Introdução
O presente estudo tem como finalidade expor, de forma clara e sistematizada, os benefícios fiscais aos portadores de doenças graves e/ou doenças incuráveis, em especial no Estado de Minas Gerais.
Os portadores de doenças graves e/ou incuráveis enfrentam diversos problemas em nossa sociedade, desde a simples rejeição social, passando pela discriminação, até a dificuldade de acesso a tratamentos e aos locais onde estes tratamentos poderiam ser disponibilizados.
Quando uma pessoa descobre ser portadora de uma doença grave ou incurável, ela fica abalada, necessitando ser amparada, seja por entes queridos, seja pelo próprio Estado.
Contudo, este abalo, este choque inicial, de se saber portador de doença grave e/ou incurável tem que ser superado e as coisas práticas tem que ser pensadas.
Dentre tais coisas se encontram a busca pelo tratamento efetivo e a busca pelos benefícios tributários.
Sabemos que os portadores de doenças graves e/ou incuráveis muitas vezes desconhecem direitos garantidos por lei criados para trazer uma possível folga no orçamento doméstico.
E existem inúmeros benefícios para esses cidadãos.
A Constituição Federal, Lei maior de nosso país, assegura que a saúde é direito de todos e dever do Estado.
Isso significa que todos os cidadãos residentes no Brasil, acometidos por qualquer doença, tem direito de receber tratamento pelos órgãos de assistência médica mantidos pela União, pelos Estados e pelos Municípios, assistência esta denominada SUS – Sistema Único de Saúde.
O tratamento compreende o fornecimento de remédios, a realização de consultas, cirurgias, exames laboratoriais, tomografias, raios-X, ultra-sonografia, radioterapia, quimioterapia, etc.
O tratamento realizado pelo SUS deve ser totalmente custeado pelo Governos Federal, Estadual e Municipal.
Mas o tratamento não é a maior barreira que o acometido por doenças graves e/ou incuráveis enfrenta.
O custo do tratamento é alto, sendo que a maioria da população não possui condições financeiras para arcar com o tratamento.
Aqueles que possuem alguma condição financeira para custear o tratamento, ou parte dele, necessitam de condições especiais para transporte aos locais onde o tratamento é dispensado à população, para compra de medicamentos (uma vez que a tabela dos medicamentos que são fornecidos pelo SUS é limitada), vendo assim todo o dinheiro que era destinado à manutenção do lar se esvair para custear um tratamento que, muitas vezes é doloroso e cercado de sofrimento.
Visando facilitar a vida dessas pessoas, o Estado passa a abrir mão de parte de sua receita tributária, já que qualquer incremento no orçamento dessas pessoas significa um aumento em sua qualidade de vida.
Assim, está ligado intimamente o tratamento de pessoas doentes com a matéria tributária, uma vez que se por um lado é decorrente dos impostos que se sustenta a saúde, por outro é através da concessão de benefícios tributários que se ajuda diretamente os cidadãos no custeio do tratamento.
Há isenções de Imposto de Renda, ICMS, IPVA, IPI, IOF, possibilidade de saque antecipado de FGTS, concessão de passe livre e de benefícios previdenciários, como o auxílio doença, aposentadoria por invalidez, amparo assistencial, andamento prioritário de processo judicial, quitação da casa financiada (em alguns casos), levantamento de indenização securitária e da previdência privada (em alguns casos) e adicional de 25% sobre aposentadoria. A lista, no entanto, poderia ser ainda maior caso fossem criadas leis específicas, para estender o amparo a essas pessoas.
Embora os direitos tenham perfil diferenciado, a grande maioria destina-se, como se vê, a desonerar o paciente com gastos tributários e garantir incremento no bolso para ajudar no custeio do tratamento, em geral, oneroso, já que os tratamentos demandam a utilização de muitos remédios, suplementos alimentares, fibras e alimentação pouco convencional.
Entende-se que a descoberta dos benefícios que a legislação assegura passa a ser fundamental para a pessoa, uma vez que o tratamento, além de ser longo, é dispendioso.
Contudo, os direitos dos portadores de doenças graves e/ou incuráveis são muito escassos, pelo menos aqueles já positivados.
Assim, o grande problema enfrentado pelos cidadãos acometidos de doenças graves e/ou incuráveis, além da própria doença, é a falta de legislação que lhes garanta o mínimo de dignidade e de direitos.
Verificamos, ao que tudo indica o Direito desses cidadãos hoje é tratado de forma secundária em nossa norma.
Os direitos são tão escassos que podem ser conhecidos, decorados e salteados, sendo expostos em preciosíssimas cartilhas veiculadas em instituições de tratamento também preciosas para toda a sociedade.
A partir de tal problema diagnosticado, estudaremos a legislação pátria, com enfoque na Constituição de 1988. Veremos como nossa Carta Magna, o instrumento mais importante na concessão dos benefícios em estudo, fornece os princípios para a União, os Estados e Municípios garantirem maior qualidade de vida para o enfermo durante o tratamento da doença grave e/ou incurável.
Verificaremos se os textos da Carta Magna que tratam das garantias essenciais convergem para o mesmo ponto: resguardar a vida e a saúde de todos já que o maior bem tutelado no nosso direito deve ser a vida.
Seguindo a ordem de importância, estudaremos a legislação infra-constitucional, que concede benefícios para os portadores de doenças graves. Enfatizaremos, então, os tipos de benefícios na legislação federal e em legislações esparsas.
Verificaremos qual a principal modalidade de benefício concedido e trataremos deste benefício tributário, explicando inicialmente o conceito deste benefício no Direito, suas vantagens e como se dá a sua criação.
Ao lado da legislação interna, exporemos, também, as ações, recomendações, estudos e legislação internacional, que por certo influenciam as posturas adotadas pelo nosso próprio legislador, além da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Após, analisaremos outra fonte importante na garantia dos direitos dos portadores de doenças graves e/ou incuráveis: a jurisprudência. Veremos como os principais tribunais do país julgam as questões pertinentes ao assunto.
Ainda, na esfera da ação judicial, verificaremos como se dá a responsabilização de agentes públicos na concessão de benefícios tributários e disponibilização de tratamentos médicos. Observaremos como o entendimento jurisprudencial queda-se no sentido de reconhecer a hipossuficiência dos acometidos de doenças graves e/ou incuráveis e determinar a concessão de benefícios tributários e tratamentos médicos.
Além dessa concessão de benefício tributário e de concessão de tratamento médico, veremos como o Estado pode oferecer suporte às pessoas que estão em tratamento efetivo de doenças graves e/ou incuráveis e a responsabilização civil, com imposição de indenização pode ser possível em caso de omissão ou negativa de fornecimento de tratamento aos acometidos por doenças graves e/ou incuráveis.
Verificaremos ainda as decisões das instâncias administrativas em recursos sobre pedidos de benefícios tributários e quais os principais argumentos utilizados nestas decisões para negar um direito à pessoas normalmente fragilizadas e necessitadas.
Seguindo o estudo verificaremos se a matéria tributária é tratada de forma superficial e contraditória no Brasil ou se o legislador pátrio busca subsídios técnicos e jurídicos no momento em que propõe ou que vota um projeto de lei.
Desta forma vislumbramos a necessidade de expor os benefícios existentes no ordenamento pátrio àqueles que sofrem com enfermidades graves e/ou incuráveis, como eles são criados e, ainda, qual o comprometimento do legislador pátrio ao propor ou analisar os projetos de leis que tratam da matéria específica, como forma de estimular a busca pelos Direitos existentes e fomentar uma discussão sobre a ampliação destes.
Visamos, então, categorizar os benefícios tributários disponíveis aos portadores de doenças graves e/ou incuráveis, expor suas principais características e propor mecanismos para ampliar os direitos dos portadores de doenças graves e/ou incuráveis.
Ainda, como parte do estudo, analisaremos a competência legislativa acerca da matéria. Quem deve legislar sobre os benefícios tributários? Quem deve conceder os benefícios tributários?
Analisaremos também como o Estado pode se precaver dos aproveitamentos indevidos por pessoas inescrupulosas, que se utilizam desses expedientes para levar vantagens indevidas.
Por fim, na conclusão dos estudos, apresentaremos as críticas finais, com propostas para melhoria da concessão dos benefícios fiscais a portadores de doenças graves e/ou incuráveis e quais atitudes, das três esferas do governo, em conjunto ou separadamente, podem contribuir para a garantia constitucional do direito à vida e à saúde.
CAPÍTULO 1 – A SAÚDE NO NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO
1.1. CONCEITO DE SAÚDE. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
O conceito atual de saúde foi apresentado pela primeira vez no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde, datada de 26 de julho de 1946, ao considerar como saúde "o estado de completo bem-estar físico, psíquico e social".
A saúde, assim, exprime não somente aquele ser em perfeitas condições de higidez física e mental (mens sana em corpore sano), como também o que se acha integrado na convivência social, como elemento participante e receptivo dos benefícios da vida comunitária.
Desta forma o equilíbrio do ser humano com seu ambiente é somente desejado, mas necessário, pois o homem não é mero espectador da natureza, mas dela faz parte e com ela interage o tempo todo.
O equilíbrio ou desequilíbrio da natureza refletirão, de modo inclemente, sobre o estado de saúde dos seres humanos.
A interação do homem com a natureza traz uma conseqüência: mostra a saúde como um direito cujo sujeito não é um indivíduo, ou alguns indivíduos, mas todo um grupo, ou até mesmo a humanidade, pois o meio ambiente saudável não é indivisível.
Significa ainda dizer que se reconhece sadia e saudável não apenas a pessoa que se apresenta em perfeitas condições de higidez física e mental, mas aquela que se acha integrada na convivência social, como elemento participante e receptivo dos benefícios da vida comunitária.
Nota-se uma preocupação histórica dos povos na busca de um ideal de saúde, para o fortalecimento do grupo e até mesmo por instinto de preservação da espécie humana, uma vez que somente os mais fortes sobreviveriam às adversidades, tais como clima, surtos de doenças, guerras, etc.
Um dos mais importantes sujeitos na manutenção da saúde, os médicos, têm origem vinculada às figuras dos mágicos, curandeiros e feiticeiros, com notícias que remontam ao ano de 4.000 a.C., entre os sumérios, na Mesopotâmia.
