art. 37, caput, CF/1988, sempre há de se pautar na legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência dos seus atos. E tais princípios encontram-se eminentemente inter-relacionados.

É de se notar que o princípio da moralidade tem a sua razão de ser oriunda dos princípios da legalidade e da impessoalidade. Por meio destes, efetiva-se a supremacia do interesse público sobre o privado.

Alguns esclarecimentos tornam-se, porém, indispensáveis. Primeiro, cumpre delimitar o interesse público em face do interesse privado, com o que serão aclarados os princípios ora destacados.

2.1 Interesse Público e Interesse Privado

Por interesse público deve-se entender o interesse da coletividade. Não se trata do interesse da maioria, nem se afasta o interesse individual. Define-se o interesse público como a dimensão coletiva dos interesses individuais, na medida em que estes convergem para a coexistência em sociedade. Lembre-se de que uma categoria específica dos interesses coletivos pode se referir a determinado grupo, beneficiando inclusive os indivíduos que o integram.

O interesse privado, enquanto dimensão do interesse também individual, distingue-se pela relação havida com a personalidade e também com o direito de propriedade, estendendo-se da pretensão patrimonial ao âmbito da intimidade de cada indivíduo. Neste aspecto, principiando-se pela privacidade, o interesse individual pode se tornar público desde que alcançado pela generalidade, durabilidade (não eventualidade) e consenso. É o que ocorre, verbi gratia, quando um hábito de indivíduos aufere status de costume local.

O interesse público objeto da atuação da Administração Pública inspira-se no interesse individual e termina na "pacificação" da sociedade pela garantia da "ordem", entendida esta como o status quo, o conjunto de valores tutelados pela ordem jurídica vigente.

2.2 Dos princípios inspirativos da nulidade do art. 37, § 2º, da CF/1988

A atuação da Administração Pública pauta-se estreitamente nos parâmetros positivados no ordenamento jurídico. Oportuno lembrar que, inicialmente, a legalidade de seus atos surge como freio à intervenção do Público absoluto no Privado, mas logo alcança a posição de garantidora dos interesses fundamentais integrantes do Privado. Eis o avanço contemporâneo: do viés negativo da não intervenção nas "liberdades", passa-se à garantia do bem estar, atuação positiva na materialização da liberdade pela igualdade substancial.

Mas o traço característico de ambas as fases é o mesmo: a vinculação dos atos administrativos – dever ou poder-dever. Nas preleções de Mendes, Coelho e Branco, "a supremacia da lei expressa a vinculação da Administração ao Direito, o postulado de que o ato administrativo que contraria norma legal é inválido." [01]

Citando Hely Lopes Meirelles, Carvalho Filho ilustra: "enquanto os indivíduos no campo privado podem fazer tudo o que a lei não veda, o administrador público só pode atuar onde a lei autoriza". [02] Outrora, com Bandeira de Melo, o Autor destaca que "todos os agentes públicos, desde o que lhe ocupe a cúspide até o mais modesto deles, devem ser instrumentos de fiel e dócil realização das finalidades normativas" [03]

O Direito, nesta linha, disciplinando a busca pela igualdade substancial, restringe a função dos entes públicos à dimensão coletiva dos interesses individuais, impedindo que a atenção do administrador se volte para uma pessoa em especial. Eis o princípio da impessoalidade como reflexo do princípio da finalidade e ferrenho opositor dos desvios desta.

Chega-se, por fim, ao princípio da moralidade. No magistério de Carvalho Filho este princípio

"Impõe que administrador público não dispense preceitos os éticos que dêem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto." [04]

É de se afirmar que a honestidade e a justiça nas ações do administrador público corresponde à fiel persecução das finalidades de seu múnus público.Não se admitem desvios de finalidade, não se permite que os seus atos estejam fundamentados no interesse privado do administrador ou de quem quer que seja, mas que se almeje o interesse da coletividade como um todo.

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Por isso se diz da imoralidade no apadrinhamento. Inquestionavelmente desonestas são as benesses concedidas por agentes políticos a pessoas a que se ligam por relações pessoais. E a contratação de prestador de serviços por parte da Administração Pública não foge a esta regra: tais situações são veementemente combatidas pelo princípio da legalidade, da impessoalidade e da moralidade. Cumpre citar, demais isso, garantindo-se a moralidade e a legalidade equilibram-se também as finanças do Estado.

