SUMÁRIO: 1. Prolegômenos. 2. A indústria estatal do crime. 3. Como se produz um criminoso. 4. Estudo de caso: o Município de Iúna / ES em 2008. 5. Qual a utilidade da criminalização? 6. Reflexos da criminalização contemporânea na vida social dos indivíduos e no mercado de trabalho. 7. Conclusão.
RESUMO
A presente dissertação apresenta uma análise criminológica dos intitulados marginalizados à luz das teorias da seleção, etiquetamento e estigmatização, sobretudo na cidade de Iúna / ES. Expõe os nefastos efeitos da antecipação da tutela penal àqueles que são chamados a se explicar nas agências criminológicas.
Palavras-chave: Criminologia; Teoria da Seleção; Teoria do Etiquetamento; Teoria da Estigmatização; mercado de trabalho; reformulação do conceito de homem criminoso.
ABSTRACT
This dissertation presents an analysis of criminology of the calls "marginalized" to the light of the theories of the selection, it labels and stigma, mainly in Iúna City / ES. It exposes the disastrous effects of the anticipation of the penal protection to those that are called the if it explains in the criminology agencies.
Key-words: Theory of the Selection; Theory of the Label; Theory of the Stigma; job market; revision of criminal man's concept.
PROLEGÔMENOS
Vê-se no cotidiano do homem médio a sociedade clamando cada vez mais por justiça. Vítimas buscam as agências repressivas do Estado - polícias, Ministério Público e Poder Judiciário - como se fossem capazes de solucionar todas as imperfeições do próprio Estado. Contraditoriamente, também acreditam que o Direito Penal, concebido como a ultima ratio, é hoje insuficiente para a manutenção da ordem no Brasil.
Alguns paradigmas devem ser repensados. Quem é vítima, à luz da criminologia crítica, não é necessariamente quem experimenta um crime praticado contra si.
A rigor, busca a criminologia açambarcar a análise do crime, da pessoa do infrator, da suposta vítima e do controle social do comportamento delitivo. Pretende, sobretudo, buscar informações válidas e contrastadas acerca da origem, da dinâmica e das variáveis dos delitos, além de programas de prevenção eficazes e de técnicas de intervenção positiva no homem delinqüente e nos variados modelos de respostas ao delito [01].
Como adiante se demonstrará, é a própria coletividade, criminógena em seu âmago [02], que cria seus delinqüentes. Não apenas de forma primária (legislativa), mas - principalmente - secundária, pré-julgando e marcando seus componentes em um moto-contínuo de intensa irracionalidade e irresponsabilidade.
A INDÚSTRIA ESTATAL DO CRIME
O crescimento exponencial da população traz consigo inúmeros reflexos, dentre eles o natural incremento dos índices de criminalidade.
A par disso, o anseio político do Estado brasileiro, por tradição, costuma produzir aquilo que LUIZ FLAVIO GOMES e RAÚL CERVINI chamaram de Direito de Exceção: a produção frenética de atos legislativos tidos por urgentes sem a necessária observância de preceitos constitucionais. Os citados cientistas chegam a afirmar que é a:
Política criminal apenas preocupada com a eficiência do sistema, como êxito funcional, enfim, com ter respostas ("imediatas", ainda que muitas vezes "simbólicas") para a criminalidade, dentro de uma concepção criminológica "neoclássica" [03].
A esse ato legislativo inicial, capaz de tipificar ("criar") crimes, a dogmática criminológica moderna [04] confere o epíteto de criminalização primária. À aplicação prática dessa criminalização legislativa, equivale dizer, à repressão estatal aos delitos ocorridos em casos específicos (crimes in concreto) a criminologia atribui o nome de criminalização secundária, que outra coisa não é senão o etiquetamento dos autores da conduta anti-jurídica através de um grande processo de estigmatização.
Mas, o que é crime?
Para o Direito Penal, o crime surge em duas etapas: pela produção legislativa e pela efetiva ocorrência do fato que se amolde à figura penal criada pelo Estado-Legislador. Este sucede àquele por ocorrer na prática.