Os gregos incentivavam as práticas desportivas uma vez que havia o culto ao corpo e ao belo naquele povo, sendo que eles acreditavam que havendo um equilíbrio entre o corpo e o belo haveria, portanto saúde. Há que se levar em consideração ainda que foi naquela cultura que nasceu Hipócrates, conhecido como o "pai da medicina".
Com a instauração da sociedade industrial, nos tempos modernos, notadamente na Inglaterra, há vinculação da idéia de saúde ligada à força do trabalho.
A sociedade passa a perceber que sem saúde o trabalhador produz menos e, consequentemente, o lucro da burguesia cai, desequilibrando o conceito da mais valia.
Atualmente a saúde é vista como direito fundamental de todo ser humano.
Com esses parâmetros, conclui GERMANO SCHWARTZ, em preciosa monografia sobre o tema, que a saúde pode ser conceituada como:
"um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de cada indivíduo e pressuposto de efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar" [01].
Disso se extrai que a saúde, como direito humano, só pode ser alcançada em um Estado de Direito, que tem atos alicerçados na ordem jurídica. Por isso tem de existir uma positivação dos direitos humanos, pois só haverá equilíbrio entre os direitos humanos e o poder político quando todas as partes estiverem sob as limitações positivadas.
Assim nasceu, como órgão integrante da Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, que passou a influenciar positivamente nas legislações próprias de cada Estado.
Com o surgimento das novas idéias de administração estatal, passou-se a perceber a enorme importância que exerce o Estado na manutenção de direitos sociais básicos do ser humano. Esses novos ideários provocaram grande mudança na percepção dos direitos à saúde, de modo que o bem-estar humano passou a estar umbilicalmente ligado ao seu desenvolvimento integral, ou seja, físico, intelectual e moral.
Dessa maneira, infere-se que o papel estatal passou a ser mais amplo, de modo a atuar diretamente no controle social para a garantia de iguais condições de existência digna a todos os membros da sociedade.
Outrossim, outras legislações e pactos internacionais caminharam no mesmo sentido. Nessa senda, podemos falar do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, o qual cuidou explicitamente do direito à saúde apontando, ainda, mecanismos para assegurar seu pleno exercício, entre elas, a adoção de medidas que visavam a diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento das crianças, a melhoria de todos os aspectos da higiene do trabalho e do meio ambiente, e a criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade. Diz seu artigo 12:
"Os Estados-partes no Presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental."
Assim foram nascendo os documentos sobre direitos humanos e, aos poucos, foi-se chegando à conclusão que os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais são interdependentes, e só com o pleno exercício de todos eles existe a pessoa humana, o ideal do homem livre.
A partir dessa conclusão a saúde é reconhecida como direito na Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU), embora de forma indireta, afirmada como decorrência do direito a um nível de vida adequado, que possa trazer a saúde.
Como lembra Sueli Gandolfi Dallari, os documentos internacionais relativos a direitos humanos conceituam saúde de forma ampla, desde o direito de um indivíduo à assistência médica em caso de doença, até a necessidade do direito do Estado ao desenvolvimento, implícito no direito a um nível de vida que proporcione a dignidade humana. [02]
Nesse diapasão, pode-se citar, ainda, outros documentos internacionais para a promoção da saúde, entre eles: Declaração de Alma Ata sobre Cuidados Primários (URSS, de 12 de setembro de 1978); Carta de Ottawa sobre a Promoção da Saúde (21 de novembro de 1986); Declaração de Adelaide sobre Cuidados Primários (abril de 1988); Declaração de Sundsvall sobre Promoção da Saúde (junho de 1991); Carta de Bogotá sobre Promoção da Saúde (9 a 12 de novembro de 1992); Carta do Caribe para a Promoção da Saúde (4 de junho de 1993); e Declaração de Jacarta sobre Promoção da Saúde (21 a 25 de julho de 1997).
1.2. DECLARAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS REFERENTES À SAÚDE
Nos textos mais antigos de declaração de direitos, como no Bill of Rights e em estatutos semelhantes, nada se encontra a respeito da proteção sanitária. As preocupações da época cingiam-se ao plano político das limitações de poder do Soberano.
A mesma situação se vislumbra na Declaração de Direitos da Revolução Francesa, não obstante a consagração dos direitos de liberdade, igualdade e fraternidade em contraponto ao regime absolutista que veio a ruir com a Tomada da Bastilha.
Foi em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se assumiu posição solene em favor do direito à saúde, conforme consta do seu artigo 25:
"Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e a sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto a alimentação, ao vestuário, ao alojamento, a assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito a segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade".
No mesmo tom, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, cuida do direito à saúde, apontando mecanismos para assegurar seu pleno exercício.
Nesse sentido as disposições de seu artigo 12:
"Os Estados-partes no Presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental."
Para o alcance dessa proteção integral à saúde das pessoas, o Pacto estabelece a obrigação dos Estados adotarem medidas que se façam necessárias para garantir:
a) a diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças;
b) a melhoria de todos os aspectos da higiene do trabalho e do meio ambiente;
c) a prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças;
d) a criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.
No mesmo ideal de proteção sanitária a proclamação contida na Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 4º afirma-se o direito à vida, desde o momento da concepção. E, em seu artigo 5º é referido o direito à integridade pessoal, como vemos:
"Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral".
Embora o Brasil tenha sido signatário da Declaração Universal e dos Pactos acima referidos, demorou-se muito a tomar providências legislativas internas que assegurassem os direitos declarados como dignos de proteção. Essa omissão decorreu do inadmissível retardamento da ratificação do Pacto no âmbito interno, ratificação esta somente ocorrida no ano de 1992.
Nesse intermédio de torpor legislativo, cresceu, no entanto, a movimentação na esfera jurídico-social pela implantação de um sistema de reforma sanitária, no que merece especial destaque o trabalho desenvolvido desde a década de 80 por SUELI GANDOLFI DALLARI, a sustentar que a saúde constitui direito fundamental do homem, demandando providências legais e administrativas para assegurar a sua efetiva proteção nos planos preventivo e de sanação das moléstias que põem em risco não apenas a higidez individual mas a própria segurança da coletividade afetada [03].
1.3. A SAÚDE E O DIREITO NO BRASIL
1.3.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A crise do sistema de saúde no Brasil está presente no nosso dia a dia podendo ser constatada através de fatos amplamente conhecidos e divulgados pela mídia, tais como:
- filas frequentes de pacientes nos serviços de saúde;
- falta de leitos hospitalares para atender a demanda da população;
- escassez de recursos financeiros, materiais e humanos para manter os serviços de saúde operando com eficácia e eficiência;
- atraso no repasse dos pagamentos do Ministério da Saúde para os serviços conveniados;
- baixos valores pagos pelo SUS aos diversos procedimentos médicos-hospitalares;
- aumento de incidência e o ressurgimento de diversas doenças transmissíveis;
- denúncias de abusos cometidos pelos planos privados e pelos seguros de saúde .
Para que possamos analisar a realidade hoje existente é necessário conhecer os determinantes históricos envolvidos neste processo. Assim como nós somos frutos do nosso passado e da nossa história, o setor saúde também sofreu as influências de todo o contexto político-social pelo qual o Brasil passou ao longo do tempo.
A evolução histórica das políticas de saúde está relacionada diretamente a evolução político-social e econômica da sociedade brasileira, não sendo possível dissociá-los.
Certo é que a lógica do processo evolutivo sempre obedeceu à ótica do avanço do capitalismo na sociedade brasileira, sofrendo a forte determinação do capitalismo internacional. A saúde, assim, nunca ocupou lugar central dentro da política do estado brasileiro, sendo sempre deixada na periferia do sistema, como uma moldura de um quadro, tanto no que diz respeito à solução dos grandes problemas de saúde que afligem a população, quanto na destinação de recursos direcionados ao setor saúde.
Somente nos momentos em que determinadas endemias ou epidemias se apresentam como importantes em termos de repercussão econômica ou social dentro do modelo capitalista proposto é que passam a ser alvo de uma maior atenção por parte do governo, transformando-se pelo menos em discurso institucional, até serem novamente destinadas a um plano secundário, quando deixam de ter importância.
Podemos afirmar que, de um modo geral, os problemas de saúde tornam-se foco de atenção quando se apresentam como epidemias e deixam de ter importância quando os mesmos se transformam em endemias.
Vê-se, ainda, que as ações de saúde propostas pelo governo sempre procuram incorporar os problemas de saúde que atingem grupos sociais importantes de regiões socioeconômicas igualmente importantes dentro da estrutura social vigente e preferencialmente tem sido direcionadas para os grupos organizados e aglomerados urbanos em detrimento de grupos sociais dispersos e sem uma efetiva organização.
Desta forma a conquista dos direitos sociais (saúde e previdência) tem sido sempre uma resultante do poder de luta, de organização e de reivindicação dos trabalhadores brasileiros e nunca uma dádiva do estado, como alguns governos querem fazer parecer.
1.3.1.1. PERÍODO DE 1500 ATÉ PRIMEIRO REINADO
O Brasil foi um país colonizado basicamente por degredados e aventureiros, desde o descobrimento até a instalação do império, e não dispunha de nenhum modelo de atenção à saúde da população e não havia nem mesmo o interesse, por parte do governo colonizador (Portugal), em criá-lo.
Deste modo, a atenção à saúde limitava-se aos próprios recursos da terra (plantas, ervas) e àqueles que, por conhecimentos empíricos (curandeiros), desenvolviam as suas habilidades na arte de curar.
Somente com a vinda da família real ao Brasil criou a necessidade da organização de uma estrutura sanitária mínima, capaz de dar suporte ao poder que se instalava na cidade do Rio de Janeiro.
Até 1850 as atividades de saúde pública estavam limitadas à delegação das atribuições sanitárias as juntas municipais e ao controle de navios e saúde dos portos.
Verifica-se que o interesse primordial estava limitado ao estabelecimento de um controle sanitário mínimo da capital do império, tendência que se alongou por quase um século.
O tipo de organização política do império era de um regime de governo unitário e centralizador, que era incapaz de dar continuidade e eficiência na transmissão e execução a distância das determinações emanadas dos comandos centrais.
A carência de profissionais médicos no Brasil Colônia e no Brasil Império era enorme, (para se ter uma idéia, no Rio de Janeiro, em 1789, só existiam quatro médicos exercendo a profissão (SALLES, 1971). Em outros estados brasileiros eram mesmo inexistentes).
A inexistência de uma assistência médica estruturada, fez com que proliferassem pelo país os Boticários (farmacêuticos).
