RESUMO: O princípio da vedação ao confisco tem efetiva relevância na realização da justiça fiscal, diante de sua função constitucional limitadora do poder estatal. Previsto no art. 150, V, da CR/88, o princípio do não-confisco configura-se como expressão tributária da proporcionalidade, vinculando, desta feita, todas as formas de exercício da função normativa pelo poder público, razão pela qual se impõe sua observância por todas as esferas de poder do Estado. Diante desta inevitável vinculação, o presente artigo tem como objetivo principal examinar a forma de conduta do poder público frente ao referido princípio, a fim de verificar a efetividade ou não desse princípio no sistema jurídico pátrio. Analisando a legislação, a doutrina e a jurisprudência existentes sobre o assunto, o intuito é, sobretudo, o de fomentar o debate sobre o tema, coibindo que o princípio não passe de letra morta no papel que veicula a Constituição.
1- INTRODUÇÃO
O tema "o princípio da vedação de tributo com efeito de confisco e sua efetividade no sistema tributário nacional" é de extrema importância na interpretação-aplicação do Direito aos casos concretos, tendo em vista a realização da justiça fiscal, muito embora pouco se tenha escrito sobre ele, tanto na doutrina pátria como na estrangeira e, mesmo assim, sem atingir conclusões satisfatórias.
O debate do tema, sobretudo no cenário do sistema tributário brasileiro atual, diante do inúmero de tributos instituídos até o momento e diante do crescimento da inadimplência e da sonegação fiscal, tornam-no de estrema relevância para os estudiosos do direito.
Cabe aqui uma análise da forma de conduta do poder público frente ao referido princípio, a fim de verificar a efetividade ou não desse princípio no sistema jurídico pátrio.
A cada um dos poderes estatais, dentro das funções que lhe foram atribuídas pela Carta Magna, cabe a observação e garantia do cumprimento de tal princípio na realização da atividade tributária.
Neste sentido, o legislador deve tê-lo como um limitador ao exercício da função normativa-legislativa, respeitando, portanto, no que se refere em especial ao poder de tributar, o limite que o legislador constituinte originário fixou na Constituição da República.
O executivo, por sua vez, tem o dever de exercer o controle sobre os atos que pratica, de forma que deve pautar-se, além de tudo, nos valores que encerram a atividade Administrativa. Entram em cena: legalidade, moralidade, finalidade e, sobretudo, razoabilidade na atuação do Estado como órgão fiscal, na arrecadação e, quiçá, na destinação tributária.
Por fim, o judiciário, ao mesmo tempo em que lhe tem conferido constitucionalmente o dever de controle dos atos legislativos e executivos, atestando, destarte, a validade diante das normas e valores impostos pela própria Constituição, deve, outrossim, observar o princípio do não-confisco na medida em que lhe é dirigido, com deferência aos limites impostos pela Constituição, ao efetuar seus julgamentos. Neste caso, sua função vai além de examinar o princípio, exigindo, ademais, que suas decisões demonstrem concretamente sua observância, através da motivação racional.
E é nesta medida que se aborda o assunto, sem a pretensão, por óbvio de esgotá-lo, mas, pelo contrário, motivar o aumento dos estudos sobre o tema e o seu aprofundamento, para que os poderes estatais possam obter referências sobre o princípio do não-confisco, facilitando a sua utilização, sobretudo pelo Poder Judiciário e permitindo que eles ajam eficazmente no exercício da tributação, em busca de uma verdadeira justiça fiscal.
2- O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO
O princípio da vedação de tributo com efeito de confisco, o "princípio da proporcionalidade razoável no âmbito do sistema tributário", consoante intitulado pelo constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA [01], ou simplesmente o "princípio do não-confisco" – da forma como mais usualmente é conhecido – encontra-se previsto no art. 150, IV, CF/88.
