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Hermenêutica civil-constitucional dos juros bancários

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Agenda 23/11/2010 às 09:14

4.O CONTRATO BANCÁRIO DE FORNECIMENTO DE CRÉDITO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS

Depois de analisadas as circunstâncias constitucionais e legais que orbitam em torno do lucro, do crédito e do contrato, passa-se a percorrer o estudo das cláusulas abusivas presentes nos contratos de crédito bancário.

4.1. Contrato de Crédito Bancário: Conceito, Natureza Jurídica e Objeto

O crédito para o consumo é ofertado por todos os bancos comerciais. Pode assumir várias formas, a exemplo da abertura de crédito, do cheque especial, do crédito pessoal, das diversas formas de financiamento, enfim, existe um amplo leque de opções para os tomadores do crédito terem acesso a essa mercadoria que é também uma das âncoras do sistema bancário quando se trata de auferir lucro.

A forma tradicionalmente utilizada para formalizar a disponibilização do crédito é o contrato.

O contrato bancário de fornecimento de crédito é, portanto, um instrumento formal onde estão previstas as disposições acerca do negócio jurídico em que a instituição financeira credora disponibiliza um valor (o crédito), mediante condições para pagamento parcelado ou rotativo, com acréscimos de juros pela utilização do capital, tarifas pela prestação do serviço, além da previsão de encargos por força da mora. São previstas também as obrigações da parte tomadora (o consumidor), dispondo sobre a data para o pagamento das parcelas, inadimplemento e o foro para a discussão de possíveis pelejas jurídicas em torno do contrato.

O tipo de crédito objeto deste estudo é o que se conhece como mútuo feneratício e vem previsto na redação do artigo 591 do Código Civil de 2002 [25]. A destinação econômica é fundamental para delinear essa figura monetária, uma vez que, o valor contratado é crédito, ou seja, quantia disponibilizada sob a forma de uma obrigação jurídica de dar, assumida pela instituição financeira e uma obrigação futura de restituir, a cargo do consumidor tomador. Economicamente, o crédito é

toda operação monetária pela qual se realiza uma prestação presente contra a promessa de uma prestação futura. Marca o crédito, por conseguinte, a existência de um intervalo de tempo entre uma prestação e uma contraprestação correspondente (RIZZARDO, 1997, p.162).

Portanto, o contrato que formaliza a concessão do crédito é bilateral, oneroso, podendo ser comutativo, caso as prestações sejam pré-fixadas, de trato sucessivo e, por sua natureza jurídica, é contrato de adesão. Há, ainda, quem entenda o contrato de crédito bancário como contrato cativo de longa duração, pois envolve serviços cuja finalidade é preservar o status do consumidor e de sua família, bem como os atributos da segurança, concessão de crédito, moradia, saúde e educação qualificada. Cláudia Lima Marques (1999, p.68), ensina

(...) a catividade há de ser entendida no contexto do mundo atual, de indução ao consumo de bens materiais e imateriais, de publicidade massiva e métodos agressivos de marketing, de graves e renomados riscos na vida em sociedade, e de grande insegurança quanto ao futuro.

Na verdade, o contrato bancário de fornecimento de crédito é espécie do gênero contrato de adesão. Acontece que a massificação das relações bancárias de venda de crédito exige uma forma hábil e rápida que padronize o instrumento negocial para garantir o máximo de agilidade na hora de comercializá-lo.

A contratação de crédito bancário voltado para o consumo é, atualmente, feita por via do contrato de adesão. E essa é uma circunstância fundamental para o entendimento da ocorrência de abusividades inseridas nesses contratos, principalmente, em relação à taxa de juros.

4.2. Contratos Bancários e Cláusulas Abusivas

Como dito, o contrato de crédito bancário assume a forma do contrato de adesão. E essa é a principal premissa que passa a fundamentar a construção teórica que, a partir de agora, será feita acerca das abusividades presentes em tais contratos.

