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Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e agrobusiness.

Centralização administrativa em detrimento dos imperativos de precaução, publicidade e autonomia federativa no âmbito da política nacional de meio ambiente

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Agenda 16/10/2010 às 08:45

3. OS BASTIDORES DA TRAMITAÇÃO DA NOVA LEI DE BIOSSEGURANÇA EM TORNO DO CARÁTER VINCULATIVO ATRIBUÍDO ÀS DECISÕES DA CTNBio

Há uma questão que parece difícil de ser respondida: porque o Congresso Nacional precisou elaborar uma nova Lei de biossegurança, quando se tinha uma em vigor, aprovada há menos de uma década, e em relação à qual, a atual que a revogou, não inovou no âmbito da proteção que se procurava instituir?

Talvez possamos começar a encontrar a resposta em meados de 2003, ainda no início do primeiro governo Lula, quando da extraordinária pressão efetuada pelo governador do Rio Grande do Sul, à frente das associações de produtores rurais do estado, e tendo como companheiro de viagem o ministro da agricultura, Roberto Rodrigues.

Tratava-se de resolver o problema criado em torno da colheita e venda de soja transgênica, plantada ilicitamente pelos ruralistas gaúchos, que exigiam sua "legalização".

À frente do problema colocou-se o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, que demonstrando inequívoca disposição centralizadora, organizou em torno de sua pasta uma comissão composta por nove ministérios.

Após a apresentação e discussão de inúmeras propostas – tais como a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta, no qual aqueles que plantaram soja transgênica ilegalmente se comprometiam a não mais o fazê-lo em desconformidade com a legislação em vigor e, tendo como contrapartida, a garantia de que o Estado adquiriria a produção, destinando-a para uso como ração animal, ou exportando-a para países nos quais inexistia restrição aos transgênicos -, optou-se, estranhamente, pela edição da Medida Provisória n. 113/03 (posteriormente convertida na Lei 10.688/03), por meio da qual se liberou a colheita e a comercialização daquela safra, no âmbito do território nacional – restringindo-se apenas a sua comercialização na forma de sementes, e exigindo-se a sua devida rotulagem.

Entretanto, o que mais chamou a atenção neste momento, foi o flagrante desrespeito a uma decisão da justiça, proibindo a comercialização de alimentos transgênicos em face da ausência de normas de segurança e rotulagem, a serem expedidas pela própria CTNBio, em total violação ao princípio da independência dos Poderes da República e da soberania das decisões judiciais pelos Poderes Executivo (que editou a MP – 113/03) e Legislativo (que converteu a MP na Lei 10.688/03), a pretexto de salvaguardar os interesses de um grupo de infratores da ordem jurídica.

"A 1ª. MP dos transgênicos, como ela ficou sendo chamada, desrespeitou claramente a sentença judicial de 1ª. instância do juiz Antônio Prudente, que proibia distribuição para consumo de alimentos transgênicos até que a própria CTNBio criasse normas para avaliação da segurança dos alimentos e rotulagem. Embora não tenha feito o mesmo em relação à parte da sentença que proibia o plantio sem prévio estudo de impacto ambiental – já que a MP autorizava a colheita mas não o plantio – é evidente que a MP perdoava um crime ambiental cometido em sã consciência por centenas de agricultores gaúchos que resolveram contrabandear e plantar soja transgênica, em vez de utilizar as variedades tradicionais disponíveis no mercado. O argumento publicamente apresentado para tal perdão era o fato de que essas centenas de agricultores enfrentariam a ruína, caso não pudessem vender suas safras. Nos bastidores do governo, no entanto, se dizia que melhor seria mudar a lei do que desmoralizar o Estado, pois esse não teria condições de fazer cumprir a lei em um Rio Grande do Sul praticamente sublevado". [07]

Todavia, durante o processo de tramitação da MP 113/03, deputados favoráveis à adoção indiscriminada dos transgênicos ameaçaram o governo com a proposição de emendas por meio das quais se autorizaria de vez o plantio e a colheita de soja transgênica.

Sem disposição para enfrentar tais interesses e, ao mesmo tempo, disposta a retardar uma confrontação interna ao governo com segmentos articulados em torno dos ministérios da saúde e do meio ambiente, a Casa Civil engendrou uma negociação em que se comprometeu a enviar à Câmara, no prazo de um mês, um novo projeto de lei sobre biossegurança – em contrapartida à aprovação da MP em sua versão original.

Assim, nas palavras de Marijane Lisboa, "num passe de mágica, se enterrava em vida uma lei que nunca foi revogada e se iniciava a lenda de que na ausência de legislação específica o país necessitava com urgência regulamentar a questão dos transgênicos".

