RESUMO
A lei dos crimes hediondos utilizou o critério positivo para definir os crimes assim considerados e não revestiu de hediondez os crimes militares, todos tipificados no código penal militar. A consequencia deste equívoco do legislador ordinário gerou diversas contradições legais, entre elas a afronta ao princípio constitucional da igualdade, ao dispensar tratamento diferente entre civis e militares. O civis estão sujeitos às regras mais rigidas criadas pela lei dos crimes hediondos, no que diz respeito ao regime de cumprimento de sanção penal, pois cometem as condutas tipificadas no código penal comum, o que não acontece com os militares que, sob determinadas condições objetivas constantes no art. 9º, inciso II do CPM, praticam as condutas tipificadas na parte especial do código penal militar.
PALAVRAS CHAVE
Crimes Hediondos. Homicídio Qualificado. Grupo de Extermínio. Princípio da Igualdade. Lei Penal Militar.
Introdução
O direito penal é um dos ramos mais dinâmicos do direito. O chamado "jus puniendi" do Estado é regulado por normas que positivam desde a descrição de condutas repudiáveis entituladas "fatos típicos" ou simplesmente crimes, até a determinação de qual será a sanção quando do cometimento de cada crime previsto, bem como a maneira que será cumprida, ao que se dá o nome de regime de cumprimento da pena.
Algumas vezes o legislador ordinário acha por bem agravar certas regras penais com o fito de inibir o cometimento de determinados crimes, aos quais a sociedade reputa grande pontencial ofensivo. A Lei dos Crimes Hediondos (Lei n° 8.072/90) serviu justamente para agravar as regras penais para certos crimes assim denominados.
Entretanto, deparamo-nos com um problema quando o legislador brasileiro entende necessária a atualização das normas penais em nosso ordenamento jurídico. Reiteradas vezes ele simplesmente se esquece que em nosso país, o direito penal subdivide-se em duas grandes vertentes, a do Direito Penal Comum e do Direito Penal Militar.
A Lei dos Crimes Hediondos e a Lei Penal Militar
Em seu bojo, a Lei dos Crimes Hediondos trouxe um rol taxativo de crimes assim classificados, dispensando a eles um tratamento penal mais gravoso à medida que provoca a incidência de efeitos processuais mais severos tais como a insuscebilidade de anistia, de graça ou indulto bem como de fiança. A lei determina ainda que a pena, quando da prática de crimes hediondos, obedecerá um regime de progressão mais rígido do que o ordinário.
Entre as condutas que a lei rotulou como hedionda foi o homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, ou quando o homicídio for qualificado. Neste caso, o tipo penal é de simples constatação, pois a lei penal traz em si critérios objetivos qualificadores da conduta homicida.
Entretanto, maior confusão se encontra quando se trata do homicídio praticado em "atividade típica de grupo de extermínio", para o qual a lei não trouxe nenhuma conceituação, cabendo aos doutrinadores do direito penal aventurarem-se a procurá-la. Como observa Alberto Silva Franco, "não há no código penal, nem em nenhuma lei extravagante, tipo algum com a descrição especial e a denominação expressa de grupo de extermínio. E se inexiste tal delito, cogitar de atividade típica de grupo de extermínio é cair num vazio total"1.
Pretendendo dar solução ao impasse, os doutrinadores buscaram alternativas jurídicas para dar conceituação ao termo. Fernando Capez, por exemplo, escreve que a existência de um grupo de extermínio está condicionada à associação de duas ou mais pessoas, exigindo-se ainda que o grupo tenha sido formado para matar um grupo específico de pessoas. Diz o autor:
"A lei exige então que o homicídio seja praticado em atividade típica de grupo de extermínio, o que não se confunde com quadrilha ou bando, pois a lei não requer um número mínimo de pessoas para considerar hediondo o homicídio simples. O grupo pode ser formado por, no mínimo duas pessoas (como no caso da associação criminosa – art. 35 da Lei de Drogas) admitindo-se ainda, que somente uma delas execute a ação. A finalidade, qual seja, a de eleminiar fisicamente um grupo específico de pessoas, pouco importando estejam ligadas por um laço racial ou social, sendo suficiente que estejam ocasionalmente vinculadas."2
É mister compreender o momento histórico em meio ao qual a Lei dos Crimes Hediondos foi editada e aprovada para então compreender o objetivo do legislador. Um momento de pânico atingia alguns setores da sociedade brasileira, sobretudo devido a uma onda de sequestros que acontecia no Rio de Janeiro, que teve como fato marcante o rapto do empresário Roberto Medina, irmão do deputado federal do Rio de Janeiro, Rubens Medina. Criou-se desta forma um clima emocional propício ao surgimento de propóstas de criação de dispositivos legais mais rígidos que combatessem os crimes mais graves, denominados hediondos. O poder público precisava proporcionar à sociedade brasileira uma sensação de segurança. Casos como o da atriz Daniela Perez e da chacina da Candelária também pressionavam o poder público a agir de forma a reprimir crime mais graves de forma mais severa.