Aos boticários cabiam a manipulação das fórmulas prescritas pelos médicos, mas a verdade é que eles próprios tomavam a iniciativa de indicá-los, fato que ocorre até os dias de hoje.
Não dispondo de um aprendizado acadêmico, o processo de habilitação na função consistia tão somente em acompanhar um serviço de uma botica já estabelecida durante um certo período de tempo, ao fim do qual prestavam exame perante a fisicatura e, se aprovado, o candidato recebia a "carta de habilitação", e estava apto a instalar sua própria botica. (SALLES, 1971).
Em 1808 Dom João VI fundou na Bahia o Colégio Médico - Cirúrgico no Real Hospital Militar da Cidade de Salvador. No mês de novembro do mesmo ano foi criada a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, anexa ao real Hospital Militar.
1.3.1.2. INÍCIO DA REPÚBLICA 1889 ATÉ 1930
Com a Proclamação da República, estabeleceu-se uma forma de organização Jurídico-Política típica do estado capitalista. No entanto essa nova forma de organização do aparelho estatal assegurou apenas as condições formais da representação burguesa clássica, especialmente a adoção do voto direto pelo sufrágio universal.
A tradição de controle político pelos grandes proprietários (o coronelismo) impôs ainda normas de exercício do poder que representavam os interesses capitalistas dominantemente agrários. Apenas a eleição do Presidente da República pelo voto direto, de quatro em quatro ano, produziu lutas efetivas em que se condensavam os conflitos no interior do sistema.
Os programas partidários nunca chegaram a se configurar numa perspectiva de âmbito nacional. De fato, das dezenove organizações políticas que atuaram até o movimento de 1930, nenhuma excedeu a disciplina imposta pela defesa de interesses regionais, embora pudessem compor, eventualmente, alianças que dominaram as práticas políticas até aquela data.
Não havia neste tempo um modelo sanitário para o país.
Naturalmente, a falta deste modelo sanitário deixava as cidades brasileiras a mercê das epidemias.
No início do século XX a cidade do Rio de Janeiro apresentava um quadro sanitário caótico caracterizado pela presença de diversas doenças graves que acometiam à população, como a varíola, a malária, a febre amarela, e posteriormente a peste, o que acabou gerando sérias consequências tanto para saúde coletiva quanto para outros setores como o do comércio exterior, visto que os navios estrangeiros não mais queriam atracar no porto do Rio de Janeiro em função da situação sanitária existente na cidade.
Rodrigues Alves, então presidente do Brasil, nomeou Oswaldo Cruz, como Diretor do Departamento Federal de Saúde Pública, que se propôs a erradicar a epidemia de febre-amarela na cidade do Rio de Janeiro.
Foi criado um verdadeiro exército de 1.500 pessoas que passaram a exercer atividades de desinfecção no combate ao mosquito, vetor da febre-amarela. A falta de esclarecimentos e as arbitrariedades cometidas pelos "guardas-sanitários" causaram revolta na população.
Este modelo de intervenção ficou conhecido como campanhista, e foi concebido dentro de uma visão militar em que os fins justificam os meios, e no qual o uso da força e da autoridade eram considerados os instrumentos preferenciais de ação.
A população, com receio das medidas de desinfecção, trabalho realizado pelo serviço sanitário municipal, revolta-se tanto que, certa vez, o próprio presidente Rodrigues Alves chama Oswaldo Cruz ao Palácio do Catete, pedindo-lhe para, apesar de acreditar no acerto da estratégia do sanitarista, não continuar queimando os colchões e as roupas dos doentes.
A onda de insatisfação se agrava com outra medida de Oswaldo Cruz, a Lei Federal nº 1261, de 31 de outubro de 1904, que instituiu a vacinação anti-varíola obrigatória para todo o território nacional. Surge, então, um grande movimento popular de revolta que ficou conhecido na história como a revolta da vacina.
Apesar das arbitrariedades e dos abusos cometidos, o modelo campanhista obteve importantes vitórias no controle das doenças epidêmicas, conseguindo inclusive erradicar a febre amarela da cidade do Rio de Janeiro, o que fortaleceu o modelo proposto e o tornou hegemônico como proposta de intervenção na área da saúde coletiva saúde durante décadas.
Neste período Oswaldo Cruz procurou organizar a diretoria geral de saúde pública, criando uma seção demográfica, um laboratório bacteriológico, um serviço de engenharia sanitária e de profilaxia da febre-amarela, a inspetoria de isolamento e desinfecção, e oinstituto soroterápico federal, posteriormente transformado no Instituto Oswaldo Cruz.
Na reforma promovida por Oswaldo Cruz foram incorporados como elementos das ações de saúde:
- o registro demográfico, possibilitando conhecer a composição e os fatos vitais de importância da população;
- a introdução do laboratório como auxiliar do diagnóstico etiológico;
- a fabricação organizada de produtos profiláticos para uso em massa.
Em 1920, Carlos Chagas, sucessor de Oswaldo Cruz, reestruturou o Departamento Nacional de Saúde, então ligado ao Ministério da Justiça e introduziu a propaganda e a educação sanitária na técnica rotineira de ação, inovando o modelo companhista de Oswaldo Cruz que era puramente fiscal e policial.
Criaram-se órgãos especializados na luta contra a tuberculose, a lepra e as doenças venéreas. A assistência hospitalar, infantil e a higiene industrial se destacaram como problemas individualizados. Expandiram-se as atividades de saneamento para outros estados, além do Rio de Janeiro e criou-se a Escola de Enfermagem Anna Nery.
Enquanto a sociedade brasileira esteve dominada por uma economia agro-exportadora, assentada na monocultura cafeeira, o que se exigia do sistema de saúde era, sobretudo, uma política de saneamento destinado aos espaços de circulação das mercadorias exportáveis e a erradicação ou controle das doenças que poderiam prejudicar a exportação. Por esta razão, desde o final do século XIX até o início dos anos 60, predominou o modelo do sanitarismo campanhista (MENDES, 1992).
Gradativamente, com o controle das epidemias nas grandes cidades brasileiras o modelo campanhista deslocou a sua ação para o campo e para o combate das denominadas endemias rurais, dado ser a agricultura a atividade hegemônica da economia da época. Este modelo de atuação foi amplamente utilizado pela Sucamno combate a diversas endemias (Chagas, Esquistossomose, e outras), sendo esta posteriormente incorporada à Fundação Nacional de Saúde.
1.3.1.3. O NASCIMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
No início do século XX a economia brasileira era basicamente agroexportadora, assentada na monocultura do café.
A acumulação capitalista advinda do comércio exterior tornou possível o início do processo de industrialização no país, que se deu principalmente no eixo Rio-São Paulo.
Tal processo foi acompanhado de uma urbanização crescente, e da utilização de imigrantes, especialmente europeus (italianos, portugueses), como mão-de-obra nas indústrias, visto que os mesmos já possuíam grande experiência neste setor, que já era muito desenvolvido na Europa.
Os operários na época não tinham quaisquer garantias trabalhistas, tais como férias, jornada de trabalho definida, pensão ou aposentadoria.
Os imigrantes, especialmente os italianos (anarquistas), traziam consigo a história do movimento operário na Europa e dos direitos trabalhistas que já tinham sido conquistados pelos trabalhadores europeus e desta forma procuraram mobilizar e organizar a classe operária no Brasil na luta pela conquistas dos seus direitos.
Em função das péssimas condições de trabalho existentes e da falta de garantias de direitos trabalhistas, o movimento operário organizou e realizou duas greves gerais no país, uma em 1917 e outra em 1919.
Através destes movimentos os operários começaram a conquistar alguns direitos sociais.
Assim, em 24 de janeiro de 1923, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei Eloi Chaves, marco inicial da previdência social no Brasil. Através desta lei foram instituídas as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP’s).
A propósito desta lei devem ser feitas as seguintes considerações:
- a lei deveria ser aplicada somente ao operariado urbano. Para que fosse aprovado no Congresso Nacional, dominado na sua maioria pela oligarquia rural foi imposta a condição de que este benefício não seria estendido aos trabalhadores rurais. Fato que na história da previdência do Brasil perdurou até a década de 60, quando foi criado o FUNRURAL.
- Outra particularidade refere-se ao fato de que as caixas deveriam ser organizadas por empresas e não por categorias profissionais.
- A criação de uma CAP também não era automática, dependia do poder de mobilização e organização dos trabalhadores de determinada empresa para reivindicar a sua criação.
A primeira CAP criada foi a dos ferroviários, o que pode ser explicado pela importância que este setor desempenhava na economia do país naquela época e pela capacidade de mobilização que a categoria dos ferroviários possuía.
Segundo POSSAS (1981): "tratando-se de um sistema por empresa, restrito ao âmbito das grandes empresas privadas e públicas, as CAP's possuíam administração própria para os seus fundos, formada por um conselho composto de representantes dos empregados e empregadores."
A comissão que administrava a CAP era composta por três representantes da empresa, um dos quais assumindo a presidência da comissão, e de dois representantes dos empregados, eleitos diretamente a cada três anos.
O regime de representação direta das partes interessadas, com a participação de representantes de empregados e empregadores, permaneceu até a criação do INPS (1967), quando foram afastados do processo administrativo.(POSSAS, 1981)
O Estado não participava propriamente do custeio das Caixas, que de acordo com o determinado pelo artigo 3º da lei Eloy Chaves, eram mantidas por: empregados das empresas (3% dos respectivos vencimentos); empresas (1% da renda bruta); e consumidores dos serviços das mesmas. (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1989).
A esse respeito, dizem SILVA e MAHAR apud OLIVEIRA & TEIXEIRA (1989):
"A lei Eloy Chaves não previa o que se pode chamar, com propriedade contribuição da união. Havia, isto sim, uma participação no custeio, dos usuários das estradas de ferro, provenientes de um aumento das tarifas, decretado para cobrir as despesas das Caixas. A extensão progressiva desse sistema, abrangendo cada vez maior número de usuários de serviços, com a criação de novas Caixas e Institutos , veio afinal fazer o ônus recair sobre o público em geral e assim, a se constituir efetivamente em contribuição da União. O mecanismo de contribuição tríplice (em partes iguais) refere-se à contribuição pelos empregados, empregadores e União foi obrigatoriamente instituído pela Constituição Federal de 1934 (alínea h, § 1º , art. 21)."