Objeto de estudo por diversos autores, o princípio do não-confisco foi definido de forma resumida por HUGO DE BRITO MACHADO nos seguintes termos: "tributo com efeito de confisco é tributo que, por excessivamente oneroso, seja sentido como penalidade." [02]
O Supremo Tribunal Constitucional, por sua vez, ao tratar do referido princípio em sede da ADI 2010 MC, trouxe ao mesmo um conceito mais elaborado:
A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). [03]
Essa noção de tributo exorbitante, no entendimento de ESTEVÃO HORVATH [04] não envolve apenas aqueles tributos que possam produzir efeito confiscatório, mas toda a tributação que comprometa de forma abusiva a renda e o patrimônio do contribuinte, ou lhe iniba o consumo.
HORVATH, conforme o exposto acima, traz à discussão tema interessante: Qual a forma de aferição da confiscatoriedade? Ela deve dar-se em determinado tributo ou em relação a toda a carga tributária?
Segundo o Pretório Excelso [05], o efeito confiscatório do tributo deve ser avaliado em função do sistema, isto é, de toda a carga tributária, levando em conta a capacidade econômica do contribuinte para suportar e sofrer a incidência da totalidade de tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma entidade estatal.
Desse modo, para que o sistema de tributação venha a ser considerado confiscatório é necessário que o poder público tenha agido imoderadamente, desrespeitando a capacidade econômica do contribuinte e atingindo, com o total de suas arrecadações, riqueza que, na verdade, não existe.
HUGO DE BRITO [06] e ALONSO GONZALEZ têm posicionamento idêntico. São palavras deste último autor:
No parece que la determinación de la confiscatoriedad sea resultado de la aplicación de un tributo en particular, sino de la configuración global del entero sistema tributado. [07]
Diversa é a posição de RICARDO LOBO TORRES sobre o assunto:
A proibição de tributos confiscatórios deve ser examinada isoladamente com relação a cada hipótese de incidência, levando-se em conta as condições de modo, tempo e lugar que possam tornar inconstitucional a sua aplicação. O controle judidicial se exerce sobre a norma que institui o confisco na via impositiva, e não sobre o sistema tributário em geral. [08]
Conciliando as duas formas de pensar, HORVATH coloca um ponto final à questão:
A nós parece que o controle de constitucionalidade do sistema tributário deve ser efetuado de ambas as formas: individualmente, com relação a cada tributo, de acordo com as respectivas peculiaridades, e do sistema em seu conjunto, embora reconheçamos a especial dificuldade que este último encerra. [09]
Indo além da discussão a respeito do alcance da aferição de tal efeito confiscatório, nos interessa observar que a vedação ao confisco constitui princípio jurídico que deve informar toda a atuação do Estado, em seu três níveis: Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim, como expressão tributária da proporcionalidade, o princípio do não-confisco vincula todas as formas de exercício da função normativa pelo poder público, devendo, portanto, ser cotejado – de que forma seja –, por todas as esferas de poder do Estado.
LUCIANO AMARO esclarece que:
o princípio da vedação de tributo confiscatório não é um preceito matemático; é um critério informador da atividade do legislador e é, além disso, preceito dirigido ao intérprete e ao julgador, que, à vista das características da situação concreta, verificarão se um determinado tributo invade ou não o território do confisco. [10]
De fato, o pagamento de tributo representa uma limitação à liberdade individual ao patrimônio, por consegüinte, o poder de tributar precisa estar submetido a um controle para que esta limitação não se torne abusiva e acabe por produzir efeitos semelhantes ao confisco.
Todavia, este controle dá-se de diferentes formas, conforme a específica atuação de cada poder. A verificação da regularidade da atividade tributária deve dar-se no âmbito do Legislativo, através do controle de constitucionalidade das leis a ser exercido pelos tribunais; do Executivo, com a verificação da validade do ato administrativo, também pelos tribunais; e do Judiciário, que deve pautar suas decisões na proporcionalidade, devendo motivá-las sempre respeitando os aspectos de adequação, necessidade e conformidade.
