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Pacificação social e direito solidário

Agenda 10/10/2010 às 11:19

Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Sociedade ocidental contemporânea. 3. Individualismo social. 4. Direito e solidariedade. 5. Considerações finais. 6. Bibliografia consultada.

Resumo: A hodierna sociedade ocidental se caracteriza pela sua complexa conjunção de fatores culturais, econômicos e políticos. As políticas públicas adotadas pela maioria dos países do Ocidente têm sido direcionadas à formação de dois sistemas universais de proteção, um econômico e outro dos direitos individuais fundamentais. A desenfreada universalização de direitos e deveres resultou na criação de um ser humano perdido em seu espaço social e individual. Uma excessiva valorização do indivíduo tem tido como conseqüência o seu afastamento das questões sociais. O reavivamento do princípio da solidariedade poderia amenizar as atuais problemáticas enfrentadas por sociedades marcadas pela multiculturalidade e pelo individualismo.

Palavras-chave: sociedade; individualismo; solidariedade.


1. Considerações iniciais

Dentre os vários aspectos culturais que interagem no meio social, aqueles relacionados à economia e ao exercício dos direitos fundamentais são os que têm causado uma maior influência no viver e no pensar dos indivíduos. As políticas internas e externas dos países ocidentais, principalmente dos mais desenvolvidos, pregam que cabe ao Estado a garantia da eficácia dos direitos individuais e políticos, contudo, quanto aos direitos sociais, defendem que o Estado não é o responsável pela satisfação desses direitos, mas apenas o regulador dos mesmos.

Essa ideologia política ocidental encontra seu viés antagônico na grande maioria dos países orientais. Esse desencontro de concepções ocorre porque a cultura política dos países orientais os predispõem a proteger as necessidades coletivas, o que os difere dos ocidentais, que optaram por priorizar os interesses dos particulares.

Outro fator que também motiva um permanente desacerto entre orientais e ocidentais está relacionado à liberalização econômica em âmbito global, isso porque os orientais vêem essa globalização da economia como uma forma dos ocidentais subjugarem suas tradições, inclusive as religiosas, o que tem gerado intolerância e mortes.


2. Sociedade ocidental contemporânea

É visível que, contemporaneamente, a sociedade ocidental é regida por uma política econômica estatal que prega a proteção de direitos individuais e, em decorrência disso, simultaneamente causa o afastamento do Estado das suas tarefas protetoras de direitos sociais. A sociedade contemporânea passa por um momento histórico de re-interpretação de conceitos tradicionais para mantê-los vigentes na atualidade, pois não se permite olvidar que, em síntese, o homem é um produto histórico-cultural.

O ser humano está em constante busca da compreensão do significado da realidade social na qual se encontra. Atualmente, em virtude do desenvolvimento científico-tecnológico que propicia uma irrestrita difusão de conhecimentos, se abriram novos questionamentos acerca da própria origem do ser humano. O homem deixou, desde o início da idade moderna, de pautar a sua realidade em crenças e direcionou-se para a racionalidade. De tal sorte, o Estado também seguiu o mesmo caminho e passou a se especializar na condução dos interesses públicos, afastando-se da influência religiosa nos assuntos políticos.

Questões políticas e religiosas sempre conduziram a conduta social humana, mas com o passar do tempo as questões econômicas parecem ter direcionado tanto os interesses políticos quanto religiosos. Os fenômenos da globalização e da liberalização econômica há algum tempo que vêm deixando marcas culturais expressivas, notadamente em relação à desigualdade social que se torna cada vez mais evidente, principalmente nos países pouco desenvolvidos tecnologicamente. Salienta-se que outro importante resultado decorrente dessa política de globalização das relações comerciais e humanas diz respeito aos direitos e deveres que surgiram ou foram alterados em razão da internacionalização de interesses.