No sistema das Caixas estabelecido pela lei Eloy Chaves, as próprias empresas deveriam recolher mensalmente o conjunto das contribuições das três fontes de receita, e depositar diretamente na conta bancária da sua CAP. (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1989).
Além das aposentadorias e pensões, os fundos proviam os serviços funerários e médicos, conforme explicitado no artigo 9º da Lei Eloy Chaves:
E ainda, no artigo 27, obrigava as CAPs a arcar com a assistência aos acidentados no trabalho.
A criação das CAP’s deve ser entendida, assim, no contexto das reivindicações operárias no início do século, como resposta do empresariado e do estado à crescente importância da questão social.
1.3.1.4. A CRISE DOS ANOS 30
A representatividade dos partidos obedecia a uma hierarquia coerente com o peso dos setores oligárquicos que os integravam.
A política dos governadores foi a forma para qual se reorganizou a divisão do poder entre os segmentos da classe dominante durante este período.
Entre 1922 a 1930, sucederam-se crises econômicas e políticas em que se conjugaram fatores de ordem interna e externa, e que tiveram como efeito a diminuição do poder das oligarquias agrárias. Em particular, atuaram no Brasil as crises internacionais de 1922 a 1929, tornando mais agudas as contradições e instalações contra a política dos governadores.
A crise de 1929 imobilizou temporariamente o setor agrário-exportador, redefinindo a organização do estado, que vai imprimir novos caminhos a vida nacional. Assim é que com a crise do café, a ação dos setores agrários e urbanos vão propor um novo padrão de uso do poder no Brasil.
Em 1930, comandada por Getúlio Vargas é instalada a revolução, que rompe com a política do café com leite, entre São Paulo e Minas Gerais, que sucessivamente elegiam o Presidente da República.
Vitorioso o movimento, foram efetuadas mudanças na estrutura do estado. Estas objetivavam promover a expansão do sistema econômico estabelecendo-se, paralelamente, uma nova legislação que ordenasse a efetivação dessas mudanças. Foram criados o "Ministério do Trabalho", o da "Indústria e Comércio", o "Ministério da Educação e Saúde" e juntas de arbitramento trabalhista.
Em 1934, com a nova constituição, o Estado e o Setor Industrial através daquele, instituiu uma política social de massas que na constituição se configura no capítulo sobre a ordem econômica e social.
A implantação do estado novo representava o acordo entre a grande propriedade agrária e a burguesia industrial historicamente frágil.
Coube ao Estado Novo acentuar e dirigir o processo de expansão do capitalismo no campo, de maneira a impedir que nele ocorressem alterações radicais na estrutura da grande propriedade agrária.
Em 1937 é promulgada nova constituição que reforça o centralismo e a autoridade presidencial (ditadura).
O trabalhismo oficial e as suas práticas foram reforçadas a partir de 1940 com a imposição de um sindicato único e pela exigência do pagamento de uma contribuição sindical.
Em 1939 regulamenta-se a justiça do trabalho e em 1943 é homologada a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
A maior parte das inversões no setor industrial foi feita na região centro-sul (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte) reforçando ainda mais a importância econômica e financeira desta área na dinâmica das transformações da infra-estrutura nacional, agravando desequilíbrios regionais, especialmente o caso do nordeste, com grandes êxodos rurais, e a proliferação das favelas nestes grandes centros.
A crescente massa assalariada urbana passa a se constituir no ponto de sustentação política do novo governo de Getúlio Vargas, através de um regime corporativista.
São promulgadas as leis trabalhistas, que procuram estabelecer um contrato capital-trabalho, garantindo direitos sociais ao trabalhador. Ao mesmo tempo, cria-se a estrutura sindical do estado. Estas ações transparecem como dádivas do governo e do Estado, e não como conquista dos trabalhadores. O fundamento dessas ações era manter o movimento trabalhista contido dentro das forças do estado.
1.3.1.5. A PREVIDÊNCIA SOCIAL NO ESTADO NOVO
No que tange a previdência social, a política do estado pretendeu estender a todas as categorias do operariado urbano organizado os benefícios da previdência.
Desta forma, as antigas CAP’s são substituídas pelos institutos de aposentadoria e pensões(IAP). Nestes institutos os trabalhadores eram organizados por categoria profissional (marítimos, comerciários, bancários) e não por empresa.
Em 1933, foi criado o primeiro Instituto de Aposentadoria e Pensões: o dos Marítimos (IAPM).
Os IAP’s foram criados de acordo com a capacidade de organização, mobilização e importância da categoria profissional em questão. Assim, em 1933 foi criado o primeiro instituto, o de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), em 1934 o dos Comerciários (IAPC) e dos Bancários (IAPB), em 1936 o dos Industriários (IAPI) e em 1938 o dos Estivadores e Transportadores de Cargas (IAPETEL).
Segundo NICZ, além de servir como importante mecanismo de controle social, os IAP’s tinham, até meados da década de 50, papel fundamental no desenvolvimento econômico deste período, como "instrumento de captação de poupança forçada", através de seu regime de capitalização.
Ainda, segundo NICZ, as seguidas crises financeiras dos IAP’s, e mesmo o surgimento de outros mecanismos captadores de investimentos (principalmente externos), fazem com que progressivamente a previdência social passe a ter importância muito maior como instrumento de ação político-eleitoreira nos governos populistas de 1950-64, especialmente pela sua vinculação clara ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e a fase áurea de "peleguismo sindical".
Até o final dos anos 50, a assistência médica previdenciária não era importante. Os técnicos do setor a consideram secundária no sistema previdenciário brasileiro, e os segurados não faziam dela parte importante de suas reivindicações
Em 1949 foi criado o Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU) mantido por todos os institutos e as caixas ainda remanescentes.
É a partir principalmente da segunda metade da década de 50, com o maior desenvolvimento industrial, com a conseqüente aceleração da urbanização, e o assalariamento de parcelas crescente da população, que ocorre maior pressão pela assistência médica via institutos, e viabiliza-se o crescimento de um complexo médico hospitalar para prestar atendimento aos previdenciários, em que se privilegiam abertamente a contratação de serviços de terceiros.
Em 1949 as despesas com assistência médica representaram apenas 7,3% do total geral das despesas da previdência social. Em 1960 já sobem para 19,3%, e em 1966 já atingem 24,7% do total geral das despesas, confirmando a importância crescente da assistência médica previdenciária.
1.3.1.6. SAÚDE PÚBLICA NO PERÍODO DE 30 A 60
Na era do estado novo poucas foram as investidas no setor da saúde pública, destacando-se:
- Em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública, com desintegração das atividades do Departamento Nacional de Saúde Pública (vinculado ao Ministério da Justiça), e a pulverização de ações de saúde a outros diversos setores como: fiscalização de produtos de origem animal que passa para o Ministério da Agricultura (1934); higiene e segurança do trabalho (1942) que vincula-se ao Ministério do Trabalho.
- Em 1941, instituiu-se a reforma Barros Barreto, em que se destacam as seguintes ações:
- instituição de órgãos normativos e supletivos destinados a orientar a assistência sanitária e hospitalar;
- criação de órgãos executivos de ação direta contra as endemias mais importantes (malária, febre amarela, peste);
- fortalecimento do Instituto Oswaldo Cruz, como referência nacional; descentralização das atividades normativas e executivas por 8 regiões sanitárias;
- destaque aos programas de abastecimento de água e construção de esgotos, no âmbito da saúde pública;
- atenção aos problemas das doenças degenerativas e mentais com a criação de serviços especializados de âmbito nacional (Instituto Nacional do Câncer).
A escassez de recursos financeiros associado a pulverização destes recursos e de pessoal entre diversos órgãos e setores, aos conflitos de jurisdição e gestão, e superposição de funções e atividades, fizeram com que a maioria das ações de saúde pública no estado novo se reduzissem a meros aspectos normativos, sem efetivação no campo prático de soluções para os grandes problemas sanitários existentes no país naquela época.
Em 1953 foi criado o Ministério da Saúde, o que na verdade limitou-se a um mero desmembramento do antigo Ministério da Saúde e Educação sem que isto significasse uma nova postura do governo e uma efetiva preocupação em atender aos importantes problemas de saúde pública de sua competência.
Em 1956, foi criado oDepartamento Nacional de Endemias Rurais (DNERU), incorporando os antigos serviços nacionais de febre amarela, malária, peste.
1.3.1.7. A LEI ORGÂNICA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL E O PROCESSO DE UNIFICAÇÃO DOS IAPS
O processo de unificação dos IAPs já vinha sendo gestado desde de 1941 e sofreu em todo este período grandes resistências, pelas radicais transformações que implicava.
Após longa tramitação, a Lei Orgânica de Previdência Social só foi finalmente sancionada em 1960, acompanhada de intenso debate político em que os representantes das classes trabalhadoras se recusavam à unificação, uma vez que isto representava o abandono de muitos direitos conquistados, além de se constituírem os IAPs naquela epóca em importantes feudos políticos e eleitorais. Finalmente em 1960 foi promulgada a Lei 3.807, denominada Lei Orgânica da Previdência Social, que veio estabelecer a unificação do regime geral da previdência social, destinado a abranger todos os trabalhadores sujeitos ao regime da CLT, excluídos os trabalhadores rurais, os empregados domésticos e naturalmente os servidores públicos e de autarquias e que tivessem regimes próprios de previdência.
Os trabalhadores rurais só viriam a ser incorporados ao sistema três anos mais tarde, quando foi promulgada a lei 4.214 de 2 de março de 1963 que instituiu o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL).
A lei previa uma contribuição tríplice com a participação do empregado, empregador e a União. O Governo Federal nunca cumpriu a sua parte, o que evidentemente comprometeu seriamente a estabilidade do sistema.
O processo de unificação só avança com movimento revolucionário de 1964, que neste mesmo ano promove uma intervenção generalizada em todos os IAPs, sendo os conselhos administrativos substituídos por juntas interventoras nomeadas pelo governo revolucionário. A unificação vai se consolidar em 1967.
1.3.1.8. O MOVIMENTO DE 64 E SUAS CONSEQUÊNCIAS
O movimento de 1964 contava com suportes políticos extremamente fortes. A maioria da burguesia defendia a internacionalização da economia e das finanças brasileiras, ampliando o processo que era ainda obstaculizado, segundo os capitalistas, pela proposta populista de fortalecimento das empresas estatais e de economia mista do governo João Goulart.