Faz-se notório então que o objetivo do legislador era o de enrijecer o tratamento penal dispendido aos crimes classificados como hediondos, em quaisquer grupos sociais nos quais as condutas criminosas viessem a ocorrer.
Revelando não surpreendente, porém inequívoca falta de técnica legislativa, o legislador não abrangeu no rol dos crimes hediondos os crimes militares, consequentemente não revestindo de hediondez os crimes militares e entre eles o de homicídio. Destarte, a lacuna jurídica criada prejudicou decisivamente a realização plena dos objetivos pretendidos com a edição da Lei dos Crimes Hediondos.
O caput do art. 1º da Lei dos Crimes Hediondos é muito claro ao positivar que "são considerados crimes hediondos os seguintes, todos tipificados no Decreto Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados". O inciso I do mesmo artigo é ainda mais específico ao positivar que o tipo penal que receberá a rotulação de hediondo é o do art. 121 do Código Penal, bem como os incisos de seu §2º.
Torna-se impossível então classificar como hediondos os crimes militares, pois estes estão definidos em um outro diploma legal, que não o Código Penal.
A princípio pode-se pensar em dar a esse dispositivo uma interpretação sistemática, ou ainda, fazer uma analogia entre o Código Penal Militar e o Código Penal, uma vez que no campo fático, a conduta praticada pelo agente é a mesma, diferenciando-se apenas a condição de militar e as circunstâncias objetivas contidas no art. 9º do Codex Penal Castrense. Entretanto, essa solução é de uma fragilidade jurídica insustentável, uma vez que no sistema jurídico pátrio é vedada a aplicação de analogia in malam partem. Existe ainda o fato de que a Lei dos Crimes Hediondos foi taxativa ao definir o rol das condutas típicas que seriam classificadas como hediondas.
É de profundo pesar para nós policiais militares que o homicídio qualificado ou o homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio não sejam condutas raras de se verificar em meio aos integrantes das polícias militares por todo o país, podendo ser citados os exemplos da chacina da Candelária e do chamado "massacre de Vigário Geral", nos quais restou comprovado que policiais militares participaram da prática de múltiplos homicídios em atividade típica de grupo de extermínio.
No caso específico da polícia paulista, podemos citar o caso vindo mais recentemente a público, qual seja, o do grupo que a mídia apelidou de "highlanders" (assim chamados pois as vítimas eram encontradas com a cabeça e as mãos decepadas), que atuava na cidade de São Paulo.
É possível, no episódio paulista, que os homicídios fossem praticados por policiais militares uniformizados e durante o turno de serviço, permitindo assim a subsunção das condutas ao art. 205 do Código Penal castrense, combinado com o art. 9º, inciso II, letra "c", também do mesmo Codex.
É necessário ressaltar que, em que pese o paragrafo único do art. 9º do Código Penal Militar trazer que a competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis seja da justiça comum, esse dispositivo legal não retira a natureza militar do crime de homicídio cometido nestas condições.
Não bastasse o equívoco legislativo demonstrado na letra da Lei dos Crimes Hediondos, o legislador pode ter incorrido em uma inconstitucionalidade, o que se mostra ainda mais grave, à medida que afrontou explicitamente o princípio da igualdade. Ao deixar de revestir de hediondez os crimes militares tipificados no Código Penal Militar, o legislador permitiu que a justiça brasileira possa dispensar tratamento diferenciado entre civis e militares, ainda que tenham praticado condutas semelhantes. A diferença de tratamento no que concerne à cominação da pena e no regime de cumprimento da pena é notória e atentatória à nossa Carta Excelsa.
Mesmo em meio à doutrina é dificil encontrar quem direcione atenção a essa questão, exceção feita a alguns doutrinadores, tal qual Alberto Silva Franco, que aborda de forma crítica essa diferença de tratamento propiciada pela Lei dos Crimes Hediondos. Discorre o doutrinador:
"Com efeito, ao deixar de etiquetar, como crimes hediondos, os delitos, de igual denominação, no Código Penal Militar, o legislador ordinário estabeleceu uma arbitrária diferença de tratamento entre o civil e o militar, diferença essa que reflete não apenas na cominação da pena, como também no regime penitenciário, nas causas extintivas de punibilidade e na própria individualização punitiva. Um confronto entre as figuras criminosas contidas no Código Penal Militar e no Código Penal põe nu a gritante dessemelhança que passou a existir, no campo punitivo, entre brasileiros que se separam apenas pela condição de pertencer ou não à uma corporação militar."3
O latrocínio é também um exemplo de crime que só é hediondo quando tipificado no código penal comum. Imagine a hipótese em que um grupo de policiais militares, uniformizados e durante o turno de serviço, pratiquem um latrocínio, contra a vítima "A" em uma determinada via e, ao mesmo tempo, um grupo de civis, pratique um latrocínio contra a vítima "B", em local contíguo. Nesse caso, ainda que a conduta, as circunstâncias e a localidade sejam semelhantes, os civis estarão sujeitos a regras processuais e a um regime de progressão no cumprimento da pena mais rígidos do que os militares.