Essa política de globalização foi responsável pelo direcionamento dos indivíduos para padrões de interesses particulares que passam a restringir a capacidade desse indivíduo em exercitar os seus direitos particulares de modo a se comprometer com o respeito ou a busca pela modificação ou qualificação de sua vida em sociedade. Diante desse conflito entre as questões econômicas que norteiam os interesses pessoais e a disposição em atuar em prol do interesse coletivo é que Marcelo Baquero atenta para a "articulação de interesses, a participação comunitária que lhes facilita o acesso e controle de recursos disponíveis, a fim de que possam levar uma vida autodeterminada, auto-responsável e participar do processo político (BAQUERO, 2005, p.39).

A questão principal não está em entender como o panorama social evolui, mas como o indivíduo se insere no meio dessa mudança de comportamento mundial, pois o ininterrupto desenvolvimento tecnológico, notadamente nas comunicações, resultou em um sujeito mais afastado dos espaços públicos e mais voltado aos interesses particulares. Essa tendência comportamental dos indivíduos tem permitido o surgimento de duas graves e comprometedoras conseqüências para o progresso harmônico e coeso da sociedade, quais sejam: um crescente processo de dissociação entre os indivíduos e um desinteresse dos mesmos pelas questões sociais de ordem política.

No mundo ocidental estão cada vez mais presentes as preocupações estatais com o respeito e a defesa dos direitos humanos. Esse foi o grande passo dado pelo liberalismo econômico, ou seja, a proteção dos direitos humanos. Ocorre que, como os direitos humanos se baseiam no direito à liberdade, há a possibilidade de segregação interpessoal com o afastamento das circunstâncias que caracterizam a convivência social e, portanto, há uma alienação dos indivíduos pelo desejo comum em promover o desenvolvimento da humanidade.

Diante desse quadro, a fim de frear o desenvolvimento de indivíduos sentimentalmente comprometidos unicamente com a satisfação dos seus próprios interesses, é que se faz cogente o estabelecimento de parâmetros para que haja um equilíbrio entre as necessidades individuais e coletivas. Frente a esse aspecto pode ser citada a concepção oriental, a qual prega a abdicação dos desejos individuais em detrimento do bem-estar coletivo. Pode-se abstrair da filosofia oriental que, caso os interesses individuais se sobreponham aos sociais, se permitiria a minimização da ordem social, o que causaria o estancamento do progresso da sociedade.

Contudo, a globalização não possibilita apenas o incremento da individualidade econômica ou, de outra forma, de um ser humano intelectualmente preocupado tão-somente com seus próprios interesses. A globalização gera, ainda, um afastamento alheio às vontades pessoais, a chamada exclusão social, originada pela não valorização das razões que motivam a convivência entre os indivíduos e que, segundo Habermas, caracteriza

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o ponto de vista moral que escapa a nosso desígnio e se impinge a nós, e não uma ordem moral suposta, cuja existência como que independeria de nossas descrições. Não foi o mundo social em si que nos escapou, mas as estruturas e procedimentos de um processo argumentativo que se presta tanto à criação quanto à descoberta das normas de um convívio regulado com retidão (HABERMAS, 2002, p.52).

Porém, além da liberalização mundial da economia favorecer a instabilidade econômica dos indivíduos, ele vem gerando, em virtude da concorrente e irreversível internacionalização cultural, o surgimento de indivíduos ocidentais e orientais perdidos em seu espaço social (público) e individual (familiar), ou seja, induz a formação de sujeitos desvinculados de quaisquer laços de convivência interpessoal. E, ainda, trouxeram como resultado mais grave um ser humano de concepções egoísticas, preocupado quase que exclusivamente consigo mesmo e esquecido dos princípios de justiça que, se não conscientizarem toda a sociedade, podem levar à degradação de um convívio social pacífico e equilibrado. Dentre os princípios que a sociedade parece necessitar para alcançar um mínimo de justiça e fomento social em âmbito internacional o mais relevante parece ser o da solidariedade entre os indivíduos.