O contrato de adesão é tratado normativamente tanto pelo Código Civil (arts. 423 e 424), quanto pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 54). A lei civil traça regras atinentes à interpretação do contrato de adesão sinalizando que, havendo cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente e considera nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.

Já a lei consumerista determina não apenas o modo de exercer a exegese das disposições contratuais, como também, define o que é este tipo de contrato. Assim,

Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo [26]

O que se extrai do espírito de ambas as leis ao se reportar à intenção de proteger o consumidor que adere a essa forma de contratação é a admissão de que existe um contrato pré-formulado, contendo a vontade de uma empresa ocupante de uma posição econômica, jurídica e tecnicamente mais forte, que se utiliza da permissão legal que dá existência a esse tipo de contrato para alcançar uma grande quantidade de consumidores de seus produtos e serviços.

Custódio da Piedade Ubaldino Miranda (2002, p.95), reconhecendo a prática tendenciosa caracterizadora da contratação via adesão, esclarece os dados que a compõem:

A pré-formulação de cláusulas que caracterizam certo tipo contratual e disciplinam de modo uniforme e de forma mais ou menos exaustiva a relação jurídica que, com base nesse tipo, irá estabelecer-se entre os contratantes. Um deles, o formulador do contrato, é, em regra, uma empresa ou um grupo de empresas de porte, assessorado por um corpo de profissionais de alta competência, que têm a responsabilidade de forjar o conteúdo contratual; uma vez fixado esse conteúdo, o instrumento contratual fica a disposição de quem quer que deseje contratar.

A prática bancária contempla uma cotidiana contratação por via deste tipo contratual e enseja lesões aos consumidores do crédito, pois, a principal característica comum à contratação adesiva é a impossibilidade de o consumidor não discutir as cláusulas do pacto a que está aderindo.

Nesse cotejo, é fácil incluir e manter no bojo dos contratos de adesão cláusulas que contemplam disposições abusivas e, portanto, ilegais, uma vez que, as empresas financeiras são cientes de que não há, no momento da contratação, outro ato de disposição por parte do consumidor que não seja aderir ou não; ou seja, a vontade contratual da parte hipossuficiente resta tolhida.

Importante, e por isso transcrito literalmente, o ensinamento de Wladimir Alcibíades Cunha (2007, p.127):

Com efeito, estando de posse do poder contratual, as empresas utilizam-se dos contratos de adesão para diminuir seus riscos, aumentar seus lucros, aumentando ainda mais a sua força econômica em comparação com a dos contratantes, o que fazem por meio da mais variada sorte de expedientes, formais e materiais.

Em termos formais, os contratantes fortes desequilibram o contrato por intermédio de termos contratuais imprecisos ou ambíguos, termos contratuais intencionalmente técnicos, letras diminutas, ausência de destaque dos ônus dos contratantes etc.

Mas o principal está em termos materiais: aqui os contratantes fortes agem por meio de estipulação de cláusulas contratuais que, elevando a sua posição e agravando a situação do contratante mais fraco, rompem o equilíbrio contratual, o que se coloca em frontal confronto aos princípios da boa-fé objetiva e da equivalência material das prestações contratuais. Em outras palavras, estipulam cláusulas contratuais que oneram excessivamente as prestações devidas pelos aderentes ou estipulantes; estipulam, enfim, cláusulas abusivas.

A título de ilustração acerca da proteção da parte vulnerável da relação de consumo do crédito, pode-se citar a recente promulgação da Lei 11.785/2008 que alterou o Código de Defesa do Consumidor, na seção que trata do contrato de adesão, para que sejam utilizadas na confecção do contrato caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não seja inferior ao corpo doze.

As cláusulas abusivas são um fenômeno que encontra no contrato de adesão um solo fértil para que floresçam. No caso específico dos contratos de crédito bancário, a análise que segue recairá sobre a abusividade no tocante aos juros praticados na relação de fornecimento de crédito.

