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Júri: pequenas observações históricas sobre um instituto ainda não compreendido

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Agenda 20/10/2010 às 07:22

A história da Instituição do Júri no Brasil

É indiscutível que o fenômeno da Revolução Francesa teve repercussão direta na história de nosso país. Por outro lado, sempre houve também uma grande afinidade diplomática e comercial entre Portugal e a Inglaterra. Há quem sustente, inclusive, razões históricas de aproximação, pois teriam sido os cruzados ingleses que contribuíram para a independência de Portugal da Espanha. Depois do denominado Bloqueio Continental, promovido pelos franceses, já sob o julgo de Napoleão, a família real portuguesa passou a ser a primeira corte européia a viver no novo mundo. Chegou ao Brasil em 1807 (Salvador) e, posteriormente, em 1808 (Rio de Janeiro), protegida pelos ingleses.

Não obstante a revolução cultural e social em nosso país com o advento da Corte do Príncipe Regente D. João, acompanhado de toda a nobreza e a burocracia de Portugal, inclusive da Rainha Maria I, que havia sido afastada por uma junta médica desde 1792, os princípios revolucionários franceses já ecoavam por aqui. Não era incomum se ouvir falar em liberdade, igualdade e fraternidade. Inúmeras Ordens foram instaladas no Brasil, divulgando à sua maneira o ideal revolucionário.

O Brasil passou a ter vida própria e logo depois, em 1815, foi alçado a condição de Reino Unido de Portugal e Algarves. Mesmo com a queda de Napoleão (1814), D. João foi coroado no Brasil o 27º Rei de Portugal, tendo sido o primeiro monarca a tomar posse no continente americano. Com a Revolução Liberal do Porto, de cunho constitucionalista, em 1820, o Rei D. João VI foi obrigado a voltar a Portugal, deixando em seu lugar o Príncipe Regente Pedro, que em dezembro de 1822 foi coroado imperador do Brasil, com o título de Pedro I.

Essa passagem histórica tem uma enorme repercussão no direito brasileiro. Os movimentos liberais ganhavam força na Europa e repercutiam, por obviedade, por aqui, que até então utilizava a legislação portuguesa (Ordenações Filipinas). Tal fato, (vigência da legislação portuguesa) foi de alguma forma reforçado mesmo depois da independência, quando o Decreto de 20 de outubro de 1823 determinou a manutenção da legislação de Portugal no Brasil, naquilo em que não conflitasse com a sua soberania e com o novo regime.

É sintomático o fato de que no retorno de D. João VI a Portugal, tenha prontamente jurado a primeira Constituição portuguesa, que foi aprovada em 22 de setembro de 1822. Quinze dias antes, porém fora proclamada a independência do Brasil e em maio de 1823 iniciaram-se os trabalhos da primeira Assembléia Nacional Constituinte, logo depois dissolvida (12 de novembro de 1823) por ter muitos deputados liberais-democratas, que trabalhavam por uma Constituição que respeitasse mais os direitos individuais e limitasse o poder do imperador. Apesar desse fato, a primeira Constituição brasileira que foi outorgada em 25 de março de 1824, trouxe significativos avanços.

O historiador Thomas Skidmore [13], sobre o tema, ensina que "a elite brasileira absorveu muito de liberalismo político da Inglaterra. A Assembléia Constituinte delineou uma constituição sob a direção de José Bonifácio de Andrada e Silva, um proeminente proprietário de terra e jurista. Ele copiava, em grande medida, o sistema parlamentar inglês, com o objetivo de criar um governo controlado pela elite por meio de uma elegibilidade altamente restrita. O imperador Pedro I não gostou dela. Ele dissolveu a assembléia e arbitrariamente promulgou a sua própria constituição".

