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Política criminal e intervenção mínima

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2 INSIGNIFICÂNCIA: PRINCÍPIO INFORMADOR DA ORDEM PENAL

A questão da insignificância é salutar para o Direito Penal. Tal assertiva decorre do caráter subsidiário deste ramo do direito. O Direito Penal existe para manter a ordem e só atua em casos excepcionais. Em regra, a tutela concedida pelos demais ramos é suficiente para garantir a paz social.

Liberdade é bem jurídico fundamental. Por ser garantia fundamental, qualquer medida que a contrarie deve ser entendida como excepcional, uma vez que a privação da liberdade só se justifica quando for essencial para o resguardo de outro bem jurídico de inquestionável valia, como a vida.

Quando se pensa na insignificância, resta assente que não apenas a tipicidade formal interessa ao Direito Penal. Furtar uma maçã é, sim, conduta típica. Diz-se isto porque a apropriação de coisa alheia se consubstancia. Nada obstante, não se afigura razoável uma ação penal pública incondicionada visando à aplicação de uma pena que varia de 1 a 4 anos, como dispõe o artigo 155 do Código Penal. Exatamente por isto resta pacificado que questões como esta precisam sem entendidas à luz do princípio da insignificância.

Quando se pensa na insignificância como princípio informador da ordem penal, coíbem-se situações como a configurada na seguinte notícia: "justiça demora 2 anos para decidir sobre furtos de R$ 1" [35]. Não é razoável se punir com a privação de liberdade quem tenha cometido delito de potencial ofensivo acanhado e cuja repercussão social seja mínima. Não nos parece plausível que o Estado gaste mais de R$ 1.000,00 [36] por mês para coibir condutas que representam, do ponto de vista objetivo, ofensa a centésimos deste valor. Não é razoável se jogar na conta da coletividade uma punição desta ordem, onde a persecução é muito mais onerosa que o bem da vida ofendido. Como aponta Marina Hamud de Andrade, defensora pública em São Paulo, "só de papel e tinta já vai esse valor" [37].

A hipótese das maçãs foi trazida para o corpo do texto. Do ponto de vista real, contudo, tem-se na decisão do juiz da 3ª Vara Criminal de Palmas, no Tocantins, Rafael Gonçalves de Paula, um exemplo concreto da aplicabilidade da insignificância. Sua decisão foi tão relevante que a Escola Nacional de Magistratura a incluiu em seu banco de sentenças.

A decisão interlocutória do juiz em referência foi pouco comum. Não é de se duvidar que nulidades sejam aventadas, afinal sua motivação não perpassa o lugar comum. Na verdade relatou, cogitou vários argumentos e mandou soltar Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, detidos sob acusação de furtarem duas melancias. Não expôs especificamente o argumento de que estava se valendo. Ainda assim, bom senso é percebido em cada linha de sua decisão. In verbis:

"Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de 2 (duas) melancias.

Instado a se manifestar, o Senhor Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.

Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados, que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional)... Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra os neoliberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia... Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra – e aí, cadê a Justiça nesse mundo? Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.

Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados.

Quem quiser que escolha o motivo.

Expeçam-se os alvarás.

Intimem-se." [38](destacou-se)

Parece-nos que o magistrado agiu dentro do espírito da razoabilidade e seus sucedâneos lógicos: necessidade, utilidade e adequação. Entendeu a alma da proporcionalidade. Um entendimento que afasta a análise do tipo da mera forma para avançar por seu conteúdo.

Partindo do que se depreende da decisão colacionada, resta claro que para uma conduta ser considerada criminosa deve ser feito também o juízo de tipicidade material, ou seja, a verificação da ocorrência do pressuposto básico para a incidência da lei penal, qual seja, lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade. Caso a conduta (formalmente típica) lese de modo desprezível o bem jurídico protegido, não há que se falar em tipicidade material. Assim, como uma condenação à privação de liberdade é improvável, inclusive por razões de política criminal, não se apresenta como razoável todas as circunstâncias da persecução penal.