4.3. Juros Bancários: Possibilidade Jurídica e Abusividade

Questionar as taxas de juros praticadas pelas instituições financeiras na concessão de crédito, tendo como pano de fundo as possibilidades jurídicas previstas em diversos diplomas legais que atuam como limites aos valores atualmente praticados, bem como, apontar as abusividades presentes em tais taxas é uma tarefa paradoxal, porque, em que pese a flagrante existência de taxas abusivas e de diversas regras legais proibindo tal abuso, o Supremo Tribunal Federal [27] e o Superior Tribunal de Justiça [28]admitem entendimentos que vão de encontro ao sistema de proteção ao consumidor. É o que se pretende demonstrar adiante.

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Primeiramente, é necessário classificar teoricamente as categorias de juros legalmente previstas. Os juros bancários podem ser remuneratórios ou compensatórios, ou moratórios.

Os juros remuneratórios são aqueles destinados a remunerar o capital empregado numa operação financeira de crédito. São os frutos do capital.

Juros moratórios são os empregados nos casos de inadimplemento, ou seja, no caso de atraso no pagamento de uma prestação.

Há ainda os juros legais, que são fixados e exigidos por lei.

Por fim, devem-se citar também os juros convencionais que são fixados pela vontade das partes num contrato.

Os juros remuneratórios são os que vão remunerar o capital empregado pelo banco. Esse tipo de juros tem limitação vinculada às disposições do Decreto nº 22.626/1933, que se encontra em vigor, conhecido como "Lei da Usura", ainda constituindo a principal norma relacionada à imposição de limites para taxas de juros. Assim, já no seu artigo 1º o decreto afirma: "É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal".

Mais recentemente, o Código Civil também trouxe disposição acerca da possibilidade jurídica para fixação de juros. Tal regra se encontra no já citado art. 591: "Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual". Como se percebe, o artigo faz referência ao mandamento contido no art. 406, verbis:

Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

Essa ligação entre os dois dispositivos enseja a interpretação sistemática para que se conclua sobre a correta aplicação das restrições legais aos juros remuneratórios, uma vez que, o art. 406 trata dos juros moratórios.

Preliminarmente, cumpre discorrer sobre o entendimento do conceito de "taxa legal", pois, é a partir da verificação da taxa legal que se terá um parâmetro comparativo que servirá para apontar a abusividade dos juros bancários praticados.

Doutrina e jurisprudência atuais se dividem sobre qual a taxa legal a que se refere o artigo. Para alguns, trata-se da taxa SELIC [29], valendo deixar consignado o entendimento de Mario Luiz Delgado (2003, apud FIUZA, 2003, p. 363), para quem seria mais coerente "a aplicação da taxa SELIC até mesmo para que se atenda à intenção do legislador no sentido de reduzir o inadimplemento contratual, penalizando com mais rigor o devedor moroso". A esse entendimento também se filia Arnoldo Wald.

Para outros, a exemplo de Flavio Tartuce (2007, p.379), a taxa legal é aquela prevista para o pagamento do crédito tributário e está determinada no parágrafo 1º do artigo 161 do Código Tributário Nacional [30]. Desse modo, a taxa legal não poderá ser superior a 1% (um por cento) ao mês, ou 12% (doze por cento) ao ano.

Este último posicionamento é que está em coadunância com os princípios e regras inerentes aos limites e possibilidades impostos à fixação das taxas de juros.

Assim sendo, os juros remuneratórios possuem como limite o "dobro da taxa legal", conforme previsto no Decreto 22.626/1933, assumindo, portanto, o teto de 2% (dois por cento) ao mês, ou, 24% (vinte e quatro por cento ao ano).

No tocante aos juros moratórios, a clara disposição do art. 406 do Código Civil já confere imediata inteligência da norma no sentido de adotar a taxa de 1% (um por cento) ao mês. Solidificando tal entendimento, foi prolatado o Enunciado nº 20, na I Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, cujo teor merece inteira transcrição:

A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, §1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% (um por cento) ao mês. A utilização da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque o seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, §3º da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a 12% (doze por cento) ao ano.

