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Ética na política.

Uma reflexão a respeito da imediata aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa

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Agenda 29/10/2010 às 09:33

4. Ética na Política.

Há engano nas teses que dissociam completamente as ações políticas dos princípios morais. Os que defendem semelhante posição fazem uma leitura equivocada do pensamento de Maquiavel.

Em valioso ensaio, em que examina cuidadosamente os escritos políticos do famoso italiano

– ‘O Príncipe’ e ‘Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio’ –, o ex-professor da UFPB, Joacil de Brito Pereira, refuta a interpretação dos que consideram a doutrina de Maquiavel apenas como "modelo do cinismo político, da deslealdade e da amoralidade". Porém, o mencionado publicista também não estimula "os que se colocam no outro extremo de uma admiração incondicional, de apologistas sem meios termos, pregando uma absolvição total sem explicar, convenientemente, a teoria por ele predicada, os fins que preconizou, o homem que ele foi, o mundo donde saiu, a sociedade em que viveu". [35]

Para Joacil, há idealismo e realismo na doutrina comentada. Maquiavel mirou-se nos exemplos da história. Trouxe aos políticos do seu tempo os conselhos a respeito dos modos e formas pelos quais poderiam realizar o ideal de unificação da Itália, então dividida em pequenos Principados e Repúblicas. O seu sonho era o de restauração da grandeza de sua pátria. Ele sabia que somente o tornaria realidade se o povo italiano fosse conduzido por um líder forte, ousado e despreocupado com limites da moral comum.

Porém, como anotado por Joacil, o autor de 'O Príncipe' não criou uma doutrina de incompatibilidade entre a ação política e os princípios éticos. Ele apenas deixou bem claro que na Política prevalece uma moral especial. No entendimento do ensaísta, Maquiavel

(...) jamais desprezou os valores, os ideais que servem de sustentáculo à paz social e que fazem a grandeza das nações, assegurando a fé que deve presidir ao destino das instituições humanas. Os seus ideais resultam claramente manifestos nas obras que o seu gênio elaborou e que ainda hoje apresentam um valor e um interesse inesgotáveis. O ideal de pátria, o ideal de liberdade, o ideal de unificação italiana, o ideal republicano e democrático, formam, entre outros, o principal elenco daquele glossário singular de grandeza humana, entre os valores éticos mais sublimados da alma do cidadão e do homem. E o seu realismo resultou na descoberta de um novo método para o estudo dos problemas políticos, o método histórico, bem assim na formulação de sua doutrina de que a política deve ser concebida de forma concreta, como ciência autônoma, com seus princípios e leis próprias, diferente da moral comum e acima da religião e da transcendência. Chegou, assim, a se tornar o criador da ciência política de conteúdo realista, variável, dinâmico, progressista. Daí concluiu que a luta de classe é necessária e impulsiona frequentemente o progresso social, com base na qual lançou a teoria do equilíbrio dos poderes. Em função delas – da luta de classes e da teoria do equilíbrio dos poderes – poder-se-á alcançar êxito na ação governamental. E os governantes, ou melhor, os que integram o centro ativo do poder utilizam-se dos partidos para a obtenção dos fins estatais.

Aí está, em síntese, na simbiose do idealismo dos fins perseguidos pelo Estado e do realismo da conduta governamental, para utilização dos meios destinados a alcançar os objetivos do bem comum, da justiça social e do progresso (meios que devem ser elevados, dignos e nobres quando isso for possível, mas que podem estar acima de preceitos morais ou de normas transcendentes, quando se tornar necessária a violação do ético e do mítico) – aí está, ia-se dizendo, a essência da doutrina de Maquiavel." [36]

Norberto Bobbio, cientista italiano dos mais festejados, garante que a apreciação moral é feita em todos os campos da conduta do homem, embora tal questão assuma, na esfera política, um caráter particularíssimo. E, distingue, usando uma linguagem weberiana, a Ética da convicção, ou individual, da Ética da responsabilidade, ou do grupo, que se ajusta às ações políticas.

Na Ética da convicção, prossegue Bobbio, vale a pureza das intenções e a coerência entre os propósitos e ações, que devem se desenvolver com respeito a princípios da Moral comum, independentemente dos resultados que se venha obter. Enquanto isso, na Ética da responsabilidade, predominante na Política, sempre se questiona a respeito dos resultados advindos das ações, que precisam se desenvolver visando às utilidades e aos benefícios representados no interesse público.