Havia ainda uma preocupação crescente em relação à proliferação do comunismo e do socialismo no mundo, especialmente na América Latina, e que punha em risco os interesses e a hegemonia do capitalismo, especialmente do americano, nesta região. Era o período da chamada guerra fria.
Diante destes fatos as forças armadas brasileiras articularam e executaram um golpe de estado em 31 de março de 1964, e instalaram um regime militar, com o aval dos Estados Unidos. Um processo que se repetiu na maioria dos países da América Latina, configurando um ciclo de ditaduras militares em toda a região.
Houve o fortalecimento do executivo e o esvaziamento do legislativo.
Criaram-se atos institucionais, principalmente o de nº 5 de 1968, que limitavam as liberdades individuais e constitucionais.
O êxito da atuação do executivo justificava-se na área econômica, com o chamado milagre brasileiro, movido a capital estrangeiro.
O longo programa ideológico do movimento foi acionado com a retirada dos estudantes, especialmente os de nível universitário, de qualquer autonomia representativa e mantendo-os afastados de uma participação ativa nas transformações políticas.
Posteriormente, o processo prosseguiria pelo afastamento de professores, a partir de 1969, pela repressão brutal as manifestações estudantis, articuladas ou não a organizações políticas clandestinas. O enquadramento ideológico completou-se pelo esvaziamento dos estudos sociais, negando-se reconhecimento a profissão de sociólogo e pela instauração de novas disciplinas como a Educação Moral e Cívica e OSPB, e, no âmbito superior, Estudo de Problemas Brasileiros, todas de filiação historicamente fascista missionária.
O regime militar que se instala a partir de 1964, de caráter ditatorial e repressivo, procura utilizar-se de forças policiais e do exército e dos atos de exceção para se impor.
1.3.1.8.1. AÇÕES DO REGIME MILITAR NA PREVIDÊNCIA SOCIAL
A repressão militar seria incapaz de sozinha justificar por um longo tempo um governo ditatorial.
Diante deste quadro, o regime instituído procura atuar através da formulação de algumas políticas sociais na busca de uma legitimação do governo perante a população.
Um outro aspecto importante do regime militar, diz respeito a utilização da tecnoburocracia. Em consequência da repressão e do desmantelamento de todas as organizações da população civil, não podendo contar com a voz e não querendo a participação organizada da sociedade civil, o regime militar ocupou-se de criar uma tecnocracia, constituída de profissionais civis retirados do seio da sociedade, e colocados sob a tutela do estado, para repensar sob os dogmas e postulados do novo regime militar, a nova estrutura e organização dos serviços do estado, os tecnoburocracistas. Pessoas que realmente acreditavam estar fazendo o melhor, repensando a sociedade brasileira de acordo com dados e pressupostos teóricos, colocando como exemplo abstrato a participação da sociedade. Assim, que dentro do objetivo de buscar apoio e sustentação social, o governo se utiliza do sistema previdenciário. Visto que os IAP’s eram limitados a determinadas categorias profissionais mais mobilizadas e organizadas política e economicamente, o governo militar procura garantir para todos os trabalhadores urbanos e os seus dependentes os benefícios da previdência social.
O processo de unificação previsto em 1960 se efetiva em 2 de janeiro de 1967, com a implantação do Instituto Nacional de Previdência social (INPS), reunindo os seis Institutos de Aposentadorias e Pensões, o Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de Urgência (SAMDU) e a Superintendência dos Serviços de Reabilitação da Previdência Social.
O Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), produto da fusão dos IAP’s, sofre a forte influência dos técnicos oriundos do maior deles, o IAPI. Estes técnicos, que passam a história conhecidos como "os cardeais do IAPI", de tendências absolutamente privatizantes criam as condições institucionais necessárias ao desenvolvimento do"complexo médico-industrial", característica marcante deste período.
A criação do INPS propiciou a unificação dos diferentes benefícios ao nível do IAP’s. Na medida em que todo o trabalhador urbano com carteira assinada era automaticamente contribuinte e beneficiário do novo sistema, foi grande o volume de recursos financeiros capitalizados. O fato do aumento da base de contribuição, aliado ao fato do crescimento econômico da década de 70 (o chamado milagre econômico), do pequeno percentual de aposentadorias e pensões em relação ao total de contribuintes, fez com que o sistema acumulasse um grande volume de recursos financeiros.
Ao unificar o sistema previdenciário, o governo militar se viu na obrigação de incorporar os benefícios já instituídos fora das aposentadorias e pensões. Um destes era a da assistência médica, que já era oferecido pelos vários IAPs , sendo que alguns destes já possuíam serviços e hospitais próprios.
No entanto, ao aumentar substancialmente o número de contribuintes e consequentemente de beneficiários, era impossível ao sistema médico previdenciário existente atender a toda essa população. Diante deste fato, o governo militar tinha que decidir onde alocar os recursos públicos para atender a necessidade de ampliação do sistema, tendo ao final optado por direcioná-los para a iniciativa privada, com o objetivo de coopitar o apoio de setores importantes e influentes dentro da sociedade e da economia.
Desta forma, foram estabelecidos convênios e contratos com a maioria dos médicos e hospitais existentes no país, pagando-se pelos serviços produzidos (pro-labore), o que propiciou a estes grupos se capitalizarem, provocando um efeito cascata com o aumento no consumo de medicamentos e de equipamentos médico-hospitalares, formando um complexo sistema médico-industrial.
Este sistema foi se tornando cada vez mais complexo tanto do ponto de vista administrativo quanto financeiro dentro da estrutura do INPS, que acabou levando a criação de uma estrutura própria administrativa, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) em 1978.
Em 1974 o sistema previdenciário saiu da área do Ministério do Trabalho, para se consolidar como um ministério próprio, o Ministério da Previdência e Assistência Social. Juntamente com este Ministério foi criado o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). A criação deste fundo proporcionou a remodelação e ampliação dos hospitais da rede privada, através de empréstimos com juros subsidiados.
A existência de recursos para investimento e a criação de um mercado cativo de atenção médica para os prestadores privados levou a um crescimento próximo de 500% no número de leitos hospitalares privados no período 69/84, de tal forma que subiram de 74.543 em 69 para 348.255 em 84.
Algumas categorias profissionais somente na década de 70 é que conseguiram se tronar beneficiários do sistema previdenciário, como os trabalhadores rurais com a criação do PRORURAL em 1971, financiado pelo FUNRURAL, e os empregados domésticos e os autônomos em 1972.
1.3.1.8.2. AÇÕES DE SAÚDE PÚBLICA NO REGIME MILITAR
No campo da organização da saúde pública no Brasil foram desenvolvidas as seguintes ações no período militar:
- Promulgação do Decreto Lei 200 (1967), estabelecendo as competências do Ministério da Saúde: formulação e coordenação da política nacional de saúde; responsabilidade pelas atividades médicas ambulatoriais e ações preventivas em geral; controle de drogas e medicamentos e alimentos; pesquisa médico-sanitário;
- Em 1970 criou-se a SUCAM (Superintendência de Campanhas da Saúde Pública)com a atribuição de executar as atividades de erradicação e controle de endemias, sucedendo o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERU) e a campanha de erradicação da malária.
- Em 1975 foi instituído no papel o Sistema Nacional de Saúde, que estabelecia de forma sistemática o campo de ação na área de saúde, dos setores públicos e privados, para o desenvolvimento das atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde.
O documento reconhece e oficializa a dicotomia da questão da saúde, afirmando que a medicina curativa seria de competência do Ministério da Previdência, e a medicina preventiva de responsabilidade do Ministério da Saúde.
No entanto, o Governo Federal destinou poucos recursos ao Ministério da Saúde, que dessa forma foi incapaz de desenvolver as ações de saúde pública propostas, o que significou na prática uma clara opção pela medicina curativa, que era mais cara e que no entanto, contava com recursos garantidos através da contribuição dos trabalhadores para o INPS.
Concluindo podemos afirmar que o Ministério da Saúde tornou-se muito mais um órgão burocrato-normativo do que um órgão executivo de política de saúde.
Tendo como referência as recomendações internacionais e a necessidade de expandir cobertura, em 1976 inicia-se o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS).
Concebido na secretaria de planejamento da presidência da república, o PIASS se configura como o primeiro programa de medicina simplificada do nível Federal e vai permitir a entrada de técnicos provenientes do "movimento sanitário" no interior do aparelho de estado. O programa é estendido a todo o território nacional, o que resultou numa grande expansão da rede ambulatorial pública.
1.3.1.8.3. 1975 - A CRISE
O modelo econômico implantado pela ditadura militar entra em crise. A uma porque o capitalismo internacional entra num período também de crise e, a duas, porque em função da diminuição do fluxo de capital estrangeiro para mover a economia nacional, o país diminuiu o ritmo de crescimento que em períodos áureos chegou a 10% do PIB, tornando o crescimento econômico não mais sustentável.
A idéia do que era preciso fazer crescer o bolo (a economia) para depois redistribuí-lo para a população não se confirma no plano social. Os pobres ficaram mais pobres e os ricos mais ricos, sendo o país um dos que apresentam um dos maiores índices de concentração de renda.
A população com baixos salários, contidos pela política econômica e pela repressão, passou a conviver com o desemprego e as suas graves consequências sociais, como aumento da marginalidade, das favelas, da mortalidade infantil .
O modelo de saúde previdenciário começa a mostrar as suas mazelas:
- Por ter priorizado a medicina curativa, o modelo proposto foi incapaz de solucionar os principais problemas de saúde coletiva, como as endemias, as epidemias, e os indicadores de saúde (mortalidade infantil, por exemplo);
-aumentos constantes dos custos da medicina curativa, centrada na atenção médica-hospitalar de complexidade crescente;
-diminuição do crescimento econômico com a respectiva repercussão na arrecadação do sistema previdenciário reduzindo as suas receitas;
- incapacidade do sistema em atender a uma população cada vez maior de marginalizados, que sem carteira assinada e contribuição previdenciária, se viam excluídos do sistema;
- desvios de verba do sistema previdenciário para cobrir despesas de outros setores e para realização de obras por parte do governo federal;
- o não repasse pela união de recursos do tesouro nacional para o sistema previdenciário, visto ser esse tripartide (empregador, empregado, e união).
Devido a escassez de recursos para a sua manutenção, ao aumento dos custos operacionais, e ao descrédito social em resolver a agenda da saúde, o modelo proposto entrou em crise.