Como esclarece Flavio Tartuce, este Enunciado vem sendo utilizado em diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça [31]:

Recurso Especial – Taxa Selic – Ilegalidade – Juros de mora de 1% ao mês, contados a partir do trânsito em julgado - Determinando a lei, sem mais esta ou aquela, a aplicação da Taxa SELIC em tributos, sem precisa determinação de sua exteriorização quântica, escusado obtemperar que mortalmente feridos se quedam os princípios tributários da legalidade, da anterioridade e da segurança jurídica. Fixada a Taxa SELIC por ato unilateral da Administração, além desses princípios, fica também vergastado o princípio da indelegabilidade de competência tributária. Se todo tributo deve ser definido por lei, não há esquecer que sua quantificação monetária ou a mera readaptação de seu valor, bem como os juros, devem ser, também, previstos por lei. ‘A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a 12% (doze por cento) ao ano’ (Enunciado 20, aprovado na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal).

Recurso especial. Fazenda nacional. Empréstimo compulsório sobre Aquisição de combustíveis. Repetição de indébito. Taxa selic.

Ilegalidade. Substituição pelos juros de mora de 1% ao mês a partir Do trânsito em julgado.

Determinando a lei, sem mais esta ou aquela, a aplicação da Taxa SELIC em tributos, sem precisa determinação de sua exteriorização quântica, escusado obtemperar que mortalmente feridos de frente se quedam os princípios tributários da legalidade, da anterioridade e da segurança jurídica.Fixada a Taxa SELIC por ato unilateral da Administração, além desses princípios, fica também vergastado o princípio da indelegabilidade de competência tributária.

"A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a 12% (doze por cento) ao ano"

(Enunciado 20, aprovado na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal)

Afastada a aplicação da Taxa SELIC, deve incidir, em substituição, a correção monetária pelos coeficientes oficiais, pois esta representa apenas a atualização do valor real do débito, corroído pela inflação.

Não obstante o entendimento deste subscritor no sentido de que devam incidir os juros de mora a partir dos recolhimentos indevidos, in casu, manifestou-se expressamente o Tribunal de origem pela sua aplicação apenas a partir do trânsito em julgado. Na ausência de recurso da contribuinte, então, este deverá ser o dies a quo para sua incidência. [32].

Tributário. Recurso especial. Alínea "c". Contribuição Previdenciária. Compensação. Lançamento por homologação. Taxa selic. Ilegalidade. Juros de mora 1% ao mês a partir de janeiro de 1996. Divergência jurisprudencial conhecida.

Determinando a lei, sem mais esta ou aquela, a aplicação da Taxa SELIC em tributos, sem precisa determinação de sua exteriorização quântica, escusado obtemperar que mortalmente feridos se quedam os princípios tributários da legalidade, da anterioridade e da segurança jurídica. Fixada a Taxa SELIC por ato unilateral da Administração, além desses princípios, fica também vergastado o princípio da indelegabilidade de competência tributária. Se todo tributo deve ser definido por lei, não há esquecer que sua quantificação monetária ou a mera readaptação de seu valor, bem como os juros, devem ser, também, previstos por lei.

"A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a 12% (doze por cento) ao ano".

(Enunciado 20, aprovado na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal) [33].

Inobstante o entendimento acima firmado, a matéria ainda é controversa. E, mesmo no Superior Tribunal de Justiça, o tratamento jurídico que vem sendo dado por esta corte aos juros bancários pode ser tido como um leniente permissivo para prática abusiva relacionada à fixação de juros que vão de encontro aos paradigmas legais até aqui elencados.

É que, desde 12.03.2003, no julgamento do Recurso Especial 407.097/RS, a Segunda Seção daquela corte entendeu cabível a aplicabilidade da cláusula contratual que previa juros remuneratórios de 10,90% ao mês,

ou seja, a cobrança de juros de acordo com os índices fixados pelos agentes financeiros, sem qualquer limite, senão a taxa média de mercado, não permitindo a revisão do contrato pelo Estado-juiz, salvo quando o consumidor comprovar que o banco está cobrando juros abusivos em comparação com os juros cobrados de outro consumidor [34].