No caso dos policiais militares, a conduta citada no parágrafo anterior encontra subsunção no art. 242, §3º, do Código Penal Militar, sendo portando um crime militar não abarcado pela lei dos crimes hediondos. Assim os militares teriam legalmente o direito a um regime de progressão de cumprimento da pena mais brando e, possivelmente, seriam postos em liberdade antes dos civis que cometeram conduta semelhante e em local próximo.
Não existe justificativa válida para admitir a separação conceitual entre o civil e o militar no que diz respeito ao cometimento de crimes hediondos.
Consequências da omissão do legislador
Essa situação torna-se ainda mais digna de especial atenção quando observamos que é reiterada a falta de técnica legislativa do legislador ordinário brasileiro quando se trata de atualização da lei penal. Do mesmo modo que a Lei dos Crimes Hediondos não abrangeu os crimes militares no rol de crimes hediondos, a recente Lei nº 12.015/09, que alterou a tipificação do crime de estupro e acabou por fundi-lo, no Código Penal, com o crime anteriormente tipificado sob a denominação de atentado violento ao pudor, deixou intacta a tipificação destes crimes no Código Penal castrense.
A omissão legislativa no caso da Lei nº 12.015/09 gerou discrepância legal a ponto de ser possível, em uma análise inicial, supor a inclusão do crime de atentado violento ao pudor no rol de crimes unicamente militares, segundo o critério do inciso I, do art. 9º, do Código Penal Militar que positiva serem crimes militares "os crimes de que trata este código quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial". É ainda impressindivel consignar que a Lei dos Crimes Hediondos também abrangeu o crime de estupro no rol dos crimes hediondos, esquecendo-se novamente de incluir os crimes militares de igual tipificação.
Providencialmente, no caso do crime de estupro modificado pela Lei nº 12.015/09, a Corregedoria da Polícia Miitar de São Paulo desenvolveu e propôs uma interpretação a ser aplicada a esse crime com o fito de orientar os trabalhos de polícia judicária militar no âmbito da polícia militar de São Paulo.
De maneira inovadora, o órgão Polícia Militar paulista propôs uma interpretação substancial e temporal ao tipo penal, levando-se em conta o texto original do Código Penal Militar, o qual data de 1969 (tendo entrado em vigor em 1º de janeiro de 1970) em comparação com a legislação penal comum vigente naquele mesmo momento histórico. Esta visão tem por base o fato de que a legislação penal é dinâmica (assim como qualquer ramo do direito) e que as leis penais comum e militar seguem caminhos distintos ao longo de seu desenvolvimento histórico.
Destarte, a subsunção do crime de estupro continuaria a obedecer aos critérios objetivos constantes do inciso II do art. 9º do Código Penal Castrense e não seria transferido ao rol dos crimes unicamente militares, que obedecem o critério do inciso I do mesmo art. 9º do referido Codex, pensamento alicerçado no fato de que, em 1970, quando o legislador fez a comparação entre as legislações, esse era o quadro fático.
Em um artigo alusivo ao tema, o capitão da Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo, Cicero Robson Coimbra das Neves, materializou a proposta de interpretação da corregedoria paulista em que a interpretação é feita de maneira substancial e temporal, levando-se em conta os textos vigentes na data de entrada em vigor do Código Penal Militar. Discorreu o penalista castrense:
"Em resumo, portanto, na comparação dos tipos penais militares com os tipos penais comuns, sustentamos uma tarefa que prestigie a semelhança substancial e limitada temporalmente à data de entrada em vigor do Código Penal Militar, ou seja, 1º de janeiro de 1970." 4
Após uma análise acerca desta problemática, faz-se notória a necessidade de uma assessoria técnica ao legislador ordinário no que se refere à lei penal militar, pois nem sempre a jurisprudência ou a doutrina terão ferramentas legais para solucionar as contradições geradas pela omissão legislativa. No exemplo do crime de estupro, um órgão da Policia Militar do Estado de São Paulo viu-se obrigado a agir como interpretador do direito com o fito único de solucionar os problemas práticos ocasionados no campo da polícia judiciária militar.
Cumpre positivar, a fim de alinhavar este estudo, uma última questão. Não seria a missão de assessorar o legislador ordinário durante a elaboração dos textos legais, no que concerne à lei penal militar, incumbência das próprias corporações militares, por meio de seus orgãos de assessoria? Vale a reflexão.
REFERÊNCIAS:
- SILVA FRANCO, Alberto. Crimes Hediondos. 4ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p.259.
- CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal 2. 7ª Edição. Editora Saraiva. 2006. p29.
- SILVA FRANCO, Alberto. Crimes Hediondos. 4ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p.322.
- NEVES, Cícero Robson Coimbra das, Artigo 9° do CPM: Uma nova proposta de interpretação. São Paulo. 2009. p.07.