Com a afirmação das doutrinas ocidentais defensoras dos direitos humanos se fortalece cada vez mais a idéia de que cada indivíduo é parte independente no funcionamento do complexo sistema social e tem a razão da sua existência dependente da sua inter-relação com os outros indivíduos. Frisa-se que essa situação não muda, mesmo que mudem os paradigmas políticos, econômicos, culturais, religiosos, pois o ser humano é incontestavelmente um ser sentimental.

O que é inegável é que o ser humano necessita de um reconhecimento externo (social) para se sentir plenamente realizado, mesmo que a cultura ocidental preconize essencialmente a defesa dos direitos individuais, os quais, se não forem ponderados (aliás, como deveria ser toda a conduta humana), podem levar o indivíduo a um extremismo perigoso, onde o homem se tornaria um ser individualista (egoísta) e insensível, portanto, contrário a sua própria natureza.

Procurando evitar esses absolutismos do comportamento humano, os quais sem dúvida alguma comprometeriam o progresso e a pacificação social, é que se afirma que através da solidariedade se possibilitaria ao ser humano a conquista de tais objetivos, bem como obter o seu reconhecimento perante os outros indivíduos e, diante disso, se sentir motivado a contribuir para a realização dos interesses coletivos.

Deve-se reconhecer que quaisquer excessos nas ações humanas só colaborariam com o desenvolvimento de uma sociedade formada por sujeitos afastados da noção de solidariedade pelo próximo e composta por uma grande massa de pessoas excluídas do processo evolutivo. Porém, também se deve evitar a preponderância desarrazoada dos interesses coletivos sobre as manifestações individuais, impedindo que esses sejam anulados.

Em síntese cabe dizer que o sujeito contemporâneo, tão cheio de direitos fundamentais individuais, se encontra em um dilema que pode ser expresso na frase do poeta Fernando Pessoa, "eu vejo-me e estou sem mim, conheço-me e não sou eu".


3. Individualismo social

Ao pensarmos em direitos humanos não podemos concebê-los como uma estrutura padrão pronta para ser aplicada a todos os casos concretos, mas sim compreendê-los de acordo de uma análise crítica dos contextos sociais e suas constantes transformações. A aplicação irrestrita do princípio da igualdade, base dos direitos humanos, não parece ser compatível a todas as formas de sociedade, mas permite o estabelecimento de parâmetros mínimos de segurança para o convívio social, principalmente em sociedades que comportam diversidades étnicas e culturais.

Os direitos humanos, em virtude das peculiaridades entre as sociedades e das distintas origens históricas que as mesmas desenvolveram, liberam uma enormidade de concepções acerca da dimensão valorativa dos direitos essenciais a todas as pessoas. Contudo, se deve evitar confundir a universalidade dos direitos humanos com a inserção de uma cultura mundial e uniforme. Tal posicionamento se deve ao fato de que, além de ser uma prática utópica, a pretensão de se fixar uma cultura única em nível mundial somente acarretaria o incremento dos já existentes conflitos internacionais.

A proposta, portanto, é do estabelecimento de valores humanos universalmente aceitos, os quais sejam baseados nas reivindicações éticas e históricas dos indivíduos e não, como freqüentemente ocorre, em desígnios políticos pessoais de governantes que confundem seus ideais com os ideais da própria sociedade governada. Nesse sentido Paulo Vizentini, ao se reportar sobre o contexto relacional entre o indivíduo e sua comunidade, atenta que

as partes que entram na composição de um sistema social são menos importantes do que o próprio sistema e as relações que o constituem; a menos, é claro que aconteça que as partes sejam sistemas sociais. Assim, seres humanos individuais são analiticamente sem importância, exceto em relação à posição que ocupam em sistemas sociais. Este fato, porém, não os deixa fora do contexto sociológico, uma vez que virtualmente tudo que experimentamos e fazemos, relaciona-se de alguma maneira com as limitações impostas pelos sistemas sociais (VIZENTINI, 2002, p.209).