Este entendimento – a média de mercado como parâmetro – tem sido mantido pelo STJ desde então, e vem provocando críticas por parte da doutrina, relacionadas ao privilégio dado aos bancos para que sejam fixadas taxas de juros em desconformidade com o escopo normativo das leis que se aplicam à matéria. De fato, deixar ao livre alvedrio dos bancos a fixação dos juros é dar carta branca para uma abusividade injustificável, visto o poder econômico já exercido pelas instituições financeiras ao se utilizar do contrato de adesão para firmar a sua vontade no ato de fornecer crédito. E mais: a defesa do consumidor resta prejudicada, posto que, há direta agressão ao princípio da boa-fé, já que, não é idôneo, nem mesmo leal, a fixação de altas taxas de juros estabelecendo uma média de mercado, conseqüentemente, também elevada. Fere o princípio da função social dos contratos por auferir ao contrato de crédito bancário uma posição de instrumento que veicula injustiças ao consumidor, que arcará com prestações elevadas em retribuição ao dinheiro que tomou emprestado; e, por fim, transgride o princípio da equivalência material das prestações contratuais, pois, designa contraprestações díspares, de um lado, acarretando uma obrigação por demais onerosa ao consumidor, de outro, ao banco é dado fixar livremente o valor dos juros.

Outro aspecto que também atua contrariamente ao interesse do consumidor é a necessidade deste ter de demonstrar a abusividade dos juros praticados em comparação a outros contratos símiles. Explique-se: o consumidor que se sentir prejudicado pela elevada taxa de juros deverá, para que sua revisional seja aceita, juntar aos autos outro contrato, de mesma natureza, onde demonstre que foi fixada taxa de juros menor do que a que está sendo questionada. Isso desconfigura o instituto de inversão do ônus da prova, previsto no Código de Defesa do Consumidor [35]. Ora, transferir para o consumidor o ônus de levar ao conhecimento do Tribunal um contrato de terceiro é exigir esforço além da sua atuação processual, posto que, é mais fácil para o banco juntar aos autos um contrato similar que pode ser facilmente encontrado em grande quantidade nos seus arquivos.

A inversão do ônus probatório, nesses casos, facilita a defesa do consumidor. E, a contrario sensu, a manutenção do corrente entendimento resulta em prejuízo processual que dificilmente será superado pela parte hipossuficiente.

Cite-se, inclusive, a disposição do Código Consumerista acerca da inversão do ônus da prova, classificando-a como nula quando resulte em prejuízo para o consumidor [36].

O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, já possuiu em seu corpo de ministros, aqueles que entendem de modo diverso, salientando a posição privilegiada das instituições financeiras. Para ilustrar, segue voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior, no julgamento do Recurso Especial 466.979/RS:

O entendimento que hoje predomina na Segunda Seção é francamente favorável à cobrança dos juros de acordo com os índices fixados pelos bancos, sem outro limite senão a taxa média de mercado e sem possibilidade de sua revisão pelo juiz, salvo quando o mutuário comprovar que o banco está cobrando dele mais do que cobra de outro, em situação similar. Como dificilmente ocorrerá tal hipótese (e, caso ocorra, implique em indevida transferência ao mutuário da carga da prova do abuso, a ser feita possivelmente em pericia de difícil e onerosa realização), o resultado prático daquele julgamento é a liberação dos juros, sejam remuneratórios, sejam moratórios, sem nenhum controle efetivo. Controle administrativo não existe, pois não se reconhece limite imposto pela autoridade administrativa, e o controle judicial fica agora condicionado a uma prova irrealizável, ou de difícil realização [37].

Ao manter tal posicionamento, ou seja, deixar a cargo dos bancos a fixação das taxas de juros, pela adoção da média de mercado, o STJ torna vazias as disposições do Decreto 22.626/1933, do Código Civil, e da Lei 1.521/1951, uma vez que, todas fazem referência à necessária vinculação dos juros aos limites estabelecidos pela taxa legal do art. 161, §1º do Código Tributário Nacional.