O Direito Penal deve cuidar das condutas que a privação de liberdade seja o mais provável. Caso não seja, como em um crime de dano, necessário se mostra a ampliação dos espaços de diálogo, como na delegacia e na conciliação nos Juizados Especiais Criminais. Diz-se isto porque quem tem um bem danificado tem muito mais interesse na composição civil do que na condenação criminal. Nada obstante, a figura do dano se mantém típica.

As ponderações do parágrafo anterior partem do pressuposto de que o Direito Penal moderno tem por fundamento basilar a intervenção mínima. De que a área penal deve ser vista como última ratio, ou seja, última solução para o problema jurídico apresentado. No sentido do que aponta o mestre Toledo um ramo fragmentário. Por ser assim, sua aplicação subsidiária é caminho. Outras vias devem ser tentadas. Uma vez insuficientes, parte-se para a utilização do Direito Penal:

"Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art. 334, parágrafo 1º, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem conseqüências palpáveis; e assim por diante." [39](destacou-se)

A insignificância ganha notoriedade em matéria penal em razão do insucesso das penas como meio de socialização do réu. Na verdade, em muitos casos, adentrar no sistema carcerário corrompe mais, pelo que a sanção penal perde seu objetivo: punir o delito e evitar novas incursões típicas.

Neste contexto, nas condutas que lesem bens jurídicos de pequena relevância e o impacto social do crime é leve, a tendência é a de atestar a atipicidade da conduta pela insignificância do bem lesado. Em alguns casos por medida de adequação social. Em outros por haver uma causa justificante.

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A doutrina penal moderna se inclina para este princípio a fim de que se excluam delitos onde não haja o alcance da resposta demandada pela sociedade, como o que ocorre com o crime de dano, ainda previsto no artigo 163 do Código Penal, como salientou Francisco Toledo. Na verdade, trata-se de um ilícito civil, que, antes de qualquer coisa, atinge a esfera patrimonial do ofendido, e não sua integridade. Dito isto, resta claro que a composição civil é o caminho, e não a esfera penal. A relevância material da conduta é pequena sob o enfoque penal, por isto as conseqüências desta devem ser vistas pela ótica do Direito Civil.

Os postulados acerca da insignificância, que impõe a chamada Tipicidade material, acabam por refletir na teoria da Tipicidade Conglobante, sustentada por Zaffaroni e Pierangeli. Veja-se:

"Pois bem: pode parecer que o fenômeno da fórmula legal aparente abarcar hipóteses que não são alcançadas pela norma proibitiva, considerada isoladamente, mas que, de modo algum, podem incluir-se na sua proibição, quando considerada conglobadamente, isto é, fazendo parte de um universo ordenado de normas. Daí que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade legal (isto é, á adequação à norma legal), e sim que deva evidenciar uma verdadeira proibição com relevância penal, para o que é necessário, que esteja proibida à luz da consideração conglobada da norma. Isto significa que a tipicidade penal implica a tipicidade legal corrigida pela tipicidade conglobante, que pode reduzir o âmbito da proibição aparente, que surge da consideração isolada da tipicidade legal [40]". (destacou-se)

Insignificância não implica em laurear condutas típicas. Ao contrário, implica em que a punição seja razoável. Implica na utilização via penal dentro da conglobação da norma. Toda ordem normativa persegue a uma finalidade e tem um sentido: garantir juridicamente a convivência. Qualquer norma que vá de encontro à sua finalidade acaba por ser desmedida. Sendo assim, a justificativa social da medita deve ser atestada. A norma deve atender ao suposto da adequação social e restar fundamentada em uma causa de justificação.