Diante da necessidade de se evitar que as constantes transformações sociais movidas por questões culturais, econômicas e religiosas sejam sempre as causadoras de instabilidades entre sociedades e indivíduos é que se exige que a dignidade humana seja apresentada política e juridicamente em duas circunstâncias, uma individual pautada pela moral e outra social, baseada na ética. Entretanto, a dificuldade em encontrar um meio termo para a fixação de uma moral e uma ética de amplitude mundial está na exigência de que indivíduos e sociedades têm pelo reconhecimento de suas identidades nos contextos onde estão inseridos.

Dessa forma, considerando que foram os fatores históricos e sociais que pautaram a evolução humana em qualquer sociedade é que possibilita afirmar que nenhuma cultura tem plena autenticidade sobre suas pertenças culturais, pois a cultura humana foi desenvolvida, nos últimos três mil e poucos anos, a partir da conquista de territórios que já estavam povoados e possuíam condições culturais diferentes das dos seus conquistadores. Assim, buscando um desenvolvimento harmônico entre os povos, esses deveriam se aproximar mais pelas suas origens comuns, que são muito maiores que eles mesmos imaginam, do que pelas suas diferenças.

Quanto às diferenças culturais de cunho religioso-político, que denotam a maior dificuldade de diálogo, elas não precisam ser entendidas como intransponíveis, pois efetivamente não o são. Mas, essa cogente relativização do fundamentalismo religioso-político, quer seja ocidental ou oriental, que talvez seja a única forma de evitar as constantes guerras e insegurança mundial, só seria possível se estas culturas divergentes estivessem dispostas a mediar concessões recíprocas fundamentadas em uma moral solidária, o que resultaria em um panorama mundial equilibrado e propício ao desenvolvimento do bem-estar internacional.

Na verdade, se verifica que só é possível haver um engajamento entre indivíduos, tanto nas relações internas quanto externas da sociedade a qual pertence, se esse for voltado para a preservação e o desenvolvimento cultural com respeito à liberdade individual. Pois, o que existe é uma interdependência entre o individual e social. Se houver uma liberalidade generalizada dos direitos individuais, se terminaria vivendo em anarquia, causando insegurança à sociedade e aos indivíduos, do contrário, se o interesse for exclusivamente social, os indivíduos, principalmente daqueles que compõem a base social, não teriam quaisquer interesse em promover o desenvolvimento da sociedade, pois se sentiriam desmotivados pela falta de valorização externa que o ser humano necessita para se auto-afirmar.

Dessa forma, a mais plausível solução para o antagonismo entre necessidades individuais e sociais seria a relativização do exercício de direitos, através de concessões de cunho solidário do indivíduo para com a sociedade e dessa para com aquele. Ressaltando que é o reflexo da liberdade individual no meio social que pode propiciar um indivíduo interessado no fomento de sua sociedade, pois o ser humano carece emocionalmente, para se satisfazer pessoalmente, que seja reconhecido e valorizado perante seus pares.


4. Direito e solidariedade

O Direito, compreendido em sua função relacional social, possibilita a existência de comunhão jurídica entre os indivíduos e consecutivamente entre os diversos direitos que compõem as relações sociais. Nesse viés, diante da cogente colaboração entre os indivíduos a fim de que se construa uma sociedade que permita melhores condições de vida é que os indivíduos necessitam desempenhar suas tarefas como ajudantes reciprocamente interessados em um desenvolvimento equânime da sociedade. Para isso, os mesmos devem suplantar a perspectiva de interesses unicamente individuais pela valorização da idéia do reconhecimento mútuo de direitos interpersona.

O indeclinável caráter social do Direito implica concomitantemente em uma correspondência entre direito e dever. Pois, os indivíduos devem, como regra básica do bom convívio social, respeitar os direitos dos seus pares para exigirem o correspondente respeito aos seus direitos e, caso se reduza essa correspondência entre direito e dever, poderia a própria ordem jurídica e social ficar comprometida. Portanto, o que deve ser buscado é um equilíbrio entre os deveres individuais sociais e os direitos particulares dos indivíduos através de ações solidárias.