O Supremo Tribunal Federal também mantém entendimento sobre a fixação das taxas de juros contrário à linha da defesa do consumidor. É o que se conclui pela análise da Súmula 596:

As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional.

A história das constituições brasileiras mostra que havia uma tradição no pensamento jurídico quanto ao tratamento dado aos juros. O país sempre se preocupou com a prática abusiva dos bancos e com a forma usurária de se capitalizar os juros. A edição do decreto supra mencionado se deu na era do governo Vargas e, posteriormente, a própria Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 previa no parágrafo único do artigo 117: "É proibida a usura, que será punida na forma da lei" [38]. As Constituições de 1937 [39] e de 1946 [40] mantiveram a repressão à usura. Inclusive, foi no âmbito da ordem constitucional de 1946 que fora editada a lei 1.521/1951, conhecida como "Lei da Economia Popular", que, dentre outras disposições, prevê como crime contra a economia popular cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro, superiores à taxa permitida por lei [41]. Saliente-se que as disposições desta lei referentes aos limites à taxa de juros, bem como, à tipificação criminosa das condutas ali previstas encontram-se em pleno vigor.

Entretanto, sob a égide do regime militar, foram outorgadas a Constituição Federal de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 e ambas trataram de extirpar da ordem constitucional a repressão à prática abusiva de juros.

Por fim, em 15.12.1976, o Supremo Tribunal Federal, ignorando a cultura anti-usura dominante no ordenamento jurídico pátrio, sedimentou o entendimento na Súmula 596.

De pronto, há de se destacar a defasagem do entendimento da Corte Maior e a necessidade de revisão da referida Súmula.

Para ilustrar o presente argumento, cite-se o magistério de Flavio Tartuce (2007, p.380):

Assim, não há dúvidas, o posicionamento constante da Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal deve ser revisto, inclusive pelo teor do recente julgamento desse Tribunal quanto à aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos bancos.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2004, p.323) também se posicionam a respeito da revisão da Súmula:

Falar sobre a aplicação de juros na atividade bancária é adentrar em um terreno explosivo. De fato, fizemos questão de mostrar como a disciplina genérica do instituto, bem como as peculiaridades encontradas em uma relação jurídica especial, como a trabalhista, em que o próprio ordenamento reconhece as desigualdades dos sujeitos e busca tutelá-los de forma mais efetiva, reconhecendo que, mesmo ali, ainda é observada, no final das contas, a regra geral. Isso tudo para mostrar que "há algo de podre no reino da Dinamarca" quando se fala da disciplina dos juros bancários no Brasil. Tal jocosa afirmação se dá pela circunstância de que, lamentavelmente (grifo nosso), o Supremo Tribunal Federal, ao editar a Súmula 596, firmou entendimento no sentido de que ‘as disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional’. Em nosso entendimento, sob o argumento de que a atividade financeira é essencialmente instável, e que a imobilização da taxa de juros prejudicaria o desenvolvimento do país, inúmeros abusos são cometidos, em detrimento sempre da parte mais fraca, o correntista, o depositante, o poupador.

E não é só a taxa de juros a causa de abuso. A forma com que os bancos capitalizam os juros também gera prejuízos financeiros ao consumidor, além de caracterizarem o anatocismo.

Define-se anatocismo como sendo

a prática da capitalização dos juros, de sua cobrança em percentuais excessivos e, enfim, de toda operação contábil que, nos contratos pactuados entre bancos e clientes, venha a impor em detrimento destes e benefício daqueles encargos por demais onerosos (GARCIA, 2002, p.95).

A prática do anatocismo é proibida pela nossa legislação que autoriza apenas a capitalização dos juros ao capital. Para melhor compreender como se verifica a ilegalidade no anatocismo, é necessário entender como funcionam os regimes de capitalização dos juros.

Existem dois tipos de regimes capitalização de juros: os que se utilizam dos juros compostos e o dos juros simples.