Para Bobbio, "a ação política não se subtrai em absoluto, como qualquer outra ação livre ou supostamente livre do homem, ao juízo do lícito e do ilícito, em que consiste o juízo moral, e que não pode ser confundido com o juízo do idôneo e do inidôneo." [37]

Na realidade, o extraordinário professor italiano lembra que:

Não há lei moral que não preveja exceções em circunstâncias particulares. A regra "não matar" falha no caso de legítima defesa – vale dizer, no caso em que a violência é o único remédio possível para a violência naquela particular circunstância –, com base na máxima que expressamente ou tacitamente é acolhida pela maioria dos sistemas normativos morais e jurídicos: vim vi repellere licet. A regra "não mentir" falha, por exemplo, no caso em que o filiado a um movimento revolucionário é detido e exigem-lhe que denuncie seus companheiros. Em todo sistema jurídico é máxima consolidada que lex specialis derogat generali. Esta máxima é igualmente válida na moral, e naquela moral codificada que está contida nos tratados de teologia moral para uso dos confessores.

Segundo a teoria que estou expondo, aquilo que aparece à primeira vista como uma violação da ordem moral, cometida pelo detentor do poder político, nada mais é que uma derrogação à lei moral cumprida em uma circunstância excepcional. Em outras palavras, o que justifica a violação é a excepcionalidade da situação na qual o soberano viu-se operando. Já que estamos buscando individuar os diferentes motivos de justificação da conduta não moral do homem político, aqui o motivo deve ser buscado não na pressuposição da existência de um distinto sistema normativo, mas no interior do único sistema normativo admitido, dentro do qual se considera válida a regra que prevê a derrogação em casos excepcionais." [38]

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Não se deve pensar de maneira diferente somente porque surgem, com certa frequência, situações excepcionais de desrespeito a princípios da moralidade, no mundo atribulado da Política.

A vida pública não se pode desvencilhar dos intentos de realização do bem comum e de salvação da Potência soberana. São as leis supremas. Por conseguinte, em situações excepcionais, a chamada razão de Estado permite ao agentes políticos a prática de determinados atos, que seriam censuráveis na ótica da Moral comum.

Que é razão de Estado? Eis a resposta de Norberto Bobbio:

Por razão de Estado entende-se aquele conjunto de princípios e máximas com base nas quais ações que não seriam justificadas se cumpridas por um indivíduo isolado não são apenas justificadas mas em alguns casos de fato exaltadas e glorificadas se cumpridas pelo príncipe, ou por qualquer pessoa que exerça o poder em nome do Estado. [39]

A razão de Estado configura a circunstância que legitima certas ações políticas que violam regras morais comumente aceitas na ambiência social. Por força de sua aplicação em situações excepcionais se legitimam atos ofensivos à Ética da convicção, mas compatíveis com a Ética da responsabilidade, onde prevalece a máxima de que "os fins justificam os meios".

A vida social organiza-se em torno de objetivos comuns, que vão desde o atendimento das necessidades básicas de perpetuar a espécie e preservar os grupos até a satisfação dos desejos humanos de bem estar individual e coletivo, de segurança e manutenção da soberania na esfera internacional.

Bobbio ressalta que:

Para o próprio Maquiavel, a ação política "imoral" (imoral em relação à moral dos pater noster) é justificada apenas se tem por fim as "grandes coisas", ou "a saúde da pátria". Perseguir o poder pelo poder significaria transformar um meio – em um fim em sim mesmo. Mesmo para quem considera a ação política como uma ação instrumental, ela não é instrumento para qualquer fim que o homem político se compraza em perseguir. Mas, uma vez feita a distinção entre um fim bom e um fim mau, uma distinção à qual não escapou nenhuma teoria da relação entre moral e política, é inevitável distinguir a ação política boa da ação política má, o que significa submetê-la a um juízo moral. Pensemos em um exemplo. O debate sobre a questão moral diz respeito, com freqüência, e especialmente na Itália, ao tema da corrupção, em todas as suas formas, previstas, de resto, pelo código penal sob a rubrica de crimes em função de interesse privado em atos de favorecimento, peculato, extorsão, etcétera, e, especialmente, em referência quase exclusiva a homens de partido, ao tema que costuma ser denominado dos percentuais. Basta uma breve reflexão para dar-se conta de que o que torna moralmente ilícita toda forma de corrupção política (deixando de lado o ilícito jurídico) é a fundamentalíssima presunção de que o homem político que se deixa corromper colocou o interesse individual à frente de interesse coletivo, o bem próprio à frente do bem comum, a saúde da própria pessoa e da própria família à frente do bem comum, a saúde da própria pessoa e da própria família à frente da saúde da pátria. E assim fazendo, faltou ao dever de quem se dedica ao exercício da atividade política, cumprindo uma ação politicamente incorreta [40].