Na tentativa de conter custos e combater fraudes o governo criou em 1981 o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP) ligado ao INAMPS.
O CONASP passa a absorver em postos de importância alguns técnicos ligados ao movimento sanitário, o que dá início a ruptura, por dentro, da dominância dos anéis burocráticos previdenciários.
O plano inicia-se pela fiscalização mais rigorosa da prestação de contas dos prestadores de serviços credenciados, combatendo-se as fraudes.
O plano propõe a reversão gradual do modelo médico-assistencial através do aumento da produtividade do sistema, da melhoria da qualidade da atenção, da equalização dos serviços prestados as populações urbanas e rurais, da eliminação da capacidade ociosa do setor público, da hierarquização, da criação do domicílio sanitário, da montagem de um sistema de auditoria médico-assistencial e da revisão dos mecanismos de financiamento do FAS.
O CONASP encontrou oposição da Federação Brasileira de Hospitais e de medicina de grupo, que viam nesta tentativa a perda da sua hegemonia dentro do sistema e a perda do seu status.
Para se mencionar a forma desses grupos atuarem, basta citar que eles opuseram e conseguiram derrotar dentro do governo com a ajuda de parlamentares um dos projetos mais interessantes de modelo sanitário, que foi o PREV-SAÚDE, que depois de seguidas distorções acabou por ser arquivado. No entanto, isto, não impediu que o CONASP implantasse e apoiasse projetos pilotos de novos modelos assistenciais, destacando o PIASS no nordeste.
Devido ao agravamento da crise financeira o sistema redescobre quinze anos depois a existência do setor público de saúde, e a necessidade de se investir nesse setor, que trabalhava com um custo menor e atendendo a uma grande parcela da população carente de assistência.
Em 1983 foi criado a AIS (Ações Integradas de Saúde), um projeto interministerial (Previdência-Saúde-Educação), visando um novo modelo assistencial que incorporava o setor público, procurando integrar ações curativas-preventivas e educativas ao mesmo tempo. Assim, a Previdência passa a comprar e pagar serviços prestados por estados, municípios, hospitais filantrópicos, públicos e universitários.
Este período coincidiu com o movimento de transição democrática, com eleição direta para governadores e vitória esmagadora de oposição em quase todos os estados nas primeiras eleições democráticas deste período (1982).
1.3.1.8.4. O FIM DO REGIME MILITAR
O movimento das DIRETAS JÁ (1985) e a eleição de Tancredo Neves marcaram o fim do regime militar, gerando diversos movimentos sociais inclusive na área de saúde, que culminaram com a criação das associações dos secretários de saúde estaduais (CONASS) ou municipais (CONASEMS), e com a grande mobilização nacional por ocasião da realização da VIII Conferência Nacional de Saúde (Congresso Nacional,1986), a qual lançou as bases da reforma sanitária e do SUDS (Sistema Único Descentralizado de Saúde).
Estes fatos ocorreram concomitantemente com a eleição da Assembléia Nacional Constituinte em 1986 e a promulgação da nova Constituição em 1988.
É preciso fazer um pequeno corte nesta seqüência para entender como o modelo médico neo-liberal procurou se articular neste momento da crise.
O setor médico privado que se beneficiou do modelo médico-privativista durante quinze anos a partir de 64, tendo recebido neste período vultuosos recursos do setor público e financiamentos subsidiados , cresceu, desenvolveu e "engordou".
A partir do momento em que o setor público entrou em crise, o setor liberal começou a perceber que não mais poderia se manter e se nutrir daquele e passou a formular novas alternativas para sua estruturação.
Direcionou o seu modelo de atenção médica para parcelas da população, classe média e categorias de assalariados, procurando através da poupança desses setores sociais organizar uma nova base estrutural.
Deste modo foi concebido um subsistema de atenção médico-supletiva composta de 5 modalidades assistenciais: medicina de grupo, cooperativas médicas, auto-gestão, seguro-saúde e plano de administração.
Com pequenas diferenças entre si, estas modalidades se baseiam em contribuições mensais dos beneficiários (poupança) em contrapartida pela prestação de determinados serviços. Estes serviços e benefícios eram pré-determinados, com prazos de carências, além de determinadas exclusões, por exemplo, a não cobertura do tratamento de doenças infecciosas.
O subsistema de atenção médica-supletiva cresce vertiginosamente na década de 80, de tal modo que no ano de 1989 chega a cobrir 31.140.000 brasileiros, correspondentes a 22% da população total, e apresentando um volume de faturamento de US$ 2.423.500.000,00.
Este sistema baseia-se num universalismo excludente, beneficiando e fornecendo atenção médica somente para aquela parcela da população que tem condições financeiras de arcar com o sistema, não beneficiando a população como um todo e sem a perocupação de investir em saúde preventiva e na mudança de indicadores de saúde.
Enquanto, isto, ao subsistema público compete atender a grande maioria da população em torno de 120.000.000 de brasileiros (1990), com os minguados recursos dos governos federal, estadual e municipal.
Em 1990 o Governo edita as Leis 8.080 e 8.142, conhecidas como Leis Orgânicas da Saúde, regulamentando o SUS, criado pela Constituição de 1988.
1.3.1.9. O NASCIMENTO DO SUS
A constituinte de 1988 no capítulo VIII da Ordem social e na secção II referente à Saúde define no artigo 196 que: "A saúde é direito de todos e dever do estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
O SUS é definido pelo artigo 198 do seguinte modo:
"As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I- Descentralização , com direção única em cada esfera de governo;
II- Atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III- Participação da comunidade
Parágrafo único - o sistema único de saúde será financiado , com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes".
O texto constitucional demonstra claramente que a concepção do SUS estava baseado na formulação de um modelo de saúde voltado para as necessidades da população, procurando resgatar o compromisso do estado para com o bem-estar social, especialmente no que refere a saúde coletiva, consolidando-o como um dos direitos da cidadania. Esta visão refletia o momento político porque passava a sociedade brasileira, recém saída de uma ditadura militar onde a cidadania nunca foi um princípio de governo. Embalada pelo movimento da "diretas já" , a sociedade procurava garantir na nova constituição os direitos e os valores da democracia e da cidadania.
Apesar do SUS ter sido definido pela Constituição de 1988, ele somente foi regulamentado em 19 de setembro de 1990 através da Lei 8.080. Esta lei define o modelo operacional do SUS, propondo a sua forma de organização e de funcionamento
Algumas destas concepções serão expostas a seguir.
Primeiramente a saúde passa a ser definida de um forma mais abrangente :
"A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais: os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país".
O SUS é concebido como o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. A iniciativa privada poderá participar do SUS em caráter complementar.
Foram definidos como princípios doutrinários do SUS:
- o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, renda, ocupação, ou outras características sociais ou pessoais;- UNIVERSALIDADE
- EQUIDADE - é um princípio de justiça social que garante a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie .A rede de serviços deve estar atenta às necessidades reais da população a ser atendida;
- INTEGRALIDADE - significa considerar a pessoa como um todo, devendo as ações de saúde procurar atender à todas as suas necessidades.
Destes derivaram alguns princípios organizativos:
- HIERARQUIZAÇÃO - Entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; referência e contra-refrência;
- PARTICIPAÇÃO POPULAR - ou seja a democratização dos processos decisórios consolidado na participação dos usuários dos serviços de saúde no chamados Conselhos Municipais de Saúde;
- DESENCENTRALIZAÇÃO POLÍTICA ADMINISTRATIVA
- consolidada com a municipalização das ações de saúde, tornando o município gestor administrativo e financeiro do SUS;
Os objetivos e as atribuições do SUS foram assim definidos:
- identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde;
- formular as políticas de saúde;
- fornecer assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas.
- executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica ;
- executar ações visando a saúde do trabalhador;
- participar na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico;
- participar da formulação da política de recursos humanos para a saúde;
- realizar atividades de vigilância nutricional e de orientação alimentar;
- participar das ações direcionadas ao meio ambiente;
- formular políticas referentes a medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção;
- controle e fiscalização de serviços , produtos e substâncias de interesse para a saúde;
- fiscalização e a inspeção de alimentos , água e bebidas para consumo humano;
- participação no controle e fiscalização de produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;
- incremento do desenvolvimento científico e tecnológico na área da saúde;
- formulação e execução da política de sangue e de seus derivados:
Pela abrangência dos objetivos propostos e pela existência de desequilíbrios socio-econômicos regioniais, a implantação do SUS não tem sido uniforme em todos os estados e municípios brasileiros, pois para que isto ocorra é necessário uma grande disponibilidade de recursos financeiros, de pessoal qualificado e de um efetiva política federal, estadual e municipal para viabilizar o sistema.
A Lei 8.080/90 estabeleceu que os recursos destinados ao SUS seriam provenientes doOrçamento da Seguridade Social.
A mesma lei em outro artigo estabelece a forma de repasse de recursos financeiros a serem transferidos para estados e municípios, e que deveriam ser baseados nos seguintes critérios: perfil demográfico; perfil epidemiológico; rede de serviços instalada; desempenho técnico; ressarcimento de serviços prestados. Este artigo foi substancialmente modificado com a edição das NOBs (Norma Operacional Básica) que regulamentaram a aplicação desta lei.
O SUS ao longo da sua existência sempre sofreu as consequências da instabilidade institucional e da desarticulação organizacional na arena decisória federal que aparecem para o senso comum como escassez de financiamento.
Independente da origem política e da respeitabilidade, os ministros da saúde foram transformados em reféns das indefinições e rupturas que sempre colocaram à deriva as instituições de saúde do Brasil.
Apesar das dificuldades enfrentadas pode-se afirmar que a atenção primária o SUS apresentou progressos significativos no setor público, mas enfrenta problemas graves com o setor privado, que detém a maioria dos serviços de complexidade e referência de nível secundário e terciário. Estes setores não se interessam em integrar o modelo atualmente vigente em virtude da baixa remuneração paga pelos procedimentos médicos executados, o que vem inviabilizando a proposta de hierarquização dos serviços.
1.3.1.10. OS GOVERNOS NEOLIBERAIS - A PARTIR DE 1992
A opção neoliberal, que se torna hegemônica no campo econômico, procura rever o papel do Estado e o seu peso na economia nacional, propondo a sua redução para o chamado estado mínimo, inclusive na área social, ampliando os espaços nos quais a regulação se fará pelo mercado capitalista.