Como exemplo dessa renovação ideológica que tomava o nosso país, James Tubenchlak [14] conta que, "coube ao Senado da Câmara do Rio de Janeiro, dirigindo-se, em 04.02.1822, ao Príncipe Regente D. Pedro, para sugerir-lhe a criação de um ‘juízo de Jurados’. A sugestão, atendida em 18 de junho, por legislação que criou os ‘Juízes de Fato’, tinha competência restrita aos delitos de imprensa. A nomeação desses juízes – vinte e quatro homens bons, honrados inteligentes e patriotas – competia ao Corregedor e aos Ouvidores do crime. Da sentença dos ‘Juízes de Fato’ cabia somente o recurso de apelação direta ao Príncipe".

Nascia, assim, nesse ambiente efervescido, a instituição do júri no Brasil, antes inclusive da declaração da nossa independência de Portugal e antes também da instituição do júri por nosso colonizador. Guilherme Souza Nucci [15] comenta que "há que se considerar que o Brasil, às vésperas da independência, começou a editar leis contrárias aos interesses da Coroa ou, ao menos, dissonante do ordenamento jurídico de Portugal. Por isso instalou-se o júri em nosso país antes mesmo que o fenômeno atingisse a pátria colonizadora. Assim, em 18 de junho de 1822, por decreto do Príncipe Regente, criou-se o Tribunal do Júri no Brasil, atendendo-se ao fenômeno de propagação da instituição corrente em toda a Europa. Pode-se dizer que, vivenciando os ares da época, o que ‘era bom para a França o era também para o resto do mundo".

Essa iniciativa, ainda em 1822, foi de vital importância para a consolidação do júri no Brasil. Mesmo outorgada, a Constituição de 1824 fez expressa referência ao instituto, além de estender-lhe a sua competência. O artigo 151 dispunha que "Poder Judicial independente, e será composto de Juizes, e Jurados, os quaes terão logar assim no Civel, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Códigos determinarem". Completando o dispositivo, determinava o artigo 152 que "os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juizes applicam a Lei". Assim, "a Constituição de 1824 colocava os jurados como integrantes do Poder Judiciário com competência (territorial) tanto no cível como no crime e lhes dava competência para decidirem sobre o fato e aos juízes para aplicarem a lei". [16]

Apesar de dissolvida uma Assembléia Constituinte, com exílio do seu líder, José Bonifácio de Andrada e Silva, e de ter sido outorgada a Constituição pelo Imperador, é fato que o Brasil vivia momento de profundas transformações políticas, ladeadas por ventos liberais. Com a morte do Rei D. João VI, que à época já detinha o título de Imperador Titular do Brasil, e uma reação das forças absolutistas em Portugal que tomaram o poder com o seu irmão Miguel, D. Pedro I retornou em 1831, deixando o seu filho Pedro de apenas cinco anos como Príncipe Regente. Começa aqui um período da história conhecido como Regência Trina, "onde várias reformas importantes trataram de suprimir ou diminuir atribuições de órgãos da monarquia e estabelecer uma nova estrutura legal para o país". [17]

No contexto da Regência, após a edição do Código Criminal do Império em 1830, é elaborado o Código de Processo Criminal do Império pelas mãos do Senador Alves Branco, que passou a vigorar em 29 de novembro de 1832. Segundo Paulo Rangel, "nasce aí a distância entre os jurados e os réus. Os réus nem sempre eram eleitores, mas pessoas das camadas mais baixas da sociedade, aquelas que depois passaríamos a chamar de excluídos". Com efeito, dispunha o artigo 23 que "são aptos para serem jurados todos os cidadãos que podem ser eleitores", mas para ser eleitor o cidadão teria que comprovar uma renda de 200 mil-reis anuais, o que não era pouco.