Isso porque, segundo HELENILSON CUNHA:
o atingimento do conjunto de finalidades previstas pela ordem constitucional exige que o intérprete-aplicador do Direito (a começar pelo legislador) efetue contínuas operações de sopesamento entre os diferentes princípios jurídicos constitucionais, através de um apurado exercício de prudência. Obviamente que o alcance dos desideratos constitucionais requer, muitas vezes, uma certa restrição à esfera jurídica dos indivíduos, também protegida constitucionalmente prima facie. Contudo, esta restrição, além de ser adequada e necessária, deve estar em perfeita conformidade com o objetivo perseguido pela regra limitadora, e jamais aniquilar por completo o direito ou garantia individual protegido prima facie pelo ordenamento jurídico e que concretamente sofre a limitação. [11]
3- A VEDAÇÃO AO CONFISCO NO ÂMBITO DOS TRÊS PODERES
3.1- O PODER LEGISLATIVO
Pelo princípio constitucional da reserva legal em sede tributária, a exigência ou o aumento de tributos deve dar-se através de lei (art. 150, I, CF).
Em vista disso, o princípio da vedação ao confisco dirige-se, inicialmente, ao legislador, uma vez que o mesmo institui, através de lei, os tributos, de acordo com a competência atribuída pela Constituição.
Para o Poder Legislativo, tal princípio representa um guia, um instrumento que impõe um comportamento a ser observado no exercício da função normativa-legislativa.
Desta forma, ao exercer o poder de tributar, o legislador de cada ente federativo deve respeitar os limites que o legislador constituinte originário impôs no seio da Constituição. Esses limites aparecem sobre a forma de princípios e imunidades. E se é certo que os princípios são espécies normativas, os mesmos, por fazerem parte do ordenamento jurídico, obrigam sua aplicação pelo legislador, sempre que tributos forem criados ou majorados.
No sistema constitucional brasileiro, as normas submetem-se a um controle de constitucionalidade a fim de averiguar a compatibilidade das mesmas com a Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais. Existem duas espécies de controle: o preventivo, exercido pelas Comissões de Constituição e Justiça integradas por membros da Câmara e do Senado Federal, e pelo Poder Executivo, através do veto jurídico; como também o repressivo, realizado pelo Judiciário a posteriori da criação da norma.
O controle realizado pelo Judiciário pode dar-se de forma concentrada, diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, que, pronunciando-se sobre o mérito, declara a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo; ou de forma difusa, quando qualquer juiz ou tribunal realizar, no caso concreto, a análise da compatibilidade da norma com a Constituição. No controle difuso, essa análise não é feita sobre o objeto principal da lide, mas sobre questão prévia, indispensável ao julgamento do mérito.
Esse esclarecimento é essencial para que se possa compreender a necessidade de um controle a posteriori, realizado pelos tribunais, do produto legislativo, sempre que este se mostre incompatível com a Lei Maior.
Não se trata de interferência de uma das funções do poder estatal (exercida pelo Judiciário) em outra (a função legislativa). A função do Judiciário é a de aplicar corretamente o Direito, e se o legislador extrapola aqueles limites impostos pela Constituição e age arbitrariamente, é dever do Judiciário e, principalmente, do Supremo Tribunal Federal, como tribunal constitucional brasileiro, resguardar a Constituição, evitando que a mesma seja violada.
Contudo, CANOTILHO lembra que é reconhecida ao legislador certa liberdade de conformação na ponderação de bens ao editar uma norma. Em vista dessa liberdade de conformação, os tribunais devem limitar-se "a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada ou se existe um erro manifesto de apreciação por parte do legislador." [12]
Na opinião de PAULO BONAVIDES esse controle da atividade legislativa não pode exceder
o espaço criativo outorgado pela Constituição ao legislador para avaliar fins e meios, porquanto a determinação dos meios e fins pressupõe sempre uma decisão política, não importa seja esta de conteúdo econômico, social ou jurídico-político. [13]
E concluindo declara:
o que importa [...] é que a função do legislador não seja avocada pelo tribunal constitucional quando este examina se o legislador se manteve ou não dentro nos limites que lhe foram traçados pela Constituição. [14]
Além disso, HELENILSON CUNHA [15] estabelece que o exame da compatibilidade entre uma norma e a Constituição – mais especificamente, com relação ao princípio do não-confisco – somente ocorre diante da investigação das possibilidades fáticas e jurídicas de concretização da lei. Esta constitui o objeto sobre o qual se interpreta e aplica o princípio.