Neste sentido, apresenta-se o Enunciado 363 do Tribunal Superior do Trabalho, asseverando que a contratação de servidor público sem prévia aprovação em concurso público somente confere ao empregado "o direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS".

Do exposto acima, nota-se que o art. 37, § 2º, da CF/1988, orientado pela súmula mencionada, quando aplicado literal e genericamente, causa a firme impressão de garantir a ordem constitucional mediante a proteção dos princípios e interesses nela albergados. Entretanto, o que ocorre é a supressão dos direitos que a Lei Maior, em seu art. 7º, reconhece ao obreiro, como férias, gratificações natalinas, verbas rescisórias, FGTS e multa de 40% - nos casos de despedidas injustificadas, entre outros direitos fundamentais.


3. A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICO-FINALISTA DA CARTA MAGNA: PONDERAÇÃO DE VALORES

Cumpre observar a nulidade dos contratos de trabalho desacompanhados de concurso público, tal como vem sendo concebida, apresenta-se como uma solução ao conflito entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da dignidade do obreiro, com exclusiva predominância do primeiro.

No entanto, é sabido de todos que o intérprete/aplicador da Lei não pode se deter à letra fria da Norma, tendo que desenvolver sua atividade hermenêutica por intermédio da conjugação dos programas interpretativos, de modo a manter a unidade da ordem constitucional e ao mesmo tempo atender a seus fins e princípios essenciais.

A linha hermenêutica engastada no presente artigo não consiste em qualquer inovação. Trata-se da percepção adequada do conflito entre as "normas-princípio" constitucionais, sabendo-se que tal colisão não pode ser resolvida com a afirmação de determinado princípio e o expurgo de outro.

3.1 Ponderação de valores: uma solução razoável e proporcional aos conflitos entre princípios

O expurgo de uma norma, quando contraposta a outra vigente de igual hierarquia, é resultado de um procedimento de validação e/ou invalidação típico dos conflitos entre "normas-regra", em que apenas uma das normas em conflito resulta válida. A solução das controvérsias referente a princípios, entretanto, dá-se mediante a ponderação de interesses e valores, realizada pela aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Neste passo, deve-se antecipar que o princípio da razoabilidade não se dissocia da proporcionalidade. No Estado Democrático de Direito, o juiz, além de aplicar, ressignifica os conteúdos normativos em apreço à realidade e à expectativa sociais. Razoável, portanto, é a resposta estatal aceitável, porquanto adequada e necessária, ou seja, proporcional.

Parafraseando Mendes, Coelho e Branco, o princípio da proporcionalidade desempenha o papel de um controle de sintonia fina, delatando ao olhar percuciente do jurista que a resposta legal e jurisdicional para determinado conflito ampara-se na necessidade da revisão justa e adequada de uma solução jurídica desproporcional. [05]

Na matéria em tela, a ponderação entre os princípios da moralidade e da dignidade do empregado deve levar em conta a posição da dignidade humana como coluna do Estado Democrático de Direito.

É insofismável que a dignidade do obreiro sobrepõe-se aos demais princípios constitucionais. Não se afirma, com isso, a supressão do princípio da moralidade administrativa, como não se trata de fulminar o disposto no art. 37, § 2º, e na Súmula 363 do TST.

A intenção destas considerações reside na necessidade de harmonizar os princípios em comento, dispensando a cada qual o peso que a Carta Magna lhes concede. Neste prisma, digno de menção é o entendimento de Dinaura Godinho Pimentel em relação ao tema: 

"Não é lógico supor, certamente, que alguns direitos fundamentais possam se afirmar contraditoriamente  diante de outros direitos ou de outros bens constitucionalmente protegidos. Ao contrário, os direitos fundamentais não são concebidos como algo dotado de valor incondicional diante do eventual limite, mas como algo cuja virtualidade jurídica consiste mais na proibição do limite arbitrário, como resistência diante de uma limitação injustificada e abusiva. Em síntese, o direito começa ali onde acaba a possibilidade de limita-lo, em sintonia com o princípio da proporcionalidade." [06]

"É mister considerar então a necessária concordância e harmonia entre as normas constitucionais, de modo que nenhum direito possa ser sacrificado por inteiro, Assim, qualquer restrição imposta é, por sua vez, limitada, para que não haja excesso ou abuso, em respeito ao direito fundamental reconhecido e à unidade da Constituição. A função da garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais não pode servir mais do que proteger os direitos fundamentais do trabalhador tal como uma muralha diante do poder legislativo, que deve respeitar o seu conteúdo essencial, conforme já se destacou." [07]

Neste lamiré, assinale-se o fato incontroverso: o maior prejudicado na declaração de nulidade de contrato nos termos do art. 37, § 2º, da CF é o próprio trabalhador, parte hipossuficiente, que jamais poderá retornar ao status quo ante, tomando de volta a força de trabalho dispensada. Isto significa dizer que a dignidade do obreiro lhe é expropriada por uma solução aparentemente legítima, mas quando vista a fundo, angustiosamente injusta.