A ação penal deve ser instaurada sempre que for a via mais efetiva para garantir a paz social. Por outro lado, havendo outros meios, o Direito Penal se mostra inadequado. Assim como não se deve propor uma ação de conhecimento quando se tem um título executivo extrajudicial (por ser a execução o caminho e a ação de conhecimento caracterizar via imprópria por falta de condição da ação [41] interesse de agir na subespécie adequação), não se deve abarrotar varas criminais questionando danos, se a questão é, antes de tudo, de natureza civil. Aponta-se, com isto, que a insignificância só pode surgir à luz da finalidade geral que dá sentido à ordem normativa. Por esta razão, o que é insignificante para o Direito Penal, pode possuir significância em outros ramos do direito. É uma questão de adequação.

2.1 ANTECEDENTES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

As idéias sobre insignificância são significativas em um mundo marcado pelo ter e pelos descompassos sociais. Ainda assim, há quem sustente haver registros sobre a insignificância na História Antiga.

A maior relevância da insignificância é fato da contemporaneidade, mas a existência já pode ser notada no Direito Romano, conforme magistério de Diomar Ackel Filho: "no tocante à origem, não se pode negar que o princípio já vigorava no direito romano, onde o pretor não cuidava, de modo geral, de causas ou delitos de bagatela, consoante a máxima contida no brocardo de minimis non curat praetor" [42].

Seguindo o registro histórico colacionado, podemos apontar que o pretornão cuidava de delitos de bagatela como regra. O pretor não se atinha às coisas mínimas. É verdade que o Direito Romano nos trouxe muito mais referências sob a perspectiva civil. Ainda assim, não se pode negar a contundência da lição colacionada. Tanto é verdade que no ano de 2004, no julgamento do Habbeas Corpus 84.412, proveniente de São Paulo, o Supremo Tribunal Federal recobrou o preceito. Ao tratar do postulado da insignificância e da função do Direito Penal, asseverou o de minimis non curat praetor. Nesta linha trouxe para a realidade da jurisdição constitucional a máxima de que, para a privação de liberdade, o sistema jurídico há de considerar a real necessidade da medida. Que o pretor, Direito Penal, não cuida de coisas mínimas.

Não-obstante o reconhecimento do próprio Supremo Tribunal Federal em relação à máxima romana, houve, sim, uma notória discrepância entre o desenvolvimento do Direito Civil e o Direito Penal em Roma. Sabendo disto, Maurício Lopes [43] da dicotomia para criticar o registro de Ackel Filho. Nesta linha, aponta que os romanos tinham bem desenvolvido o Direito Civil, mas que não tinham a mínima noção do princípio da legalidade penal. Disto, aponta que naquele brocardo romano residiria uma máxima, mas não um estudo mais calculado. Com esse argumento conclui que é precipitado se creditar ao Direito Romano a origem histórica da insignificância.

A discussão enriquece qualquer trabalho. Nesta medida foi colacionada. Todavia, resta claro que Insignificância, nos moldes conhecidos, é criação do século XX e que, desde o lançamento da obra Kriminalpolitik und Strafrechtsystem por Roxin em 1970 – versada para o espanhol em 1972 por Muñuz Conde, consoante anuncia Luiz Flávio Gomes [44] –, a interpretação do injusto penal não mais se faz pela literalidade.

A partir de Roxin resta assente que o delito deve ser entendido de forma multidimensional, impondo para sua análise variáveis como conduta, tipicidade ofensiva, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade. Princípios políticos-criminais como intervenção mínima e proporcionalidade devem ser levados em conta por ocasião da incidência do Direito Penal.

As idéias acerca do princípio da insignificância – desconsideração dos delitos de bagatela para os doutrinadores alemães: Bagatelledelikte –, como dito no parágrafo anterior, surgem de forma significativa na Europa do século XX. E por que? Porque o século XX foi um século de antíteses. Uma fase de mutação, logo propícia para o borbulhar de idéias.

O século XX foi um período de intensa modificação social: duas grandes guerras, uma guerra fria marcada pela corrida armamentista, liberação dos costumes, intensas modificações nos meios de produção, fartura demasiadas, escassez em excesso etc. Um século de antinomias. Um período em que o estar em sociedade passou por uma mudança paradigmática. Uma fase que refletiu em mudanças sociais notórias, sobretudo no alargamento das diferenças sociais.