O filósofo alemão Roger Scruton ao se manifestar sobre a relação entre indivíduo e sociedade assenta que:

A condição de homem exige que o indivíduo, embora exista a aja como ser autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar (SCRUTON, 1986, p.156).

É aceito pela maioria das doutrinas jurídicas modernas que cabe a cada ser humano o direito de liberdade e que esse direito à liberdade está vinculado à vida em sociedade, o que é fundamental para a existência humana. Quanto ao Direito, ele só pode se desenvolver e fazer sentido em um ambiente coletivo, servindo para proteger o indivíduo da violência das outras pessoas e do próprio Estado, que surge quando interesses individuais ou coletivos se contrapõem.

Para que os indivíduos exerçam sua autonomia ou liberdade perante outros indivíduos e também frente ao Estado, deve essa liberdade ou autonomia ser assegurada juridicamente, como meio de possibilitar e garantir a associação entre outros indivíduos autônomos e livres, formando grupos de interesses, que se complementem individual e socialmente através de uma dependência mútua.

Da mesma forma que o direito à liberdade, os direitos humanos também contêm várias dimensões sociais, uma vez que espelham multidimensionalidade da existência social das pessoas na esfera política e jurídica. Ademais, a possibilidade do indivíduo se proteger individualmente na defesa dos direitos humanos é que permite que o indivíduo busque sua emancipação no meio social, mas não significa que é a antítese entre interesses individuais e sociais que dificultam a emancipação dos direitos humanos. Nesse prisma, se verifica que o que realmente restringe a liberdade nos direitos humanos é a opressão estatal ou da comunidade da qual o indivíduo participa, notando-se, ainda, que a própria relativização entre os diversos direitos humanos também decorre do efetivo exercício desses direitos de liberdade, os quais são concedidos conforme os interesses do Estado e da comunidade em dado momento histórico.

Voltando-se para uma percepção relativista dos direitos individuais liberais, os quais contrapõem a visão autoritária de valores comunitários, cabe destacar que os direitos individuais liberais são sempre direitos sociais, pois é através dos direitos sociais que se possibilita aos indivíduos se sociabilizarem. A nítida indissociabilidade entre os direitos individuais e comunitários faz vislumbrar que ambos os direitos são tidos como liberdades sociais fundamentais e, portanto, devem se complementar mutuamente na concretização de uma sociedade libertária, orientada pela dignidade humana e pela solidariedade.

A relação entre os indivíduos é normalmente marcada pelo utilitarismo individual ou pela necessidade de reconhecimento recíproco. Isso ocorre para se afastar a idéia do pensamento filosófico ocidental de que há uma primazia do Estado sobre o indivíduo e propor, de modo oposto, a imposição de um interesse coletivo de base política democrática sobre a totalidade do Estado, pois esse só é racionalmente exigido se propiciar o desenvolvimento social. Esse tratamento democrático nas relações entre os indivíduos demonstra que há a necessidade de respeito recíproco entre os interesses sociais e individuais, mas que, para uma efetiva respeitabilidade desses interesses, depende de regulamentação. Isto ocorre porque a valorização ética do indivíduo depende, para que ele seja realmente levado a sério como sujeito moral, de como ele se vê representado e aceitado no meio social, o que se alcançaria com a prática equilibrada entre políticas estatais individualistas e aquelas de ideologia comunitarista.

O relativismo na defesa dos interesses sociais e individuais, se não for aplicado por meio de uma concepção de justiça, na qual preponderem os princípios da igualdade na distribuição de direitos e de solidariedade na efetivação social desses direitos, pode a pacificação social não passar de mera utopia. A importância do princípio da igualdade transcorre da necessidade de se evitar que os indivíduos se sentam inferiorizados em relação aos outros indivíduos e quanto ao princípio da solidariedade, o mais relevante é que os indivíduos se sintam responsáveis uns pelos outros, propiciando, em virtude disso, que os indivíduos se sintam responsáveis por toda a sociedade.