4. A NULIDADE CONTRATUAL E AS RELAÇÕES EMPREGATÍCIAS: ESPECIALIDADE PRINCIPIOLÓGICA

Eis o momento da proposta alternativa. Sabendo-se que o dispositivo constitucional em comento trata da nulidade contratual trabalhista quando ausente o concurso público, resta extrair da teoria das nulidades uma via que não seja crucis em desfavor do obreiro.

A nulidade, conforme conceituação clássica de De Plácido e Silva, diz respeito à inaptidão do ato (ato unilateral ou negócio) jurídico por ter se realizado ao arrepio de norma jurídica, resultando desta violação a "ausência de condição ou de requisito de fundo ou de forma, indispensável à sua validade" [08].

Com efeito, a nulidade consiste em atribuição normativa a ato jurídico existente, visando à supressão de seus efeitos por falta de validade. A decretação de nulidade é a própria declaração de invalidade do ato, elidindo os seus efeitos desde o nascedouro.

A diferença entre a nulidade e anulabilidade encontra-se no fato de esta operar, quando argüida, a desconstituição dos efeitos jurídicos a partir do instante da declaração de existência de seus vícios. De regra, o interesse público encrostado na declaração de nulidade exige óbice à eficácia do ato nulo, enquanto a relatividade do ato anulável somente autoriza a supressão de seus efeitos sem prejuízo da segurança jurídica.

No tocante aos vícios que inquinam os atos jurídicos de nulidade, releva diferençar os de natureza subjetiva, referentes aos sujeitos contratuais – por exemplo, a falta de capacidade – ou à falta de higidez na manifestação de vontade das partes, dos vícios de natureza objetiva, vinculados ao ato ou aos seus elementos e aspectos integrantes.

Feitos os devidos esclarecimentos, cumpre observar que, embora tenha sido afirmado supra que a nulidade importa a supressão dos efeitos do ato ab origine, consoante estabelece a teoria civilista das nulidades, na seara juslaboral tal instituto impregna-se de conotação diversa.

A elisão dos efeitos dos contratos de trabalho submete-se a um plexo de axiomas e princípios que não se coadunam à teoria civilista. Isto porque o trabalho uma vez prestado jamais pode ser recuperado pelo obreiro.

Nos termos do art. 182 do CC/2002, o ato nulo é suprimido do mundo jurídico, retornando as partes ao status quo ante, instaurando-se a eficácia ex tunc da decretação de nulidade. No direito do trabalho, entretanto, não havendo a possibilidade de devolver-se ao obreiro a energia por ele dispensada na prestação laboral, a regra da irretroação da nulidade decretada torna-se inevitável, ensejando o efeito ex nunc desta declaração.

No magistério de Maurício Godinho Delgado, o efeito ex nunc se justifica no fato de que "o trabalho já foi prestado, e seu valor transferido, com a apropriação completa pelo tomador de serviços" [09].

Sendo inevitável o reconhecimento de que o ato ilegal é nulo, como corrigir tamanho desequilíbrio gerado pelo "regresso fictício ao estado anterior"? A resposta é uma: a solução razoável do impasse está no reconhecimento dos direitos trabalhistas ao trabalhador até a decretação da nulidade.

Retornar ao status quo ante quando a prestação obreira já tenha sido quitada é legitimar o enriquecimento sem causa pelo tomador dos serviços. Neste plano, seriam depreciados o valor trabalho e os direitos trabalhistas, consectários da dignidade do obreiro.

Transladando-se a teoria especial das nulidades para a análise do art. 37, §2º, da CF/1988, a interpretação mais adequada do dispositivo constitucional é a que considera a sua destinação ao Administrador Público e não ao obreiro, devendo aquele ser responsabilizado pelo ilícito (ausência de concurso público).