Em um mundo de antinomias, marcado por uma contraposição social sem precedentes, onde nunca se teve tanto bilionário, mas também tantos miseráveis, a razoabilidade é medida de extrema necessidade para garantir a convivência. Disto se pode dizer que a origem fática da insignificância é a patrimonialidade: o reconhecimento de que o dano patrimonial, para trazer reflexos ao Direito Penal, deve ser relevante.

2.2 CONCEITO DE INSIGNIFICÂNCIA

O conceito de insignificância não se encontra definido em nossa legislação. A interpretação doutrinária e jurisprudencial, contudo, tem permitido delimitar as condutas tomadas por insignificantes, o que se faz a partir do suposto de um Direito Penal mínimo e subsidiário.

O princípio em exame pode ser conceituado como sendo o preceito que permite aferir a não-tipicidade de fatos por serem inexpressivos. São fatos que constituem bagatelas, e cuja reprovabilidade geral não atinge o grau que justifique a coerção penal da conduta. Nesta medida, são irrelevantes para o Direito Penal.

Na linha tracejada, Alberto Silva Franco [45] associa o Princípio da Insignificância à Antijuridicidade Material. Aldo Montoro [46], também citado por Ackel Filho, acrescenta que além deste limite quantitativo-qualitativo, não há racional consistência de crime, nem justificação de pena, sendo irrelevante os fatos que se encontrem abaixo deste limite.

O princípio da insignificância, como instrumento de interpretação restritiva baseado na concepção de tipicidade material, permite a que se alcance a proposição político-criminal da atipicidade de condutas que, formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.

Nos chamados crimes de bagatela as condutas são delitos. São fatos que, em um primeiro momento, moldam-se ao fato típico. Posteriormente, contudo, têm sua tipicidade desconsiderada por se tratar de ofensas a bens jurídicos que não causam reprovabilidade social considerável, de maneira que não se faz necessária a atuação do Direito Penal.

Dentro do exposto, retoma-se a necessidade da discussão nas fases pré-judiciais para se evitar prejuízos. Os delegados de polícia devem possuir preparo para orientar as pessoas envolvidas em delitos de bagatela, alertando, por exemplo, para o fato da maior importância da composição civil em um crime de dano. O mesmo se diz do promotor de justiça. É preciso se superar a frieza do texto legal para se fazer uma leitura inclusiva. Ter uma perspectiva de que a privação de liberdade é o último estágio na tentativa da composição da ordem social.

Ao se analisar a importância do princípio em exame, resta assente que a função jurisdicional, como atividade privativa do Estado, deve ser exercida sempre com os olhos voltados para uma eficácia vinculativa plena. Por isto mesmo, em razão de tal magnitude, verdadeiro ato de soberania, não deve se deter à consideração de bagatelas irrelevantes.

Na linha percorrida, temos que medidas como a "admoestação verbal" devem ser ampliadas. Conquanto vista de forma tímida por nossos governantes, como na Mensagem de Veto n. 1.447/98, anexada a este trabalho, resta-nos claro que esta medida pode ser muito mais efetiva do que a privação de liberdade, no sentido em que evolui o Direito Penal:

"o Direito Penal evoluiu no sentido de que novos métodos de repressão ao crime deveriam ser instituídos, mediante a previsão de sanções de natureza alternativa, que ao juiz seriam facultadas impor ao condenado, em caráter substitutivo às penas de detenção e de reclusão, desde que atendidos alguns requisitos relacionados com a pessoa do delinqüente e com o ilícito por ele perpetrado." [47]

Pois bem, constatada a não-adequação das penas privativas de liberdade para atender aos fins a que se destinam, deve ser mudado o próprio entendimento acerca do Direito Penal. Se o fim último deste é a privação de liberdade com o fim de (re)socialização, mas a privação é remédio extremo e pouco eficaz, resta claro que as fases pré-penais precisam ser melhor entendidas. O diálogo deve ser ampliado e o formalismo superado.