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Todavia, ainda sob os auspícios do liberalismo francês e a sempre onipresente influência inglesa na história do Brasil, o primeiro Código de Processo, além de instituir formalmente o habeas corpus (Art. 340. Todo o cidadão que entender que elle ou outrem soffre uma prisão ou constrangimento illegal em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de — habeas corpus — em seu favor), adotou o modelo inglês de julgamento, com a instituição do grande júri e o júri de sentença. Paulo Rangel [18] pontua que "o júri do império era a cópia aproximada do júri inglês pela própria história que antes contamos, ou seja, havia o grande júri e o pequeno júri. O primeiro, com o debate entre os jurados, decidia se procedia a acusação contra o réu. Se os jurados respondessem afirmativamente, o réu seria submetido a julgamento perante o pequeno júri. Do contrário, o juiz julgava improcedente a denúncia ou a queixa".

Conclui Paulo Rangel [19] que "a estrutura do tribunal do júri no Império, levando-se em conta a sociedade da época, foi a mais democrática já tida em nosso ordenamento jurídico, até porque originária do berço da democracia e dos direitos e garantias individuais da Inglaterra".

Seguindo o curso da história, durante o período de Regência, foi necessário fazer em 1834 um Ato Adicional à Constituição com propostas políticas centralizadoras com relação às províncias, o que redundou em várias revoltas no Brasil com motivações locais, entre elas a Cabanagem (Pará), Sabinada (Bahia), Balaiada (Maranhão) e a Farroupilha (Rio Grande do Sul). Essas revoltas obrigaram a Regência a adotar mais medidas conservadoras, com a conseqüente reforma no júri pela Lei nº 261, de 03 de dezembro de 1841 e o Decreto regulamentador nº 120, de 31 de janeiro de 1842, que aboliu o júri de acusação, atribuindo a pronúncia à chefes de polícias, juízes municipais, delegados e subdelegados (art. 54).

O caso que por muitos anos foi considerado o maior erro judiciário da história do Brasil [20], o do julgamento popular e enforcamento do fazendeiro Manuel da Costa Coqueiro, que posteriormente veio inclusive a influenciar D. Pedro II na concessão de graça para impedir a pena de morte, ocorreu por essa época (o crime foi 1852 e os dois julgamentos populares em 1853), tendo sido todo o processo instruído por um subdelegado e um delegado, que tinham interesses políticos e pessoais na morte do fazendeiro.

Só para exemplificar a necessidade de se fazer um controle político das decisões do júri, até o advento da Lei 261, para se condenar a pena de morte era necessário a unanimidade dos 12 jurados. Com a nova Lei passou a ser 2/3, e nos demais crimes a maioria absoluta, ressalvando que em caso de empate seria beneficiado o réu (art. 66).

Com a guerra do Paraguai que se estendeu de 1864 a 1870 os militares voltaram a ter força política no Brasil, o que culminou com deposição do regime imperial e a proclamação da República em 1889, que de certa forma foi apoiada pela burguesia cafeeira, que veio a dominar os primeiros anos do novo regime. A Constituição Federal de 1891 representava o afastamento do Brasil da Inglaterra e a sua aproximação com os Estados unidos, potência emergente, essencialmente liberal e desenvolvimentista, mais ajustadas aos novos tempos "pós-império".

Nesse contexto a instituição do júri foi mais uma vez prestigiada e pela primeira vez passou a ser tratada dentro do título referente aos cidadãos brasileiros e na secção da declaração de direitos. Dispôs o artigo 72 que a "Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: §31 - é mantida a instituição do júri.

Observa Guilherme Souza Nucci [21] que "com a Proclamação da República, manteve-se o júri no Brasil, sendo criado ainda um júri federal, através do Decreto 848, de 1890. Sob a influência da Constituição americana, por ocasião da inclusão do júri na Constituição Republicana, transferiu-se a instituição para o contexto dos direitos e garantias individuais (art. 72, §31, da Seção II, do Título IV). Esse resultado foi obtido em face da intransigente defesa do Tribunal Popular feita por Rui Barbosa, seu admirador inconteste".

Com efeito, após a Proclamação da República e quatro meses antes da Constituição de 1891 (24 de fevereiro), o júri passou a ser organizado pelo Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, que ao regulamentar a Justiça Federal, criou o júri federal com 12 jurados sorteados dentre 36 cidadãos do corpo de jurados estadual da comarca. Apesar da influência nitidamente norte-americana da época, não foi repristinado o grande júri, que até hoje se encontra em vigência nos Estados Unidos.