Eis a justiça desta assertiva. Ao estabelecer a eficácia ex nunc da decretação de nulidade nos casos referidos pelo dispositivo precitado, estar-se-ia protegendo o obreiro contra o aviltamento de sua dignidade pela expropriação de sua força de trabalho com um custo reduzido, se comparado com o padrão legal ordinário, sem fulminar os princípios da Administração Pública, uma vez que o contrato declarado nulo não mais subsistiria no mundo dos fatos.

Endossando a tese propugnada, Maurício Godinho Delgado assevera:

"(...) a única leitura hábil a conferir eficácia e coerência ao conjunto dos textos constitucionais (tanto os que proíbem ao administrador e aos cidadãos o ingresso no aparelho de Estado sem concurso público, como os que insistentemente elegem o respeito ao trabalho como um dos valores essenciais da ordem econômica, social e jurídica brasileiras) é aplicar-se a teoria justrabalhista das nulidades quanto ao período de efetiva prestação de serviços, tendo-se, porém, como anulado o pacto em virtude da inobservância à formalidade essencial do concurso (...)." [10]

Grife-se que a nulidade sub examine não é parcial, ou seja, não resulta de defeito em elemento não essencial do contrato, bem como não se restringe a cláusulas contratuais, ao contrário, é nulidade advinda da contaminação de todo o pacto, posto afrontar interesse público. Contudo, é necessário se perguntar: a garantia dos valores da ordem social, do valor do trabalho e dos direitos fundamentais do obreiro também não encontra lugar no interesse público?

Por esta razão,  sejam lembradas as preleções de Pamplona Filho no que respeita a inaplicabilidade da nulidade prevista pelo CC/2002, para quem

"Ainda que não haja sido a contratação nos moldes constitucionais, a conseqüência não pode declarar-se nulidade contratual, para ceifar os direitos da Reclamante, posto seria isto permitir que o hipossuficiente economicamente fosse responsável único por sua contratação, quando o dever maior é do próprio Reclamado, que, ademais, in casu, enriqueceria ilicitamente." [11]

Igualmente digna de menção é percepção da matéria por Dinaura Godinho. Confira-se:

"Assim, mesmo diante da violação do preceito estatuído no art. 37, II, da Constituição Federal, os efeitos de um contrato individual de trabalho formalmente considerado nulo, merecem ser mantidos como se válido fosse até o momento em que a nulidade vem declarada pelo Estado-juiz, em respeito ao princípio da irretroatividade das nulidades, ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, além da impossibilidade de restituição das partes à situação anterior." [12]

A decretação da nulidade sob critérios de direito civil, conforme a interpretação do art. 37, §2º, da CF/1988 imposta pelo Enunciado 363 do TST, está a favor do Empregador, permitindo a este o aproveitamento da vedação à contratação irregular com o fito de se apropriar da mão-de-obra alheia, auferindo de uma relação de trabalho informal benefícios além daqueles ofertados pela contratação regular, face à isenção concernente às parcelas contratuais ordinárias.

É de pasmar que no Estado Democrático de Direito, alicerçado na dignidade da pessoa humana, o hipossuficiente tenha de suportar os infortúnios de relação empregatícia passível de nulidade, visto que, além de não poder gozar dos direitos fundamentais albergados pela Lei Fundamental, tem de submeter-se à supressão do vínculo de trabalho, nulidade ensejadora do retorno ao status quo ante na esfera administrativa, mas incapaz de recompensar integralmente o obreiro por todo o trabalho realizado.

Outra saída hermenêutica coerente e justa não resta senão a mitigação dos efeitos da nulidade contratual mediante a aplicação da teoria especial das nulidades, de modo que as conseqüências da nulificação sejam amoldadas ao princípio da dignidade da pessoa do trabalhador, impedindo que os direitos fundamentais elencados no art. 7º sejam ultrajados e o obreiro, marginalizado da Lei e da Justiça.

Destarte, a declaração de nulidade prevista no art. 37, §2º, da CF/1988 há de trazer consigo a eficácia ex nunc, de maneira que se considere o vínculo de emprego como se fosse válido até o instante da declaração de nulidade por sentença jurisdicional, tendo em consideração a vedação do enriquecimento sem causa, o princípio da irretroatividade das nulidades, e a impossibilidade de restituição da parte hipossuficiente ao status quo ante.