2.3 INSIGNIFICÂNCIA NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

Não obstante ter se sedimentado proposições acerca da insignificância em nossa doutrina, mostra-se forçoso concluir que este princípio ainda tem sido aplicado de forma tímida por nossos tribunais. Salvo casos excepcionais, como o do juiz Rafael Gonçalves de Paula, colacionado na abertura deste capítulo, a regra é a cultura do formalismo. Mesmo neste caso, que mereceu atenção da Escola Nacional de Magistratura, a posição do Ministério Público foi no sentido da manutenção da prisão. Não-obstante a pouco reprovabilidade, o membro do parquet "o opinou pela manutenção dos indiciados na prisão", conforme já colacionado. Nossa prática consagra uma infeliz repulsa aos princípios de cunho político-criminal.

Dito isto, parece-nos estar havendo um preconceito ideológico em relação à Insignificância. É verdade que a percepção negativa da Insignificância já foi maior, mas, ainda assim, esta é percebida de forma pejorativa. Muitos temem que esta possa virar porto seguro da impunidade, por isto não lhe concedem efetividade, que fica latente.

Pensar na aplicação do princípio em exame por nossa jurisprudência levaria a uma só conseqüência: a descaracterização da tipicidade penal. Bem aplicada seria uma medida muito coerente com a ordem social. Repisa-se que não se está levantando a bandeira da impunidade, mas apenas reconhecendo que o Direito Penal deve ser aplicado de forma subsidiaria. Reconhecendo que socialização se faz no convívio, e não no sectarismo.

A consideração do parágrafo anterior no sentido da desconsideração de tipicidade representa marco jurisprudencial avançado, no exato sentir do que decidiu o Supremo Tribunal Federal, em voto relatado pelo ministro Celso de Mello, no Habbeas Corpus 84.412, oriundo de São Paulo. Poucas vezes se viu uma aplicação tão contundente do preceito da Insignificância. Por isto mesmo a colação do julgado se mostra uma exigência acadêmica. In verbis:

"PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.

O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da subsidiariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: ‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR’.

O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social" [48]. (destacou-se)

Não-obstante o entendimento no sentido de se afastar a tipicidade da conduta, que é que predomina na jurisprudência, há casos em que à insignificância nossos julgadores somam outros supostos. No julgado a seguir, por exemplo, noções acerca da restituição foram trazidas à colação. O desembargador Sylvio Baptista Neto pugnou pela mantença da absolvição não apenas em razão da pequena monta do valor furtado, mas também em razão da postura tomada pelos acusados. In verbis:

"FURTO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Como destacou o Magistrado, absolvendo os recorridos, embora constatada a existência e a autoria do delito, tenho que é despiciendo aprofundar o mérito. Isso porque tenho que é de se aplicar, na hipótese, os princípios da insignificância e da subsidiariedade. Verifica-se que o furto, praticado em concurso de agentes, redundou em dano de R$ 132,00 (cento e trinta e dois reais). Entrementes, é forçoso reconhecer que houve restituição, pelos acusados Márcio e Andrevis – comprovantes das fls. 68/72 -, da quantia total de R$ 100,00 (cem reais). Ainda, foi devolvido pelo co-réu Celi 40 (quarenta) latas de cerveja - depoimento da testemunha Cezisnando à fl. 92. DECISÃO: Apelo ministerial desprovido. Unânime" [49]. (destacou-se).

A questão da atipicidade da conduta é a mais relevante no que concerne às conseqüências da insignificância. É evidente que outros argumentos podem ser trazidos, e isto é válido. Ainda assim, a maior forca da aplicação da atipicidade reside em tomar por atípica uma conduta que, do ponto de vista forma, é típica. Formalmente típica, mas atípica do ponto de vista material.