A Constituição de 1988 procurou garantir a saúde como um direito de todos e um dever do estado.
No período de 1991 a 1994, com a eleição do Fernando Collor de Mello é implementada com toda a força uma política neoliberal-privatizante, com um discurso de reduzir o estado ao mínimo. Embora no discurso as limitações dos gastos públicos devessem ser efetivadas com a privatização de empresas estatais, na prática a redução de gastos atingiu a todos os setores do governo, inclusive o da saúde.
Neste período o governo começa a editar as chamadas Normas Operacionais Básicas (NOB), que são instrumentos normativos com o objetivo de regular a transferência de recursos financeiros da união para estados e municípios, o planejamento das ações de saúde, os mecanismos de controle social, dentre outros. A primeira NOB foi editada em 1991.
Em 1993, outra NOB buscava um caminho de transição entre o anacrônico sistema implantado pela NOB 01/91 e o que era preconizado na Constituição Federal e nas Leis que a regulamentaram o SUS. A NOB 01/93 criou critérios e categorias deferenciadas gestão para a habilitação dos municípios e, segundo o tipo de gestão implantado (incipiente, parcial, semi-plena), haveria critérios também diferenciados de formas de repasse dos recursos financeiros.
Em função da criação do SUS e do comando centralizado do sistema pertencer ao Ministério da Saúde, o INAMPS torna-se obsoleto e é extinto em 1993.
Também em 1993 em decorrência dos péssimos resultados da política econômica especialmente no combate do processo inflacionário, da falta de uma base de apoio parlamentar, e de uma série de escândalos de corrupção, o Presidente Fernando Collor de Mello sofreu um processo de Impeachment, envolvendo uma grande mobilização popular, especialmente estudantil, o que levou a perda do seu mandato presidencial, tendo assumido a presidência o então vice-presidente, Itamar Franco.
Em 1994, o então Ministro da Previdência Antônio Brito, em virtude do aumento concedido aos benefícios dos previdenciários do INSS, e alegando por esta razão não ter recursos suficientes para repassar para a área de saúde, determinou que à partir daquela data os recursos recolhidos da folha salarial dos empregados e empregadores seria destinado somente para custear a Previdência Social.
Apesar de estar descumprindo três leis federais que obrigavam a previdência a repassar os recursos financeiros para o Ministério da Saúde, o Ministério da Previdência a partir daquela data não mais transferiu recursos para a área da saúde, agravando a crise financeira do setor.
Em 1995 Fernando Henrique Cardoso assume o governo, mantendo e intensificando a implementação do modelo neoliberal, atrelado a ideologia da globalização e da redução o do "tamanho do estado".
A crise de financiamento do setor saúde se agrava, e o próprio ministro da Saúde (1996) reconhece a incapacidade do governo em remunerar adequadamente os prestadores de serviços médicos e de que a cobrança por fora é um fato.
Na busca de uma alternativa econômica como fonte de recurso exclusiva para financiar a saúde, o então Ministro da Saúde - Adib Jatene - propõe a criação da CPMF (contribuição provisória sobre movimentação financeira).
O ministro realizou um intenso lobby junto aos congressistas para a sua aprovação pelo congresso nacional, o que aconteceu em 1996, passando o imposto a vigorar à partir de 1997. É importante mencionar que o imposto teria uma duração definida de vigência que seria por um período de um ano, e que os recursos arrecadados somente poderiam ser aplicados na área de saúde.
No final de 1996, o ministro da saúde sentiu que os seus esforços para aumentar a captação de recursos para a saúde tinham sido em vão, pois o setor econômico do governo deduziu dos recursos do orçamento da união destinados para a saúde os valores previstos com a arrecadação da CPMF, e que acabou ocasionando o seu pedido de demissão do cargo neste mesmo ano.
Desde que começou a vigorar a CPMF foram frequentes as denúncias de desvios, por parte do governo, na utilização dos recursos arrecadados para cobrir outros déficits do tesouro.
Em 1997 o governo Fernando Henrique Cardoso intensificou as privatizações de empresas estatais e colocou na agenda do Congresso Nacional a reforma previdenciária, administrativa e tributária na busca do chamado "estado mínimo".
A crise de financiamento do SUS agrava a operacionalização do sistema, principalmente no que se refere ao atendimento hospitalar. A escassez de leitos nos grandes centros urbanos passa a ser uma constante.
Os hospitais filantrópicos, especialmente as Santas Casas de Misericórdia, de todo o país tomam a decisão de criar planos próprios de saúde, atuando no campo da medicina supletiva. A Santa Casa de Belo Horizonte faz o mesmo e lança o seu plano de saúde, o que implica numa diminuição de leitos disponíveis para o SUS.
Os Hospitais Universitários, último reduto da assistência médica hospitalar de excelência do SUS, também entram em crise.
Em 1997 os Hospitais Universitários do país "são forçados" a reduzir o número de atendimentos e induzidos pelo próprio governo à privatizaçãocomo solução para resolver a crise financeira do setor.
O motivo da crise foi o baixo valor pago pelos serviços prestados pelos hospitais conveniados ao SUS e a demora na liberação desses recursos.
As dívidas dos hospitais universitários ultrapassaram a quantia de 100 milhões de reais (Abril/1997). Muitos deles operavam com a metade do número de funcionários necessários ao seu funcionamento.
O HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA UFMG vivenciou toda esta crise, apresentando naquela época o seguinte quadro: débitos com os fornecedores R$ 9 milhões (maio/97); déficit de 487 funcionários; várias enfermarias foram fechadas, dos 432 leitos disponíveis somente 150 estavam sendo utilizados.
Em consequência desta crise, a Congregação da FACULDADE DE MEDICINA DA UFMG tomou uma decisão inédita, suspendendo a continuidade do curso médico em junho de 1997 em virtude da inviabilidade do processo de aprendizagem decorrente do não funcionamento do hospital-escola.
Toda esta crise obrigou à direção do Hospital a buscar novas fontes de arrecadação, principalmente através de convênios com planos privados de saúde e com a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
O governo edita a NOB-SUS 01/96, o que representa um avanço importante no modelo de gestão do SUS, principalmente no que se refere a consodolidação da Municipalização. Esta NOB revoga os modelos anteriores de gestão propostos nas NOB anteriores (gestão incipiente, parcial e semiplena), e propõe aos municípios se enquadrarem em dois novos modelos: Gestão Plena de Atenção Básica e Gestão Plena do Sistema Municipal. Estes modelos propõem a transferência para os municípios de determinadas responsabilidades de gestão, conforme pode ser visto no quadro abaixo.
GESTÃO PLENA DE ATENÇÃO BÁSICA |
GESTÃO PLENA DOS SISTEMA MUNICIPAL |
Elaboração de programação municipal dos serviços básicos, inclusive domiciliares e comunitários, e da proposta de referência ambulatorial e especializada e hospitalar. |
Elaboração de programação municipal dos serviços básicos, inclusive domiciliares e comunitários, e da proposta de referência ambulatorial e especializada e hospitalar. |
Gerência de unidades ambulatoriais próprias |
Gerência de unidades próprias, ambulatoriais e hospitalares, inclusive as de referência |
Gerência da unidades ambulatoriais do estado e/ou da União |
Gerência da unidades ambulatoriais e hospitalares do estado e/ou da União |
Introduzir a prática do cadastramento nacional dos usuários do SUS |
Introduzir a prática do cadastramento nacional dos usuários do SUS |
Prestação dos serviços relacionados aos procedimentos cobertos pelo PAB para todos os casos de referência interna ou externa ao município |
Prestação dos serviços ambulatoriais e hospitalares para todos os casos de referência interna ou externa ao município |
Normalização e operação de centrais de procedimentos ambulatoriais e hospitalares |
|
Contratação , controle, auditoria e pagamento aos prestadores dos serviços contidos no PAB |
Contratação, controle, auditoria e pagamento aos prestadores de serviços ambulatoriais e hospitalares |
Operação do SIA/SUS, conforme normas do MS, e alimentação, junto às SES, dos bancos de dados de interesse nacional |
Operação do SIH e do SIA/SUS, conforme normas do MS, e alimentação, junto às SES, dos bancos de dados de interesse nacional |
Autoriza AIH e Proced. Ambulatoriais Especializados |
Autoriza, fiscaliza e controla as AIH e Proced. Ambulatoriais Especializados e de alto custo |
Execução de ações de vigilância sanitária e de epidemiologia |
Execução de ações de vigilância sanitária e de epidemiologia |
FONTE : NOB/96
É possível constatar as diferenças existentes nos dois modelos de gestão, sendo a gestão plena do sistema municipal o de maior abrangência, transferindo um número maior de responsabilidades para os municípios, especialmente no que se refere gestão direta do sistema hospitalar, não incluído no modelo de gestão plena da atenção básica.
Esta NOB reformula e aperfeiçoa a gestão do SUS, na medida em que redefine:
- os papéis de cada esfera de governo e, em especial, no tocante à direção única;
- os instrumentos gerenciais para que municípios e estados superem o papel exclusivo de prestadores de serviços e assumam seus respectivos papéis de gestores do SUS;
- os mecanismos e fluxos de financiamento, reduzindo progressiva e continuamente a remuneração por produção de serviços e ampliando as transferências de caráter global, fundo a fundo, com base em programações ascendentes, pactuadas e integradas;
- a prática do acompanhamento, controle e avaliação no SUS, superando os mecanismos tradicionais, centrados no faturamento de serviços produzidos, e valorizando os resultados advindos de programações com critérios epidemiológicos e desempenho com qualidade;
- os vínculos dos serviços com os seus usuários, privilegiando os núcleos familiares e comunitários, criando, assim, condições para uma efetiva participação e controle social.
É fundamental destacar que uma das alterações mais importante introduzidas pela NOB 96 refere-se à forma de repasse dos recursos financeiros do governo federal para os municípios, que passa a ser feito com base num valor fixo per-capita (PAB) e não mais vinculado a produção de serviços, o que possibilita aos municípios desenvolverem novos modelos de atenção à saúde da população.
O PAB (Piso Assistencial Básico) consiste em um montante de recursos financeiros destinado ao custeio de procedimentos e ações de assistência básica, de responsabilidade tipicamente municipal. Esse Piso é definido pela multiplicação de um valor per capita nacional (atualmente) pela população de cada município (fornecida pelo IBGE) e transferido regular e automaticamente ao fundo de saúde ou conta especial dos municípios. Além disto, o município poderá receber incentivos para o desenvolvimento de determinadas ações de saúde agregando valor ao PAB.