CONCLUSÃO

Como anunciado no preâmbulo deste estudo, uma análise do no art. 37, § 2º, da Carta Magna, que pretenda ser coerente e justa, enfrenta corajosamente os parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade, prostrando-se perante o princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesta senda, os passos do intérprete/aplicador da norma analisada alcançam a mitigação dos efeitos nefastos da nulidade civil nos contratos de trabalho desacompanhados de concurso público. Assim, avulta de importância a teoria especial das nulidades tão cara ao ramo justrabalhista.

Um argumento que não fora mencionado no desenvolver deste estudo, pela ausência de cientificidade, mas que é autêntico por ser fiel à realidade do povo brasileiro, consiste na seguinte ilustração:

""Dona umbelina, de 65 anos, analfabeta, de mãos já trêmulas e sem forças para segurar a enxada, viu-se obrigada a mendigar, para seu sustento, eis que sem marido, sem filhos, sem pensão, sem nada. Certa feita, ao estirar a mão, teve a felicidade de faze-lo para o Prefeito da cidade. Este apiedou-se da pobre velha e oferece-lhe um emprego. Dona Umbelina, incontinenti, disse ao Prefeito: "- Vosmicê vai sarvar minha vida. Vosmicê vai vê, vou barrer, limpar sua casa, arear suas panelas, dá banho em seu fios, cuidar de tudo". O prefeito retrucou: "- Não, dona Umbelina, o emprego que lhe vou arrajar não é em minha casa, é no serviço de limpeza da Prefeitura." Lacrimejante, dona Umbelina disse ao Prefeito: "Dotô, num posso aceitar o trabaio não, prefiro continuar passando fome, mode que é inconstitucional."" [13]

Deveras, a presunção de má-fé do trabalhador nem sempre é correta num país onde o acesso ao conhecimento é segregado, não havendo, portanto, razões que justifiquem tamanha sanção contra o desrespeito dos princípios régios da Administração Pública. Sendo o administrador o maior responsável pelo ilícito administrativo, detendo o conhecimento de sua conduta reprovável, não cabe pesar os efeitos da nulidade sobre o trabalhador, geralmente alheio aos pormenores do direito.

É justo lutar para que meios eficazes contra o ilícito em comento sejam criados. Sejam criados meios coercitivos/punitivos contra a corrupção e o nepotismo, mecanismos de punição severa dos detentores do poder, que dele se aproveitam em desprezo à moralidade. Urge, contudo, tutelar os direitos fundamentais do obreiro, fazendo-o por intermédio da atribuição de eficácia ex nunc à decretação de nulidade dos contratos de trabalhos celebrados entre Administração Pública e obreiro não concursado.

Ao fim, resta acreditar e esperar que a jurisprudência uniformizada se faça reflexo dos interesses máximos da Norma Fundamental, preservando o valor do trabalho acima das formalidades desvencilhadas da realidade social.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos.  Manual de direito administrativo. 22 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 8 ed. São Paulo: LTr, 2009.

GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. O respeito ao princípio da dignidade do trabalhador pelo Estado-empregador: a inafastável observância da garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais e do princípio da proporcionalidade. Revista LTr, vol. 68, nº 03, Março de 2004. São Paulo – SP.

MENDES, Gilmar Ferreira. "Curso de Direito Constitucional"/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. São Paulo: Saraiva, 2008.

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Julgados trabalhistas de 1ª  instância. Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições Ltda., 1996.

SILVA, De Placido e. Dicionário Jurídico. 27 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.


Notas

  1. MENDES, COELHO E BRANCO, 2008, p. 831
  2. CARVALHO FILHO, 2010, p. 19
  3. BANDEIRA DE MELLO apud CARVALHO FILHO, 2010, p. 19
  4. CARVALHO FILHO, 2010, p. 20
  5. MENDES, COELHO E BRANCO, 2008, p. 333
  6.  GOMES, 2004.
  7. Idem
  8. SILVA, 2007, p. 964.
  9. DELGADO, 2009, p. 510.
  10. DELGADO, 2009, p. 512
  11. PAMPLONA FILHO, 1996, p. 134
  12. Idem
  13. PAMPLONA FILHO, 1996, p. 137.
Sobre o autor
Antônio Carlos Barros de Andrade Filho

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (BA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE FILHO, Antônio Carlos Barros. Da nulidade contratual à dignidade da pessoa do obreiro.: Ressignificando o ilícito administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2654, 7 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17499. Acesso em: 22 dez. 2024.

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