Assim, a lei, por si só, não permite a verificação daquela compatibilidade, mas somente quando a mesma passa a ter vigência e é aplicada em casos concretos, pode-se medir a sua adequação aos preceitos constitucionais.
Frente ao exposto, pode-se perguntar: e como saber de que forma deve portar-se o legislador para que não venha a instituir tributos com efeito confiscatório?
Para ESTEVÃO HORVATH [16]o legislador deve servir-se da razoabilidade, da proporcionalidade etc. Ao instituir tributos, deve buscar uma limitação racional ao patrimônio privado, através da observância da capacidade econômica do contribuinte e permitindo as deduções necessárias, a fim de resguardar o mínimo vital; deve, ainda, utilizar-se da progressividade e, sobretudo, precisa seguir os princípios de adequação, necessidade e conformidade, para tornar possível e efetiva a justiça tributária.
Mas será que o legislador pátrio tem-se pautado nessas condutas? Ou será que por diversas vezes o princípio da vedação ao confisco tem sido violado por tributações abusivas e nocivas a uma convivência pacífica entre Estado e cidadão?
O Judiciário tem sido, por diversas vezes, acionado em virtude de violação ao princípio do não-confisco, mas pouquíssimas dessas situações analisadas pelos tribunais foram consideradas como ofensoras desse princípio. Segundo o Supremo Tribunal Federal, o exame da questão do efeitoconfiscatório deve ser feito em função da totalidade do sistema tributário e não em função de cada tributo isoladamente, o que dificulta a sua aferição.
Além disso, considerando a carga tributária em sua totalidade, deve ser levada em consideração toda a conjuntura econômica e social do Estado, uma vez que existem países onde a carga tributária é elevadíssima, mas os serviços públicos prestados são abrangentes e de ótima qualidade, não se pondendo, no caso, falar em confisco. Diferentemente, a carga tributária do Brasil (33% sobre o PIB), que a princípio pode não parecer confiscatória, passa a sê-la, ao considerar-se a eficiência (melhor seria falar em ineficiência) dos serviços públicos aqui prestados, sem garantia do mínimo vital ao indivíduo.
3.2- O PODER EXECUTIVO
A atividade administrativa é, sobretudo, baseada na legalidade. Para os atos vinculados da administração, a lei estabelece as exigências e condições de sua realização. Assim, não só os requisitos de competência, forma e finalidade devem estrita obediência à lei, mas também o objeto e o motivo do ato devem pautar-se na legalidade.
HELY LOPES MEIRELLES reconhece que:
Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem, quase que por completo, a liberdade do administrador, uma vez que sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade da atividade administrativa. [17]
Um pouco diferente dos atos vinculados, os atos discricionários são aqueles praticados com liberdade de escolha de seu conteúdo, seu destinatário, sua conveniência, sua oportunidade e seu modo de realização.
Segundo dispõe HELY LOPES "a discricionariedade não se manifesta no ato em si, mas sim no poder de a Administração praticá-lo pela maneira e condições que repute mais convenientes ao interesse público." [18]
Isso não significa que o ato discricionário pode realizar-se ao arrepio da lei, pelo contrário; a discricionariedade administrativa é liberdade de ação dentro dos limites legais, porque, afinal, é a lei quem confere o poder discricionário ao administrador. Qualquer ação administrativa contrária ou excedente da lei é arbítrio.
O legislador é livre quanto à escolha dos motivos e do objeto do ato, porém os requisitos de competência, forma e finalidade continuam sendo previstos na lei.
Desta forma, mesmo a atividade discricionária não escapa aos limites da lei, devendo, para ser válida, buscar atingir o fim legal, isto é, aquele que vem expresso ou subentendido na lei.