As ações de saúde que fornecem incentivo são: Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS); Programa de Saúde da Família(PSF); Assistência Farmacêutica básica; Programa de combate as Carências Nutricionais; ações básicas de vigilância sanitária; ações básicas de vigilância epidemiológica e ambiental.
A intenção da NOB/96 é fortalecer a implantação do PSF e do PACS. Segundo o documento do próprio Ministério da Saúde intitulado Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial:
"...O PSF elege como ponto central o estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de co-responsabilidade entre os profissionais de saúde e a população.Sob essa ótica, a estratégia utilizada pelo PSF visa a reversão do modelo assistencial vigente, Por isso, sua compreensão só é possível através da mudança do objeto de atenção, forma de atuação e organização geral dos serviços, reorganizando a prática assistencial em novas bases e critérios.
Essa perspectiva faz com que a família passe a ser o objeto precípuo de atenção, entendida a partir do ambiente onde vive. Mais que uma delimitação geográfica, é nesse espaço que se constroem as relações intra e extrafamiliares e onde se desenvolve a luta pela melhoria das condições de vida – permitindo, ainda, uma compreensão ampliada do processo saúde/doença e, portanto, da necessidade de intervenções de maior impacto e significado social."
A NOB passa a vigorar efetivamente somente a partir de janeiro de 1998.
Em 1998 as privatizações alcançam o setor de energia elétrica e sistema de telecomunicações (Telebrás).
No congresso são aprovadas as reformas administrativa e da previdência.
Apesar de assumir todos os compromissos com a agenda econômica da globalização, o país sofre as consequências de ataques especulativos de investidores internacionais, que lucraram com as altas taxas de juros oferecidos pela política econômica do governo.
Em outubro de 1998, Fernando Henrique Cardoso é reeleito para mais 4 anos de governo.
Tendo em vista a crise econômica vivida pelo Brasil e outros países "emergentes" o governo FHC aumenta ainda mais os juros para beneficiar os especuladores internacionais e propõe para o povo um ajuste fiscal prevendo a diminuição de verbas para o orçamento de 1999, inclusive na área de saúde. O corte previsto nesta área foi de cerca de R$ 260.000.000,00 (duzentos e sessenta milhões de reais).
A propósito desta redução o Ministro da Saúde da época, José Serra, divulgou um comunicado com o seguinte teor: " entre 1994 e 1998 o gasto com saúde, em relação ao PIB, caiu 12,4%. O total das outras despesas, no entanto, subiu 22,6% . Em valores constantes, as despesas da saúde aumentaram 17,9% enquanto as outras despesas do orçamento, em seu conjunto, cresceram 56,2%".
A mesma nota do Ministério afirma sobre o CPMF que: "a arrecadação da CPMF cobrada a partir de 23 de janeiro de 1997 não beneficiou a Saúde. O que houve foi desvio de outras fontes, ou seja, a receita do CPMF foi destinada à saúde, mas foram diminuídas as destinações à saúde decorrentes de contribuições sobre os lucros e do COFINS". [04]
O governo FHC procura firmar um acordo com o FMI diante do agravamento da crise financeira, a qual se refletiu na diminuição da atividade produtiva do país e no número desempregados (7,4% segundo dados do IBGE 11/98).
Em novembro de 1998, o governo regulamentou a lei 9656/98 sobre os planos e seguros de saúde, que fora aprovada pelo congresso nacional em junho daquele ano. Se por um lado houve uma limitação nos abusos cometidos pelas empresas, por outro a regulamentação oficializa o universalismo excludente, na medida em que cria quatro modelos diferenciados de cobertura de serviços, a saber:
- Plano ambulatorial - compreende a cobertura de consultas em número ilimitado, exames complementares e outros procedimentos, em nível ambulatorial, incluindo atendimentos e procedimentos caracterizados como urgência e emergência até as primeiras 12 horas;
- Plano Hospitalar sem obstetrícia - compreende atendimento em unidade hospitalar com número ilimitado de diárias, inclusive UTI, transfusões, quimioterapia e radioterapia entre outros, necessários durante o período de internação. Inclui também os atendimentos caracterizados como de urgência e emergência que evoluírem para internação ou que sejam necessários à preservação da vida, orgãos ou funções;
- Plano Hospitalar com obstetrícia - acresce ao Plano Hospitalar sem obstetrícia, a cobertura de consultas, exames e procedimentos relativos ao pré-natal, à assistência ao parto e ao recém-nascido durante os primeiros 30 dias de vida ;
- Plano odontólogico - cobertura de procedimentos odontológicos realizados em consultórios;
- Plano referência - representa a somatória dos quatro tipos de plano anteriores;
Estes fatos demonstram claramente que o compromisso da Medicina Supletiva é primordialmente com o ganho financeiro e com o lucro do capital, e não com a saúde dos cidadãos. Prova maior disto é afirmação das seguradoras de que os planos deverão aumentar seus preços em até 20% para se adaptarem as novas regras.
No início de 1999, o país atravessa uma grave crise cambial provocada pelos efeitos da globalização e da política econômica do governo. Este procura responder mais uma vez com um novo acordo de empréstimo junto ao FMI, e no plano interno com uma nova política recessiva, ditada pelo FMI, o que gera uma diminuição do PIB e um aumento ainda maior do desemprego no país.
No bojo do pacote recessivo propõe e aprova no congresso em Março de 99 o aumento da CPMF de 0,20 para 0,38 % (aquele imposto criado para ser provisório e que deveria ser destinado unicamente para a saúde).
1.4. O DIREITO À SAÚDE E A CONSTITUIÇÃO DE 1988
A primeira constituição que reconheceu a saúde como um direito fundamental do indivíduo e de interesse da coletividade foi a Italiana (art. 32).
Posteriormente, surgiu a Portuguesa, que outorgou a este direito uma formulação universal mais precisa (art. 64). É interessante destacar que ambas relacionaram a saúde com a seguridade social.
No Brasil, grande avanço tiveram as normas constitucionais acerca da saúde. Em nosso direito constitucional anterior, a competência para legislar sobre a defesa e proteção da saúde era da União, entretanto, tal competência cingia-se a organização administrativa de combate às endemias e epidemias. Tais normas apareciam, outrossim, somente incidentalmente, ou seja, vinculada a outros direitos, como por exemplo, nas normas relativas ao trabalho.
Na realidade, havia a referência acerca do direito à higiene e segurança do trabalho e à assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva, entretanto, ainda se traduziam em garantias muito precárias e esparsas.
Com a promulgação de nossa atual Constituição Federal em cinco de outubro de 1988, pela primeira vez, a saúde foi tratada como direito fundamental do ser humano, estando ainda intimamente ligada com um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito, que é a dignidade da pessoa humana, esculpida no artigo art. 1.º, inciso III da mesma Carta Constitucional.
Outrossim, estreita relação gozam o direito à vida, previsto no artigo 5.º, caput, da CF/88, e o direito sanitário, inserido no artigo que trata acerca dos direitos sociais (art. 6.º), já que este constitui pressuposto do pleno exercício deste, e vice-versa.
Infere-se desta maneira que, como nunca antes, foi ofertado aos cidadãos o direito real e integral à garantia de sua saúde, de modo que esta passou a integrar os direitos públicos subjetivos, possuindo alto nível de exigibilidade.
Interessante transcrever as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, citados por José Afonso da Silva:
"o direito à saúde, como os demais direitos sociais, comportam duas vertentes: "uma de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha de qualquer acto que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas". [05]
O direito à saúde constitui, ainda, um direito positivo, "que exige prestações de Estado e que se impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas [...], de cujo cumprimento depende a própria realização do direito" e da qual decorre um especial direito subjetivo de conteúdo duplo: por um lado, pelo não cumprimento das tarefas estatais para a sua satisfação, dá cabimento à ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 102, I, "a" e 103, § 2.º) e, por outro lado, o seu não atendimento, "in concreto", por falta de regulamentação, pode abrir pressupostos para a impetração do mandado de injunção (art. 5.º, LXXI)." [06]
Convém relacionar, outrossim os dispositivos relativos à saúde com a classificação estabelecida por José Afonso da Silva acerca das normas constitucionais. Foram estabelecidas três distinções: as normas de eficácia limitada, ou seja, que necessitam de normas infraconstitucionais para a sua regulamentação e efetivação; as normas de eficácia contida que desde já estão aptas a produzirem efeitos podendo, entretanto, sofrer restrições por parte do legislador ordinário; e as normas de eficácia plena ou ilimitada, as quais possuem aplicabilidade direta, imediata e integral.
Estabelecida a distinção acerca da classificação das normas constitucionais, faz-se necessário afirmar que, a partir de 1988, os dispositivos acerca do direito à saúde passaram a ter eficácia plena ou ilimitada.
A importância de tal classificação dá-se na medida em que, como regra geral, não mais se concebe a imposição de limites ao exercício pleno dos direitos e garantias fundamentais humanas. Não mais se coaduna com nossos ideários máximos de Estado Democrático de Direito e de Justiça Social a restrição de direitos tão inerentes à existência humana digna, quanto os relativos à saúde e, conseqüentemente, aos pacientes.
Cabe explicitar ainda que tal interpretação se dá no sentido de que o particular, vendo-se em uma situação de desatendimento de seus direitos relativos à saúde, poderá interpelar o Estado, através das vias judiciais, de modo a obrigá-lo a tomar medidas no sentido de resguardar seus direitos e garantias constitucionais.
Percebemos, assim, que o julgador procedeu a outra classificação no que tange aos dispositivos que tratam do direito à saúde. As normas programáticas são aquelas as quais o legislador as preestabelece a si mesmo como um programa de ação, de modo a respeitar o próprio objeto protegido pela norma, e obrigando-se a dele não se afastar sem um motivo justificado.
Dessa maneira, podemos concluir que os preceitos constitucionais acerca dos direitos fundamentais e, em especial, o da saúde, correspondem a normas mediante as quais um programa de ação é adotado pelo Estado e confiado aos seus órgãos legislativos, de direção política e administrativa, exatamente como programa que lhes obriga e vincula a atuar nos modos e formas da respectiva atividade, neste caso, a promoção, proteção, prevenção e recuperação da saúde.
Tal norma programática encontra-se visivelmente presente no artigo 196 da CF/88.