Neste momento, contudo, os movimentos sociais e ambientalistas chegaram a ter um lampejo de esperança com relação a uma possível mudança de postura do governo, recentemente eleito com forte apoio da sociedade civil organizada, não obstante a decepção inicial, marcada por recuos acentuados na questão ambiental (mesmo quando comparados com o governo anterior), e pela suspeita de que a cúpula do poder, em sua essência, nutria uma concepção favorável aos transgênicos - expressão de sua conduta burocrática e oportunista, pautada em uma percepção "deslumbrada" da ciência, da tecnologia e do desenvolvimento econômico.

Nesta moldura, as reivindicações ambientalistas certamente pareciam coisa romântica, pouco prática, ou mesmo ignorante.

Ao identificá-los (os líderes governistas) como portadores de uma visão reducionista da política, e economicista da história, muitas lideranças ambientalistas começaram a desconfiar de que a nomenklatura petista havia decidido abandoná-las, em razão de novas alianças, mais adequadas à nova realidade de "quem tem responsabilidades com toda a sociedade, precisando ampliar suas bases políticas para se garantir a governabilidade".

Mas então, por um momento, o governo pareceu se abrir. O grupo de trabalho formado por representantes dos ministérios começou a se reunir e a ouvir as propostas dos representantes da sociedade civil, e, apesar de o prazo estabelecido pela Casa Civil para discussão ser exíguo, avançou-se rumo a um projeto apoiado pela maioria absoluta dos representantes ministeriais e pelo conjunto das entidades representativas da sociedade civil.

No entanto, logo em seguida, nova decepção. Tudo se modificou quando se tentou resolver a questão do caráter vinculante dos pareceres técnicos da CTNBio. Neste ponto, a polarização se acentuou e o governo não hesitou em escolher o lado de quem deveria tomar. E não foi o da sociedade civil e dos movimentos ambientalistas. Os velhos aliados perderiam mais uma...

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"O mesmo grupo de representantes dos ministérios começa a trabalhar na sua nova tarefa, realizando reuniões quase diárias, pressionado pela Casa Civil a elaborar o projeto de lei dentro do exíguo prazo de 30 dias. A Casa Civil organizou um ciclo de debates no Congresso para ouvir a sociedade civil e incorporar suas demandas. Embora esvaziado e sem repercussão na mídia, é importante citar esse evento, pois foi a única oportunidade que os movimentos sociais preocupados com um uso seguro de transgêncios tiveram de fazer chegar suas opiniões aos assessores da Casa Civil, já que nunca, durante os 17 meses do governo Lula, as entidades ambientalistas, de consumidores e cientistas independentes conseguiram ser recebidas pelo ministro José Dirceu ou pelo próprio Presidente da República. Mas como era de se esperar, apesar do trabalho intenso, não foi possível ao grupo de representantes dos ministérios chegar a um acordo sobre o futuro projeto de lei. Embora tenha havido consenso em relação a vários aspectos secundários, os ministérios divergiram quanto ao caráter vinculante do parecer da CTNBio, e portanto, quanto a quais instancias administrativas caberia dar a palavra final com relação à liberação de transgênicos para uso comercial e de saúde". [08]

Afastadas as entidades representativas da sociedade organizada, decepcionadas com a condução do processo pela Casa Civil, a discussão permaneceu intra-muros, entre os representantes dos diversos ministérios.

Além da questão do caráter vinculante atribuído ao parecer técnico da CTNBio, outro ponto de discordância se dava em torno do poder concedido à CTNBio, para dispensar o licenciamento ambiental e o estudo de impacto ambiental.

Insistiu-se nessa proposta mesmo em face do argumento que, concentradas todas essas atribuições nas mãos da CTNBio, o próprio CONAMA, como órgão centralizador da política nacional de meio ambiente, e o IBAMA, enquanto principal órgão gestor dos processos de licenciamento ambiental, ficariam esvaziados, passando a terem função meramente protocolar.

Ademais, neste momento, depois de mais de oito anos de funcionamento, inclusive sob o governo Lula, já era bastante conhecido o perfil da maioria dos conselheiros da CTNBio - tida pela grande maioria dos ambientas como pró-transgênicos "puro-sangue", composta basicamente por pessoas ligadas à área de biotecnologia, e não de biossegurança.

Não por acaso, a comissão foi acondicionada junto ao Ministério da Ciência e Tecnologia, cabendo a este ministro escolher seus representantes a partir de listas tríplices facilmente "negociáveis", privilegiando-se para a sua indicação entidades "confiáveis".