Para o exercício válido das competências administrativas, delimitadas pela lei, estas tem que ser exercidas de forma proporcional ao que seja realmente demandado para o cumprimento da finalidade de interesse público a que estão vinculadas.
De fato, se ocorre algum excesso, desviando-se, o ato, da finalidade legal, este passa a ser arbitrário e inadequado à própria lei, por desvio de poder.
Registre-se, nesse sentido, a opinião de MARIA ZANELLA DE PIETRO:
Com efeito, embora a norma legal deixe um espaço livre para decisão administrativa, segundo critérios de oportunidade e conveniência, essa liberdade às vezes se reduz no caso concreto, onde os fatos podem apontar para o administrador a melhor solução. [...] Se a decisão é manifestamente inadequada para alcançar a finalidade legal, a Administração terá exorbitado dos limites da discricionariedade e o Poder Judiciário poderá corrigir a ilegalidade. [19]
Deve o administrador, portanto, estar atento à finalidade prevista ou implícita na lei. Este comportamento deve existir em todos os campos jurídicos, inclusive, na área tributária.
Desse modo, os efeitos da tributação devem estar atrelados à finalidade para a qual aquela foi instituída. A Constituição atribui as competências tributárias e estabelece, juntamente com a lei, os fins da atividade tributária; qualquer ato que se desvie dos fins constitucionais e legais deve ser fulminado pelo Judiciário, tendo em vista "que ninguém deve estar obrigado a suportar constrições em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis à satisfação do interesse público." [20]
Vale ressaltar que o Executivo está também submetido a um controle administrativo, realizado pela própria Administração sobre suas atividades. Assim, a Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, como também revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade.
Demais disso, assim como para o Legislativo, o princípio do não-confisco representa um dever para o Poder Executivo, devendo ser observado no desempenho da função administrativa.
DINO JARACH torna claro que conduta deve ter o administrador em face de um ordenamento jurídico moderno e aperfeiçoado, na seguinte explanação:
A autoridade fiscal que emite o ato de determinação não é necessariamente a parte adversa do contribuinte. [...] o órgão estatal que emite o ato de determinação não está atado a um lucro mal entendido (sic) de obter a todo custo a máxima percepção de impostos, senão que está investido da hierarquia e da autoridade suficiente para colocar-se por cima de lucros de credor e devedor e pronunciar o direito, ou seja, decidir, tendo em conta os fatos e o direito aplicáveis, e portanto do débito contraditório, qual é a obrigação tributária que deve cumprir o contribuinte e, correlativamente, qual é o crédito que o fisco pode exigir. [21]
Todavia, parece que a Administração Pública não pensa desta forma, inclusive chegando a pronunciar que a vedação ao confisco pela Constituição é dirigida ao legislador, cabendo à autoridade administrativa o lançamento nos moldes da legislação que institui o tributo. [22]
Parece que a Administração está equivocada. Quando a Constituição Federal veda a tributação com efeito confiscatório, ela não está exigindo apenas que o legislador elabore as leis instituidoras dos tributos com respaldo nesta limitação, mas também, que o fisco, ao efetuar a arrecadação desses tributos instituídos por lei, considere a finalidade para qual este tributo foi instituído, sob pena de tornar a arrecadação confiscatória da propriedade e da renda do contribuinte.
A atividade tributária não se resume à criação de tributos por lei, mas é necessária a conversão da lei em ato individual e concreto, a fim de que os tributos possam vir a ser cobrados e dirigidos aos cofres públicos; isto é feito através da função administrativa do Estado.
Cabe, no momento, saber se o exercício da atividade tributária brasileira, no tocante à sua arrecadação pelo fisco, tem apresentado efeitos compatíveis com a finalidade legal e constitucional da tributação. Foram respeitados adequação, necessidade e conformidade entre essa finalidade e os meios utilizados para atingir tal desiderato?
Outra questão é saber se a destinação errada dos tributos pela Administração poderia ser considerada confisco.