A liberdade individual no exercício de direitos, que para ser válida socialmente depende imprescindivelmente de uma respeitabilidade recíproca desses direitos, obviamente precisa ser protegida, mas não somente quanto ao seu caráter físico, também o devendo ser no seu aspecto moral, pois é na sua consciência que o indivíduo se sente realizado e é onde se opera a sensação de felicidade. Em síntese, não é a imposição estatal que fará o indivíduo se animar e se esforçar para que a sociedade se desenvolva, mas a salvaguarda de direitos e a valorização individual, tanto pelos seus pares quanto pelo Estado, é que favorecerá indivíduos felizes e motivados a trabalharem conjuntamente pelo bem social.

Assim, como se verifica que a existência do Direito é justificável se o Direito for considerado um meio social de reconhecimento mútuo. O direito individual à liberdade está, conforme Kant, pautado no princípio da reciprocidade, ou seja, que a liberdade dos indivíduos depende da compatibilização entre a liberdade desses indivíduos com a liberdade dos outros indivíduos. E, na consecução desse propósito de se efetivar esse respeito recíproco, isso só seria possível, ainda segundo Kant, se os direitos fossem concretizados através da legislação política. Assim, sendo o Direito um meio de relacionamento e regulação social, ele deve se antepor a um potencial antagonismo existente entre os indivíduos e entre os grupos de indivíduos, portanto, se os interesses das pessoas sempre convergissem em harmonia, não haveria necessidade de regulamentação jurídica.


5. Considerações finais

Vem se firmando o entendimento de que o indivíduo não deve ser apenas considerado uma ferramenta a serviço da formação do Estado, de modo que seus desejos pessoais sejam suprimidos pelos interesses públicos e, portanto, o deixaria infeliz e menos disposto no desenvolvimento da sociedade. Por outro lado, também se solidifica a noção de que o indivíduo não pode ser visto como um ser cheio de anseios particulares e autorizado, em razão da proteção que o Direito dá aos direitos fundamentais individuais, a utilizar de todos os meios para satisfazer esses anseios de forma que chegue ao ponto de se tornar indiferente às necessidades e ao sofrimento alheio.

Uma hipótese está na difusão do Princípio da relativização dos interesses humanos como modo de propiciar um desenvolvimento qualitativo e equitativo da sociedade. O que se propõe é um equilíbrio entre a satisfação pessoal, necessária para que o indivíduo se importe em fazer o melhor para sua sociedade e os interesses coletivos, que precisam ser respeitados para que haja uma organização social pacífica, pois a paz também é crucial para que o indivíduo se sinta tranqüilo e, portanto, possa se ocupar em produzir algo benéfico à sociedade.

Finaliza-se com uma observação a respeito de uma célebre e antiga frase: "A liberdade de um homem termina onde começa a liberdade de outro homem". Essa passagem sintetiza o Princípio da relativização dos interesses humanos, contudo, a complexificação da sociedade passou a exigir mais, o que fez cogente a instituição de políticas públicas internacionais comprometidas com a promoção dos Princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e da solidariedade.


6.Bibliografia consultada

BAQUERO, Marcelo. Um modelo integrado de democracia social na América Latina. Revista Debates, Porto Alegre, nº1, dezembro de 2005.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

KYMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea: Uma Introdução.São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995.

MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969.

SCRUTON, Roger. Authority and allegiance. In: DONALD, J.; HALL, S. (Org.). Politics and ideology. Milton Keynes: Open University Press, 1986.

TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. São Paulo: Loyola, 2005.

VIZENTINI, Paulo Fagundes. Os dez dias que abalaram o século XX. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução. In: SILVA, T. T. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. São Paulo: Vozes, 2000.

Sobre o autor
Fabio Trevisan Moraes

Policial Rodoviário Federal. Doutorando em Direito Penal. Mestre em Direito. Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Bacharel em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Fabio Trevisan. Pacificação social e direito solidário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2657, 10 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17591. Acesso em: 24 nov. 2024.

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