A trajetória da CTNBio até então não deixava dúvidas quanto à sua parcialidade. E no que concerne às entidades que em seu interior tentaram algum tipo de intervenção como o IDEC, ou conselheiros que procuraram fazer valer o seu direito de opinião, como os representantes dos Ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, logo se percebiam em flagrante minoria, tendo que optar entre se retirar ou resignar-se à mera figuração.

Ao final das contas, foi enviado ao Presidente da República duas propostas, uma apoiada por oito ministérios, defendendo parecer não-vinculante, e outra, apoiada por dois ministérios, defendendo o parecer vinculante.

Não obstante, segundo informações de bastidores, relatadas por Marijane Lisboa, a Casa Civil, fortemente influenciada pelo Ministro Gushiken, elaborou proposta definitiva, que concedia à CTNBio o parecer vinculante.

Essa postura teria gerado uma revolta generalizada entre os representantes dos demais ministérios, com ameaça de renúncia de ministros, o que acabou por forçar um acordo no âmbito do PT, em que se optou por enviar para à Câmara uma proposta que contemplava os representantes da maioria dos ministérios (parecer não-vinculante).

Mas ao que parece, tal procedimento não passou de uma manobra astuciosa da Casa Civil. Isto porque, na Câmara, o líder do governo no Congresso, deputado Aldo Rebelo, re-introduziu no seu relatório, a proposta de parecer vinculante, além de criar uma nova instância, denominada Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), composto por 11 ministros, sob a presidência da Casa Civil, como última instância em matéria relativa ao uso comercial de transgênicos, assumindo ainda a função de Câmara Recursal em caso de divergências entre a CTNBio e quaisquer dos órgãos de registro e fiscalização dos respectivos ministérios, ou entre a primeira e alguma agência executiva como o IBAMA ou a ANVISA. Os que discordassem da CTNBio, teriam 30 dias, contados a partir da publicação do parecer, para recorrer ao CNBS.

Foi também nesse momento, que o lobby pró-transgênico demonstrou um extraordinário senso de oportunidade (ou talvez atitude oportunista, diriam seus adversários), quando, por intermédio do relator, incluiu no Projeto de Lei, o regramento de matéria totalmente estranha à biossegurança: a regulamentação de pesquisas com células-tronco.

A introdução deste assunto, de natureza ética e de alta carga emocional, envolvendo questões religiosas e mobilizando as expectativas de milhares de portadores de deficiência, funcionou como verdadeira cortina de fumaça, desviando a atenção da mídia e de boa parte da opinião pública do verdadeiro epicentro da questão: a normatização e a fiscalização de produtos, pesquisas, e atividades envolvendo segurança em torno de OGMs e seus derivados.

Depois de aprovado na Câmara, o projeto foi enviado ao Senado, onde recebeu a relatoria do Senador Osmar Dias, reconhecido pelos ambientalistas como entusiasta da liberalização da comercialização de produtos transgênicos.

Tratou o Senador de ampliar ainda mais os poderes da CTNBio, vedou ao IBAMA solicitação de quaisquer outras informações do requerente a partir do momento em que a CTNBio, por seu parecer fundamentado, libere para a comercialização um determinado OGM.

Além disso, transferiu do IBAMA para a CTNBio a prerrogativa para decidir acerca da conveniência de se solicitar o licenciamento ambiental, decidindo sobre a necessidade de realização de estudo prévio de impacto ambiental. As mencionadas modificações foram finalmente aprovadas com o PL, convertendo-se na Lei 11.105/05.

Como se verifica pelo exposto nesta rápida retrospectiva, independentemente do conteúdo normativo específico da Lei 11.105/05, que a seguir discutiremos, e cujos desdobramentos jurídicos podem ser distintos daqueles elementos que politicamente motivaram a elaboração da norma, o texto ao final aprovado ilustra uma clara vitória dos interesses ligados às grandes corporações transnacionais do setor de biotecnologia e seus aliados domésticos.

Representou também, a contrário senso, uma derrota política significativa dos setores mobilizados da sociedade civil que até então haviam constituído uma aliança histórica com as forças políticas que conduziram o atual governo ao poder.

Os interesses das corporações transnacionais, associados aos segmentos internos beneficiados pelo agronegócio, forjaram um bloco extremamente compacto e influente de interesses, e acabaram por cooptar todas as forças políticas que, em tese, poderiam opor algum tipo de resistência às suas pretensões, chegando até mesmo ao ponto de renegar seus aliados históricos.