A atividade de arrecadação tributária não é das mais fáceis. A execução das normas, visando à cobrança dos tributos é, por vezes, difícil e complexa. Este motivo tem levado o fisco a recorrer à praticabilidade, através de presunções e ficções, a fim de simplificar e facilitar a arrecadação.
E em nome dessa praticabilidade, o fisco tem deixado de lado princípios constitucionais como o da vedação ao confisco e da capacidade contributiva, gerando um verdadeiro enriquecimento ilícito por parte do Estado e o esgotamento das fontes tributantes.
O Estado, no exercício de suas funções precisa estar bem ciente do seu papel de fazer cumprir o interesse público acima de tudo. O administrador, no exercício de suas competências, deve observar sempre os princípios da Administração: a moralidade, a publicidade, a impessoalidade, a legalidade e a eficiência, como garantia do cumprimento desta finalidade.
De fato, se as pessoas políticas receberam a competência tributária da Constituição e se esta brotou da vontade soberana do povo, é evidente que a tributação não pode operar-se exclusivamente e precipuamente em benefício do Poder Público ou de uma determinada categoria de pessoas. [23]
Quanto a questão da destinação dos tributos, ESTEVÃO HORVATH [24] entende que a aplicação do dinheiro público pertence a outro campo de regulação, que não o Direito Tributário, por isso não se poderia afirmar que o mau uso do dinheiro arrecadado com a tributação constituiria confisco.
Para ROQUE CARRAZZA [25] o princípio republicano garante que os tributos só possam ser criados e exigidos por razões públicas e, em conseqüência, o dinheiro obtido com a tributação deve ter, necessariamente, destinação pública.
3.3- O PODER JUDICIÁRIO
Por ser o Judiciário aquele poder que garante o respeito às normas, especialmente às constitucionais, cabe-lhe dizer a última palavra sobre o Direito. A garantia dos direitos fundamentais é efetuada, em última instância, pelos tribunais, quando tais direitos são violados. Esse "aspecto assume especial relevo na ordem jurídica brasileira, onde são constitucionalmente garantidas a inafastabilidade e a universalidade da jurisdição (art. 5°, XXXV, CF)." [26]
Segundo ESTEVÃO HORVATH [27], o efeito confiscatório é uma expressão, dentre muitas outras, cujos termos são vagos ou indeterminados. Enquanto situações extremadas são facilmente reconhecidas, aquelas localizadas na chamada "zona cinzenta" ou "zona de penumbra", onde não se consegue determinar com exatidão se a tributação é ou não excessiva, exigem uma atuação do Poder Judiciário, a fim de verificar a validade dos atos estatais e, com base na idéia de justa medida, decidir a questão.
Assim, é através do Judiciário que é feito o controle da adequação dos meios tributários ao fim buscado com os mesmos, e do balanceamento concreto dos interesses em conflito: tributação e direito de propriedade.
Ao passo que para o Legislativo e o Executivo o princípio da vedação ao confisco deve servir como um instrumento de orientação da atividade estatal, para o membro do Poder Judiciário o princípio representa uma imposição constitucional de verificação da validade dos atos estatais, onde as decisões judiciais constituem veículo desse controle.
Não obstante, tal princípio é dirigido também ao julgador, que deve portar-se da mesma forma que o legislador e o administrador, com deferência aos limites impostos pela Constituição, ao efetuar seus julgamentos. Além de examinar o princípio do não-confisco, suas decisões devem demonstrar concretamente sua observância, através da motivação racional.
A racionalização da motivação é necessária, sobretudo para preservar o princípio da separação dos poderes do Estado, que constitui um dos pilares do Estado de Direito, e garantir a segurança jurídica, uma vez que sem critérios e parâmetros objetivos de controle sobre outros poderes, correr-se-ia o risco de ver os tribunais assumirem o papel arbitrário, que antes se procurou evitar no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo, através do controle judicial.