Tais assentamentos são muito relevantes, e se mostram assim porque reconhecer a atipicidade da conduta implica em conceder ao Direito Penal um caráter que lhe é próprio: a subsidiariedade. Neste sentido, por exemplo, decidiu o Tribunal Regional Federal da 5ª Região no processo n. 9905370943/CE, relatado pelo desembargador Geraldo Apoliano. As proposições contidas na ementa do julgado são esclarecedoras, motivo pelo qual a colacionaremos. Vejamos:

"PENAL. DESCAMINHO. COTA DE IMPORTAÇÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E DA SUBSIDIARIEDADE. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. APLICAÇÃO.

1) Laudo merceológico de avaliação direta a apontar que o valor dos bens constritos não ultrapassou o limite da quota de importação. 2) O Direito Penal não se deve ocupar de ninharias. Aplicação, à espécie, do princípio da insignificância e da inexigibilidade da conduta diversa. 3) O Direito Penal não protege todos os bens jurídicos feridos, mas tão-somente aqueles mais importantes. Pode-se dizer, assim, que um dos princípios do direito penal é o da subsidiariedade.4) Atipicidade penal da conduta. Improvimento da apelação" [50]. (destacou-se)

O caráter subsidiário do Direito Penal restou pacífico. Por esta razão fica claro que este deve se ater às questões onde se apresente como único meio de resolução do litígio apresentado. Não deve ser preocupar com ninharias como suposto de legitimidade, afinal nem todos os bem da vida se enquadram como objetos de sua alçada, mas apenas aqueles cuja tutela da ética, da moral, da religião ou de ramos como o Direito Civil e Administrativo não é suficiente.

O caminho da consideração da Insignificância parece ser o mais sólido por que caminha nossa jurisprudência. Ainda assim, nosso direito ainda é muito patrimonial, pelo que questões financeiras voltadas para a proteção do Ter ainda permeiam a cabeça de muitos julgadores. Diz-se isto com base na observação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, notadamente no Habbeas Corpus 49.423, no qual a sexta turma sustentou, sobre frágeis argumentos, parece-nos, que o valor do bem furtado não é determinante para a aplicação, ou não, da Insignificância. Em seu voto, sustentou o ministro Hamilton Carvalhido que: "Em que pese o valor do bem subtraído ter sido avaliado em R$ 80, não se pode concluir pela ínfima afetação do bem jurídico tutelado, notadamente pela presença da periculosidade social da ação do agente". A questão da insignificância, que pensamos dever ser o ponto de partida para a aplicação da lei penal, foi relegada a figurante, mantendo-se a periculosidade como principal variável.

Conquanto a Insignificância tenha o condão de afastar a tipicidade material, o que se diz com forte arcabouço doutrinário, nosso Superior Tribunal pareceu no caso colacionado muito mais preocupado com a questão patrimonial. Nada obstante, desta mesma decisão, vale ser retirado o voto do ministro Nilson Naves, que assim se pronunciou: "a melhor das compreensões penais recomenda não seja mesmo o ordenamento jurídico penal destinado a questões pequenas – coisas quase sem préstimo ou valor."

Questões patrimoniais são, eminentemente, civis. Nesta medida, mecanismos civilistas devem ser chamados à resolução do conflito como regra. É claro que quando se está diante de violência, o argumento apresentado perde força. Por outro lado, nos crimes patrimoniais, praticados sem violência contra a pessoa, se mostra um contra-senso a aplicação puramente formal da lei. Nestes casos, mais racional é se fazer uma interpretação conglobante e buscar auxílio em mecanismos de Direito Civil como a repetição de indébito.

Sobre os autores
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Joana Sarmento de Matos

Juíza de Direito em Roraima. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Professora licenciada de Direito Penal da FACSUM. Pós-Graduada em Direito Público pela UNIGRANRIO. Associada ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques; MATOS, Joana Sarmento. Política criminal e intervenção mínima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2662, 15 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17629. Acesso em: 26 dez. 2024.

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