Tenho uma visão positiva acerca dos motivos justificadores da existência da comunidade política. O Estado não é, como bradou Nietzsche, "uma transgressão aos costumes e às leis" [41]. Nem se revela, como imaginou Marx, como reino da força arbitrária, implantado inicialmente para impedir que os trabalhadores se libertassem do jugo da burguesia, e, depois de vitoriosa a revolução, para ser utilizado como instrumento transitório de condução, pelo partido único e absolutista, da sociedade ao mundo novo de uma igualdade perfeita.

Os homens organizaram essa complexa instituição em busca da felicidade e do bem estar geral. A onisciência Divina que nos impeliu à vida social e, conseqüentemente, às restrições da submissão ao poder do Estado, também incutiu em nossas consciências o direito de resistência aos abusos. Entre esses, ganham relevo os resultantes do desrespeito à ética, que privam os hipossuficientes dos recursos indispensáveis à assistência por eles tão reclamada.

O desejo de lembrar tais lições, de recordar que a existência do Estado se justifica por seu propósito de realizar o bem comum, de advertir para a necessidade de ver a organização política e seus agentes atuando racionalmente, sem se desviar dos caminhos da moral e da legalidade, estimulam-me a fazer essas reflexões.

A moral e a política precisam caminhar juntas. Somente assim se justifica a existência do Estado, impondo amarras à liberdade natural dos homens.

Fábio Konder Comparato recorda que Maquiavel foi quem primeiro defendeu, "cruamente e sem eufemismos, que a vida pública é regida por uma ética especial, cujos valores supremos são a estabilidade interna e a independência externa da sociedade política." Os demais sistemas de regulação da vida humana devem servir a essa finalidade e "hão de submeter-se às exigências básicas de respeito à ordem e manutenção da segurança." [42].

Num país como o Brasil, onde tantas vezes se vivenciou regimes arbitrários, ao lado da aspiração pela probidade dos agentes públicos, há o anseio legítimo de preservação das regras constitucionais destinadas a garantir o regime democrático. Entre essas, destaca-se o artigo 16, da Carta da República, que reza:

A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência.

A norma transcrita destina-se a evitar casuísmos de maiorias arbitrárias, até porque a democracia pressupõe o respeito pelo direito de existência das minorias.

A ponderação entre esses dois interesses – probidade na vida pública e preservação da regra protetora do jogo democrático – terá que ser levada em conta pelo Supremo Tribunal Federal, no momento em que for apreciar, de modo definitivo, a questão da incidência da chamada "Lei da Ficha Limpa" à eleição de 2010.

A sociedade, como um todo, espera que a Excelsa Corte decida sem temor de desagradar quaisquer poderosos ou a própria opinião pública.