"Ora, essa situação merece uma análise mais apurada. Por que governos democráticos e com bases populares como o governo do FHC e do Lula não querem discutir a questão dos transgênicos com a sociedade? Ou, melhor ainda, por que esses dois governos, sua base aliada e também a sua oposição, à revelia de todo o bom senso administrativo querem retirar das agências executivas, e em particular do IBAMA, a competência para avaliar a segurança ambiental e de saúde e entrega-las a uma ‘panelinha’ de cientistas, sem vínculos empregatícios com a coisa pública? Não será porque por detrás do IBAMA e do Ministério do Meio Ambiente antevêem aqueles mesmos movimentos sociais que eles insistem em afastar do debate? [09]

A resposta às indagações da pesquisadora só podem ser afirmativas. Mas, ainda assim, fica a inquietação: por quê?

Ao que tudo indica, os motivos dessa conduta ocultam-se por detrás do enfraquecimento estrutural do próprio Estado nacional diante do "rolo-compressor" do processo de globalização.

As corporações transnacionais, ao imporem por meio dos grandes comitês que em nível mundial representam seus interesses (tais como a OMC, o FMI, o Banco Mundial, dentre outros), às sociedades periféricas, a adoção de uma pauta de liberalização financeiro-comercial e de desregulamentação da atividade econômica, fizeram com que tais Estados renunciassem a parte das suas já exíguas margens de manobra, por meio das quais poderiam promover políticas pró-ativas de desenvolvimento nacional.

Sendo assim, o modelo de desenvolvimento dependente e associado aos centros hegemônicos do capitalismo mundial, que marcou a história de muitas sociedades da periferia do capitalismo – sobretudo na América Latina –, parece se reproduzir ao infinito.

A adoção voluntária e entusiasmada do receituário neoliberal por muitos governos de centro esquerda ao longo da década de 90, abriu fendas ainda mais profundas, acentuando a fragilidade financeira dessas sociedades diante do humor dos mercados sempre instáveis.

Nesse sentido, mesmo agrupamentos políticos que se notabilizaram ao longo de sua história por um combate aguerrido a todas as manifestações de políticas imperialistas, e que sempre propugnaram por um projeto de desenvolvimento autônomo, que colocava na pauta do dia a emancipação dos secularmente excluídos, ao chegarem ao poder, perceberam que podiam muito pouco – ou quase nada.

Passaram, por conseguinte, a se contentar com políticas assistencialistas, "meia-sola", agrados pirotécnicos à população em geral, que não raro descambam para a demagogia e o populismo.

Ao mesmo tempo em que tentam agradar as "velhas bases" com puro jogo de cena, abrindo os palácios aos pobres (mas não as portas da verdadeira cidadania), esses grupos, outrora aguerridos defensores dos interesses populares e de uma ética republicana de perfil quase franciscano, são obrigados a ceder ao jogo da realpolitik, agarrando-se ao poder pelo poder, montando aparelhos, verdadeiros bunkers dentro do Estado, inebriados por uma percepção paranóica da realidade e deslumbrada do exercício do poder.

Então, a pretexto de garantir-se a tal "governabilidade" e perpetuarem-se no poder, procuraram tirar vantagem das práticas que, até então, abominavam, entregando-se ao jogo fácil da ação fisiológica-clientelista (procurando cooptar antigas lideranças populares atando-as aos favores do Estado), e por meio do rateio patrimonialista da coisa pública entre as diversas facções político-partidárias que se propõe a alugar aos ocupantes do poder o seu apoio.

Nesse contexto, imaginando-se a todo instante vítimas das intrigas e armadilhas dos antigos ocupantes da maquina estatal, não admitindo perdê-la depois de tantos anos de sacrifício, os novos administradores do poder estatal procurarão também limitar ao máximo os seus adversários, evitando confrontar-se com os mais poderosos (sobretudo aqueles oriundos do exterior), adulando-os, cedendo às suas demandas, e, se for o caso, até fazendo "negócios" com eles.

O enfraquecimento estrutural do Estado, a ausência de um efetivo projeto de desenvolvimento nacional, capaz de resgatar o desejo de soberania e de emancipação, adaptado às circunstâncias criadas pela nova divisão internacional do trabalho, talhadas pela revolução tecnocientífica e pela globalização, criam as condições para a imposição, sem limites, dos interesses das grandes corporações transnacionais e para um Estado de corrupção permanente [10], na periferia do modo de produção capitalista.

Este quadro político talvez acabe por obrigar a sociedade civil e as demais instâncias estatais não cooptadas pelos interesses econômicos hoje hegemônicos, a concentrar seus esforços na defesa do meio ambiente, mobilizando diretamente a sociedade, esclarecendo-a acerca dos riscos contidos na forma pela qual os Poderes Executivo e Legislativo vêm tratando a matéria e recorrendo ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Isto porque o meio ambiente, no âmbito da ordem constitucional brasileira, é um direito fundamental de natureza singular e deve ser tutelado não apenas em favor das gerações presentes, mas também das futuras. Como já afirmamos, trata-se daquilo que Canotilho denominou por "justiça intergeracional".