Posteriormente, como informa Frederico Marques [22] "a Lei Federal nº 515, de 3 de novembro de 1898 excluiu da competência do Júri o julgamento dos crimes de moeda falsa, contrabando, peculato, falsificação de estampilhas, selos adesivos, vales postais e cupons de juros dos títulos de dívida pública da União, atribuindo-o ao juiz da secção. Finalmente, todas essas reformas foram consolidadas pelo Decreto Federal nº 3.084, de 5 de novembro de 1898, que constituiu, durante muitos anos, o Código de Processual Civil e Criminal da justiça federal. Enumeraram-se, então, todos os casos de competência do júri".

Com a chegada da década de 30, inúmeros acontecimentos políticos mundiais, dentre os quais a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, o que deixou grande parte da elite política (e cafeeira) endividada, precipitou um golpe de Estado no Brasil, com a instalação de um governo provisório com Getúlio Vargas.

Após nomear interventores em vários Estados, houve uma revolta em 1932 do Estado de São Paulo, que exigiu com o fim do conflito a instalação de uma nova assembléia constituinte, que por sua vez iniciou os trabalhos em novembro de 1933. Assim, em 16 de julho de 1934, o Brasil ganhava uma nova Constituição, em um cenário político interno em que se verificava a chegada ao poder da burguesia industrial, da classe média e novamente dos militares, em detrimento da falida oligarquia cafeeira e leiteira. Enquanto isso, no plano externo, as idéias totalitárias de Hitler e Mussolini, dentre outros na Europa, tomavam força. A nova Constituição brasileira foi inspirada na Constituição alemã de 1919, conhecida como Constituição de Weimar, que marcou um breve período de república na Alemanha, pós-primeira guerra mundial, até a tomada do poder pelos nazistas em 1933.

No entanto, apesar de todo abalo político do momento, a Constituição de 1934 preservou o júri, dispondo o artigo 72 que "é mantida a instituição do júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei". Cabe observar que a mudança retirou o júri dos direitos e garantias individuais, do qual foi alçado pela Constituição de 1891 e, assim, o recolocou no capítulo referente ao Poder Judiciário, tal como na nossa primeira Constituição, em 1824.

Seguindo a lógica dos acontecimentos no velho mundo, especialmente os regimes totalitários que instalaram na Alemanha (Hitler), Itália (Mussolini), Rússia (Stalin), Espanha (Franco), houve um recrudescimento da democracia também no Brasil. Getúlio Vargas que tinha sido confirmado no poder pela Constituição de 1934, instituiu, em 10 de novembro de 1937, uma ditadura denominada Estado Novo, com a outorga de uma nova Constituição.

Como sempre ocorreu na história, todas as vezes que nos afastamos do exercício da democracia, nos afastamos da idéia de sermos julgados pelos nossos pares. Na Constituição de 1937, diferentemente de todas as anteriores (1824, 1891 e 1934), não mencionou sequer a existência do júri. Isso contribuiu para um grande debate à época, sobre a permanência ou não do instituto no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, o artigo 183 da Constituição de 1937 declarava em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, não contrariassem o texto constitucional.

Como esperado, diante desse ambiente hostil à democracia, em 05 de janeiro de 1938, o tribunal do júri no Brasil sofre o seu maior revés, com a edição do Decreto-Lei nº 167, considerado a primeira lei nacional de processo penal do nosso país. Lembra James Tubenchlak [23] que "o art. 92, b, do citado decreto-lei, não fez menos que abolir a soberania dos seus veredictos, ao ensejar recurso de apelação quanto ao mérito, nos casos de ‘injustiça de decisão, por sua completa divergência com as provas existentes nos autos ou produzidas em plenário’. E, consoante o art. 96 do mesmo diploma, o Tribunal de Apelação poderia, ao prover o recurso, aplicar a pena justa ou absolver o réu, conforme o caso, se a decisão do júri não encontrasse nenhum respaldo nos autos".