Notas

  1. O escritor e ex-professor Joacil de Brito Pereira é o pai do autor.
  2. PEREIRA, Joacil de Brito. A Ética no Direito. Artigo publicado no livro com o seguinte título: Temas de Direito e Ciências Afins. João Pessoa/PB: Editora Idéia Ltda. 2009. P. 171.
  3. COMPARATO, Fábio Konder. Obra citada. P. 18.
  4. MARTINS FILHO, Ives Gandra. Ética e Ficção – de Aristóteles a Tolkien. Rio de Janeiro/RJ: Elsevier Editora Ltda. 2010. P. 4.
  5. MARTINS FILHO, Ives Gandra. Obra citada. P. 23.
  6. ARISTÓTELES. , Ética a Nicômacos. (Livro II) Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 3ª Edição. Brasília/DF: Editora Universidade de Brasília, 1985, 1999. P. 41.
  7. ARISTÓTELES. Obra citada. (Livros I e II). Págs. 33 e 35.
  8. ARISTÓTELES. Obra citada. (Livro V). P. 93.
  9. ARISTÓTELES. Obra citada. (Livro II). Págs. 46 e 47.
  10. Salmo 39.
  11. Epistola aos Hebreus: 12.
  12. Epístola aos Hebreus: 11.
  13. Primeira Epístola aos Coríntios: 13.
  14. COMPARATO, Fábio Konder. Obra citada. Págs. 484 e 494.
  15. COMPARATO, Fábio Konder. Obra citada. Págs. 509
  16. MARTINS FILHO, Ives Gandra. Obra citada. Págs. 23 e 24.
  17. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Capítulo XVIII. Tradução de Olívia Bauduh. In: Os Pensadores – MAQUIAVEL. São Paulo/SP: Editora Nova Cultural Ltda, 2004. Págs. 75, 109/112.
  18. MAQUIAVEL, Nicolau. Obra citada. Págs. 64, 71, 75, 85, 94
  19. MAQUIAVEL, Nicolau. Obra citada. P. 106.
  20. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. (Livro I). Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 3ª Edição. Brasília/DF: Editora Universidade de Brasília, 1985, 1999. Págs. 17 e 23.
  21. ARISTÓTELES. Obra citada. (Livro I). Págs. 24 e 25.
  22. HOUAISS, Antônio. Villar, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1ª Edição. Rio de Janeiro/RJ: 2001. P. 1323.
  23. ARISTÓTELES, Obra citada. (Livro I). Págs. 17, 19 e 23.
  24. COMPARATO, Fábio Konder. Ética – Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. P. 17.
  25. COMPARATO, Fábio Konder. Obra citada. P. 69.
  26. COMPARATO, Fábio Konder. Obra citada. P. 155.
  27. Vejo a Política, enquanto ciência, coincidindo com a Teoria Geral do Estado, cuidando dos estudos antecipatórios da parte geral do Direito do Estado, também chamado de Direito Constitucional ou Direito Político.
  28. MARCONI, Marina de Andrade. LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 7. Edição revista e ampliada. São Paulo/SP: Atlas, 1999, p. 181.
  29. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 3ª Edição. Coimbra/Portugal: Armênio Amado – Editor, Sucessor. 1974. P.
  30. PEREIRA, Eitel Santiago de Brito. O DIREITO EM ‘VIDAS SECAS’ – homenagem a Graciliano Ramos no Centenário do seu nascimento. João Pessoa/PB: EDA. Edit. Impresso na GRAFSET. 1992. P. 21.
  31. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 2º Volume. 7ª edição, revista. São Paulo/SP: Saraiva SA Livreiros Editores. 1975. P. 615.
  32. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Marlene Holzhausen. Revisão técnica de Sérgio Sérvulo da Cunha. 1ª edição. São Paulo/SP: Martins Fontes, 2004, págs. 52 e 53.
  33. Constituição Federal: inciso VI, do artigo 5º.
  34. REALE, Miguel. Obra citada. P. 622.
  35. PEREIRA, Joacil de Brito. Idealismo e Realismo na Obra de Maquiavel. 3ª edição. João Pessoa/Paraíba: Idéia Editora Ltda. 1998, P. 52.
  36. PEREIRA, Joacil de Brito. Obra citada. Págs. 98 e 99.
  37. BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organizado por Michelangelo Bovero. Tradução de Daniel Beccacia Versiani. Rio de Janeiro: Campus. 2000, p. 202.
  38. BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organizado por Michelangelo Bovero. Tradução de Daniel Beccacia Versiani. Rio de Janeiro: Campus. 2000, p. 186-187.
  39. BOBBIO, Norberto. Obra citada. P. 176.
  40. BOBBIO, Norbeto. Obra citada, p. 202.
  41. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zarastrutra. Tradução da equipe de tradutores da Editora Martin Claret. São Paulo. Martin Claret, 2000, p. 51-52.
  42. COMPARATO, Fábio Konder. Obra citada. P. 155.
  43. Sobre o autor
    Eitel Santiago de Brito Pereira

    Subprocurador-Geral da República e Professor de Ciência Política da Universidade Federal da Paraíba

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    PEREIRA, Eitel Santiago Brito. Ética na política.: Uma reflexão a respeito da imediata aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2676, 29 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17738. Acesso em: 17 mai. 2024.

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