"O sujeito relevante já não é apenas a pessoa ou grupos de pessoas. Passa a ser também o ‘sujeito geração’. Na verdade, os comportamentos ecológica e ambientalmente relevantes da geração atual condicionam e comprometem as condições de vida das gerações futuras. Trata-se de uma idéia que, como se sabe, tem sido arquitetada sobretudo desde o Relatório Bruntland de 1987 sobre o chamado desenvolvimento sustentado [...] A responsabilidade de todas as forças sociais – a chamada shared responsability – aponta precisamente para a descoberta de critérios de delimitação desta responsabilidade que não ponham em causa, apesar de tudo, a dimensão subjetiva dos direitos. No plano concreto deste trabalho, isso significa que o recorte de um dever fundamental ecológico, em nome da justiça intergeracional, pode implicar a tomada em consideração do ambiente no balanceamento de direito, acentuado-se os ‘momentos de dever’ até agora desprezados na dogmática jurídica". [11]

No âmbito dos modernos "Estados Sociais de Direito", o Poder Judiciário deve interpretar e aplicar a ordem jurídica nos termos estabelecidos pela Lei Fundamental, pelo "contrato social", constituído na forma de uma Constituição rígida, que estabelecendo a sua supremacia, limita a pretensão político-administrativa das chamadas "maiorias de circunstância".

O princípio da supremacia da constituição implica, pois, uma exegese cuidadosa das inovações infraconstitucionais introduzidas pelo legislador ordinário, interpretando-as sempre à luz dos princípios e valores basilares que constituem a ordem jurídica nacional, evitando supressões ilegítimas por parte das maiorias sobre as minorias – fundados no princípio da proibição de retrocesso, aplicados especialmente aos direitos econômico, cultural e social, nos quais o direito ao meio ambiente equilibrado está inscrito.

E mais ainda, a natureza intergeracional dos direitos fundamentais ambientais, confere aos princípios e valores que os instituem, um caráter dinâmico que obriga às Cortes Constitucionais apreciá-los em consideração com as condições concretas de cada momento histórico, mas sempre à luz do porvir, sem nunca se descuidar, por exemplo, das cautelas inspiradas em um outro princípio fundamental para a correta compreensão da questão ambiental, e ao qual voltaremos mais adiante: o princípio da precaução.

"As normas-fim e normas-tarefas ambientalmente relevantes são normas constitucionais impositivas. Por isso impõe ao legislador e a outras entidades (autonomias locais) o dever de adotar medidas de proteção adequadas à proteção do ambiente. Mas não apenas isso. A doutrina salienta que as normas-fim ecológicas e ambientais constitucionalmente consagradas têm um caráter dinâmico que implica uma permanente atualização e aperfeiçoamento dos instrumentos jurídicos destinados à proteção do ambiente perante os novos perigos de agressões ecológicas [...] a Constituição proíbe através de normas-fim ou de normas-tarefas, o retrocesso ecológico? Por outras palavras: haverá aqui uma proibição constitucional de retrocesso ecológico-ambiental? A interrogação, limitada ao ambiente, transporta grande dose de ambigüidade. O retrocesso ecológico-ambiental refere-se à situação global ecológica ou aos bens ecológicos concretamente considerados? O agravamento da situação ecológica global parece ser o critério básico, pois só assim é possível proceder em alguns casos à ponderação ou balanceamento de bens. No entanto, relativamente aos recursos é possível uma maior e melhor concretização sobre o ponto de vista da operacionalização do princípio da proibição do retrocesso ecológico. A água, os solos, a fauna, a flora, não podem ver aumentar o ‘grau de esgotamento’ como limite jurídico-constitucional da liberdade de conformação dos poderes públicos (atenção à possibilidade de regeneração, atenção ao dano)." [12]

Sobre o autor
José Carlos Evangelista de Araújo

Advogado. Graduado em Direito e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Direito Constitucional e Doutorando em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor de Direito Constitucional, leciona também Direito Administrativo, Direito Internacional Público e Privado nos cursos de Direito e Relações Internacionais das Faculdades de

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, José Carlos Evangelista. Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e agrobusiness.: Centralização administrativa em detrimento dos imperativos de precaução, publicidade e autonomia federativa no âmbito da política nacional de meio ambiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2663, 16 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17530. Acesso em: 5 nov. 2024.

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