Assim, diante da supressão de um dos pilares do julgamento popular, ou seja, a soberania dos vereditos, o instituto do júri foi diretamente violentado. Como tal fato se deu em 1938, foi esse ambiente perverso que influenciou o nosso atual Código de Processo Penal, editado em 03 de outubro de 1941 (Decreto-Lei nº 3689), e que até a pouco tempo (2008) vigorou em quase sua integralidade original com relação ao júri.

Paulo Rangel [24] retrata muito bem o que ocorreu na época: "na medida em que o regime é endurecido, o governante precisa intervir no Poder Judiciário dificultando a liberdade e facilitar a repressão com a conseqüente privação das liberdades públicas. O Estado passa a se constituir em Estado punitivo e não, como deveria ser, Estado do bem-estar-social. O Direito Penal passa a ser usado como instrumento de defesa e do chamado bem jurídico, ante possíveis lesões ou perigos. O Tribunal de Apelação, na época, sofria fortes influências do ditador Vargas, que exercia controle sobre ele. Por isso o júri era manipulado pelo exercício abusivo do poder, perdendo a sua origem de tribunal popular, democrático, criado para retirar das mãos do déspota o poder de decisão sobre a vida dos súditos".

Com o final da Segunda Guerra Mundial, o ciclo histórico se renova, apontando para um céu bem menos carregado de nuvens escuras. A esperança na justiça social se refaz o que mais uma vez representa mudanças no júri. A Constituição de 1946 dispôs ser "mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contando que seja sempre impar o número de seus membros e garantindo o sigilo das votações, a plenitude de defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente de sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida" (artigo 141, §28).

James Tubenchlak [25] retrata bem quando afirma que "finda a ditadura de Getulio Vargas, a Constituição de 18.09.1946 restaurou, no §28 do art. 141, a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri, além de recolocar a instituição no capítulo das garantias individuais. Na síntese de José Frederico Marques (1963, p. 26), o referido parágrafo criou limitações ao legislador ordinário, de variado matizes: no tocante à organização do Júri, vedou o conselho julgador com número par de membros; quanto à forma de funcionamento, proibiu julgamentos descobertos e qualquer forma de cerceamento do direito de defesa; em relação à competência: a) estabeleceu a competência ratione materiae – atribuição privativa para julgamento dos crimes dolosos contra a vida – b) afastou dos tribunais superiores ou de qualquer outro órgão do judiciário, no concernente à competência funcional, o conhecimento dos veredictos do Júri para reformá-los, como judicium rescisorium, em grau de recurso.

Somente em 23 de fevereiro de 1948, com a promulgação da Lei nº 263, é que foram incorporadas reformas ao Código de Processo Penal, para adequar o júri as diretrizes da Constituição de 1946. Entretanto, sobreviveu no texto constitucional e na sua regulamentação, a possibilidade de o tribunal de apelação, hoje de justiça, de apreciar recurso de julgamento por Tribunal do Júri, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária às provas dos autos, disposição que se encontra em vigor até hoje no artigo 593, III, d, do Código de Processo Penal.

Ademais, a adoção também do número impar de jurados contraria de certa forma o caráter democrático do julgamento popular. Para que o direito seja bem dito, seria interessante a preservação do número par, pois, tanto em caso de absolvição, como de condenação, precisaria de no mínimo mais de um voto de diferença, constituindo-se em uma maioria qualificada e, por conseqüência, expressando melhor a vontade popular. Do mesmo modo a limitação da competência para os crimes dolosos. Trata-se de um desperdício institucional. São procedimentos simples, que fazem a diferença, mas não são como tudo referente ao júri bem compreendidos.