No sistema jurídico pátrio, sobretudo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a primeira referência de algum significado ao princípio do não-confisco ocorreu em sede do RE 18331, julgado em 1951, cujo relator foi o Ministro Orosimbo Nonato:
O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, comércio e da indústria e com o direito de propriedade. É um poder, cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do "détournement de pouvoir". Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei Maior pode se acender não somente considerando a letra do texto, como também, e principalmente, o espírito do dispositivo. [28]
Conforme se vê nesse julgado, se contrapondo à célebre frase extraída do acórdão de MARSHALL [29], e em função da garantia dos direitos fundamentais, o tribunal constitucional brasileiro invocou um juízo de proporcionalidade para medir o exercício da atividade tributária e evitar que possíveis excessos pudessem tornar tais direitos indisponíveis.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADI 2010 MC [30] contra a lei 9783/99, que instituía contribuição da seguridade social sobre servidores inativos e pensionistas da União Federal, concedeu medida cautelar para suspender, com efeito erga omnes, os arts. 2° e 3°, bem como as expressões "inativos e pensionistas" e "provento ou pensão" contidas no artigo 1° da citada lei, por considerar relavante, in casu, a tese de ofensa ao princípio que veda a utilização de qualquer tributo com efeito de confisco (CF, art. 150, IV), já que a pretensão governamental conduzia à injusta apropriação estatal dos rendimentos do contribuinte, comprometendo a regular satisfação de suas necessidades vitais, pela insuportabilidade da carga tributária.
Voltando ao tema do controle judicial, HORVATH chama atenção para um questionamento importante: em vista da liberdade criativa concedida ao legislador pela Constituição Federal, como também o poder discricionário, no tocante ao mérito administrativo, de que forma se deve dar o controle dos tribunais?
Tal autor relata que por diversas vezes os tribunais brasileiros decidem distintamente ao que estabelece a Constituição, somente para solucionar politicamente a questão, haja vista que se entendendo inconstitucional determinada tributação, estar-se-á originando para o ente tributante um problema de difícil solução, pois o Estado pode ter que se sujeitar a restituir a importância paga indevidamente a título de tributo.
Mas não seria esta a conduta correta? Não estaria, no caso, havendo um enriquecimento ilícito por parte do Estado? Num Estado Democrático de Direito, o poder público tem legitimidade para tolher direitos constitucionais de forma desproporcional e desarrazoada?
HORVATH averba que:
Até chega a parecer natural e compreensível que um tribunal superior leve em consideração a repercussão (em sentido amplo) política das decisões importantes para a Nação. Todavia, não parece natural que o aspecto político possa independentemente do que disponha a Constituição. Dito de outro modo, se se puder interpretar a Constituição de modo a abarcar simultaneamente o aspecto jurídico e levar em conta as repercussões políticas, muito bem; se tal proceder não se revelar possível, haver-se-á de optar pelo respeito ao querer constitucional. [31]
Isso não quer dizer que o Judiciário, no controle dos atos estatais, pode extrapolar a tarefa de considerar constitucional ou não tais atos, e tentar melhorá-los ou adaptá-los, convertendo-se, desse modo, em legislador ou administrador alternativo.
Os tribunais precisam sim exercer a sua tarefa de interpretar e aplicar o Direito, sempre garantindo o respeito às leis e à Constituição, mas não deve tolher as funções do Poder Legislativo e Executivo, que também têm seu papel no sistema jurídico firmado pela Constituição.
O certo é que o Poder Judiciário deve ser cada vez mais independente para continuar no exercício de suas funções constitucionais, entre elas a de coibir as arbitrariedades, o confisco e o abuso de poder.
Nesse sentido, pertinente é o comentário de HUGO DE BRITO MACHADO:
Cabe ao Judiciário dizer quando um tributo é confiscatório. A regra constitucional, no mínimo, deu ao Judiciário mais um instrumento de controle da voracidade fiscal do Governo, cuja utilidade certamente fica a depender da provocação dos interessados, e da independência e coragem dos magistrados, especialmente dos que integram o STF. [32]