No regime dos juros compostos o juro formado em cada período de capitalização é incorporado ao capital inicial, essa totalização de "capital + juros" (montante), passa a render juros no período seguinte, Ou seja, juros sobre juros. No caso dos juros moratórios a prática é ainda mais tenebrosa, visto que, passam eles a incidir sobre o montante, resultando em juros sobre "juros sobre juros".

Eis o anatocismo.

Na capitalização dos juros simples, o capital rende juros num período, mas o montante gerado serve apenas para apurar a dívida desse período, não acumulando para o período seguinte, quando apenas o capital inicial será novamente capitalizado pela taxa de juros fixada. Desse modo os juros rendem apenas num período nunca aumentando o montante para o período seguinte.

O problema é que todas as operações bancárias lançam mão do sistema de capitalização dos juros compostos, utilizando-se da determinação do artigo 5º da medida provisória n° 2.170-36, de 23 de agosto de 2001, que "dispõe sobre a administração dos recursos de caixa do Tesouro nacional, consolida e atualiza a legislação pertinente ao assunto e dá outras providências" [42]. E, ao arrepio do artigo 591 do Código Civil, o Superior Tribunal de Justiça, em recentes julgados (Recursos Especiais nº 890460/RS e 821357/RS), entendeu possível a capitalização mensal dos juros mesmo depois da vigência do Código Civil de 2002. A propósito, cite-se a notícia da página do Tribunal na internet, publicada sob a epígrafe "Novo Código Civil não rege capitalização de juros nos contratos bancários":

"As instituições bancárias podem capitalizar juros por períodos inferiores a um ano, ainda que o contrato de financiamento tenha sido firmado após a vigência do novo Código Civil, a partir de janeiro de 2003. As Turmas julgadoras que compõem a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar em dois recursos especiais sobre o tema, decidiram que a nova lei não revogou nem modificou a lei anterior que disciplina os contratos do Sistema Financeiro Nacional no que diz respeito à limitação de juros (grifo nosso). Por isso, em contratos a partir de 30 de março de 2000, vale o artigo 5º da Medida Provisória nº 2.170-36/2001, que afasta a imposição do limite anual à capitalização de juros, não se aplicando o artigo 591 do Código Civil.

A capitalização de juros corresponde à prática mediante a qual juros são calculados sobre os próprios juros devidos em contratos de empréstimos ou financiamentos bancários, por exemplo. Com a orientação amplamente majoritária fixada pela Terceira e pela Quarta Turma, em termos práticos, esse passa a ser o entendimento pacificado que deverá prevalecer nos julgamentos futuros sobre o tema que venham a ocorrer na Segunda Seção do STJ.

No julgamento mais recente (REsp 890.460), a Quarta Turma atendeu a recurso do banco ABN Amro Real S.A. para que valesse a regra pactuada em contrato, de capitalização de juros mensal, para um financiamento firmado em 30 de outubro de 2003. O voto do relator, ministro Aldir Passarinho Junior, foi seguido por unanimidade naTurma.
Os ministros entenderam que, "mesmo para os contratos de agentes do Sistema Financeiro Nacional celebrados posteriormente à vigência do novo Código Civil, que é lei ordinária, os juros remuneratórios não estão sujeitos à limitação, devendo ser cobrados na forma em que ajustados entre os contratantes". Isso quer dizer que prevalece a regra especial da medida provisória que admite a capitalização mensal. A posição do STJ reformou a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) sobre o tema, anteriormente aplicada ao caso em análise [43].

Mais uma vez esta Corte Superior engendra um entendimento contrário aos interesses dos consumidores e aos princípios e regras legais que regem a matéria deixando margem à continuação das práticas abusivas em relação aos juros bancários.

Sobre o autor
Adriano Carvalho Souza

Analista Processual do Ministério Público de Sergipe. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduado em Direito Público (UNIASSELVI/SC). Pós-graduando em Direito do Estado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Adriano Carvalho. Hermenêutica civil-constitucional dos juros bancários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2701, 23 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17862. Acesso em: 17 nov. 2024.

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