Novamente, embora diante de um o refluxo democrático, advindo do golpe de 1964 e a tomada do poder pelos militares, a Constituição de 1967 mantém o júri e a sua soberania para os crimes dolosos contra a vida (artigo 151, §18), o que logo depois (naturalmente) foi alterada pela Emenda Constitucional nº 01 (na verdade uma nova Constituição), outorgada em 17 de outubro de 1969, em que foi mantida a instituição do júri sem referencia à sua soberania (art. 153, §18). Apesar disso, nesse ambiente conservador, o Código de Processo Penal foi recepcionado, o que demonstra a força da sua origem inspirada no Decreto nº 167/1938 e na Constituição Federal de 1937.

Já em 1988, na volta integral ao regime democrático, com a adoção de um real Estado Democrático de Direito, cujo fundamento da República, dentre outros, é a cidadania (art. 1º, II) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), além do princípio de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (art. 1º, parágrafo único), mais uma vez, diante da esperança de justiça social, o instituto do júri sai fortalecido como cláusula pétrea (impossível de ser reformada), sendo assegurando, conforme pelo artigo 5º, XXXVIII, a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos, a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, com a organização que lhe der a lei.

É possível deduzir, de pronto, que a competência do júri não está mais só determinada aos crimes dolosos contra a vida, tudo vai depender da organização que lhe der a lei. Nesse sentido se posiciona Eugenio Pacelli [26]: "a primeira observação que faríamos é que a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida não é a única assegurada ao aludido tribunal. Como vimos, na hipótese de conexão entre crime doloso contra a vida e outro de competência originária de juiz singular, prevalecerá a do primeiro (art. 78, I, CPP). O Tribunal do Júri, então, julga também outras infrações penais, tudo a depender de previsão legal".

Do mesmo modo, Guilherme Souza Nucci [27] sustenta que "o texto constitucional menciona ser assegurada a competência para os delitos dolosos contra a vida e não somente para eles. O intuito do constituinte foi bastante claro, visto que, sem a fixação da competência mínima e deixando-se à lei ordinária a tarefa de estabelecê-la, seria bem provável que a instituição desaparecesse do Brasil". Tal posicionamento também é endossado por Denílson Feitoza [28] ao lecionar que "se a Constituição utiliza o verbo assegurar, significa que é competência mínima e, portanto, é teoricamente possível que a lei amplie a sua competência para crimes diversos, além dos dolosos contra a vida".

Diríamos, inclusive, mais: não só para crimes, como também para condutas por ato de improbidade e para matéria civil em geral, especialmente aquelas que dizem respeito a indenização por ato ilícito ou referente a direito difuso, coletivo e individual homogêneo, a ser manejado por ação civil pública. Ademais, havendo liberdade para o legislador formatar o Tribunal do Júri, nada impede que com uma melhor compreensão democrática do instituto, fosse repristinado o número par de jurados, para qualificar a decisão.

Neste sentido, inclusive, Aury Lopes Júnior [29], crítico do instituto, defende estar "plenamente de acordo: o número par de jurados (8), resolveria esse problema, pois a condenação somente ocorreria com uma diferença de, no mínimo, dois votos. O aumento do número de jurados é imprescindível, não apenas para dar uma maior representatividade do corpo social no conselho de sentença, mas, principalmente para a máxima eficácia do direito constitucional de defesa".

Lamenta-se, por outro lado, que se tenha que resguardar o sigilo da votação, pois a discussão entre os jurados, antes da decisão, é medida salutar e de segurança jurídica, pois, de alguma forma, estariam fundamentando as suas decisões. Neste sentido, a excelente tese de doutorado de Paulo Rangel: A Inconstitucionalidade da Incomunicabilidade do Conselho de Sentença no Tribunal do Júri Brasileiro. [30]

Sobre o autor
Fernando Antônio Calmon Reis

Defensor Público do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Fernando Antônio Calmon. Júri: pequenas observações históricas sobre um instituto ainda não compreendido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2667, 20 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17652. Acesso em: 25 nov. 2024.

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