ROGÉRIO GRECO [05], conquanto adote a teoria tripartida do conceito analítico do delito, ensina, lembrando de DAMÁSIO, DOTTI, MIRABETE e DELMANTO, que crime é o resultado decorrente da soma de um fato típico (criação legislativa prévia à ocorrência da conduta anti-social punível) com a conduta antijurídica (perpetrada pelo agente que se pretende punir). Ausente um desses requisitos, não há delito.
Já para o Direito Constitucional, todavia, a situação é mais sutil.
Um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito é o estado de inocência, também chamado de princípio de não-culpabilidade [06], postulado que traduz a idéia de que todos são inocentes até que haja o trânsito em julgado de sentença penal condenatória em seu prejuízo. Em outras palavras, ninguém pode ser etiquetado de criminoso se o ato jurisdicional que lhe reprova uma conduta praticada anteriormente (Sentença) não houver se tornado imutável para ambas as partes, acusação e defesa. Havendo a menor possibilidade de recurso contra o ato judicial que o declarou culpado criminalmente, o agente ainda deve ser tido por inocente.
O ponto, na prática, é paradoxal. O que se mostra evidente garantia civil contra arbitrariedades do Estado lamentavelmente é visto pela sociedade brasileira como garantia de impunidade, sem que, no entanto, conheçam os benefícios que a atual realidade constitucional do país trouxe.
No que pertine à criminologia crítica, contudo, a criminalidade é uma realidade social erigida pelo próprio sistema de justiça criminal através da reação social (labelling aproach). O criminoso não é um indivíduo "estranho" (diferente dentro da sociedade), mas possuidor de um status social atribuído a determinados indivíduos selecionados pelo sistema penal.
COMO SE PRODUZ UM CRIMINOSO
Como cediço, o índice crescente de criminalidade faz com que muitas pessoas sejam conduzidas às agências estatais [07] para prestar explicações. Basta a mera citação [08] do suspeito para que ele fique conhecido ("etiquetado") como um desviado social, antes mesmo de qualquer pronunciamento jurisdicional em seu desfavor.
A essa rotulação, sempre pejorativa, convencionou-se o nome de labelling aproach (também conhecida como Teoria do Etiquetamento Social, ou Teoria da Reação Social). Essa tese visa demonstrar o quão negativa são as conseqüências da rotulação criminal de um indivíduo.
Há mais.
Ordinariamente determinados agentes são jogados ao patíbulo por praticarem condutas que outros do seu meio social também praticam impunemente. Como etiquetar aquele que foi alcançado pelo Estado e deixar de rotular aquele que o poder público sequer tem consciência de sua existência? Não será este mais delinqüente que o etiquetado como desviado social precisamente por não ter sido alcançado?
A esta hipótese dá-se o nome de seleção, de condutas e de agentes. Como o Estado não pode punir todos os "desviados" individualmente em razão de sua baixa capacidade operacional e pela grande quantidade de infratores - crescente a cada novo dia -, dentre um universo de possibilidades seleciona casos específicos que têm prioridade de tratamento, seja por estarem em evidência, seja em razão dos reflexos sociais da conduta praticada. É o caso dos camelôs da Rua 15 de Março, em São Paulo; dos ambulantes vendedores de contrafações (produtos falsificados, como CD´s, DVD´s e relógios); dos transportes públicos não oficiais ("perueiros e moto-táxis"); dentre tantos outros.
Além disso, as etiquetas, quase sempre negativas, são um "corredor" que sempre culmina na "prisão psicológica" do rotulado. Fazem com que o agente mantenha a sua identidade, tida por desviada, altamente exposta, alterando sua auto-imagem e percepção, o que, por efeito direto e imediato, reflete no seu comportamento social. Por isso não ocorre a tão sonhada "ressocialização" dos custodiados. A altíssima sutileza da questão é alcançada por poucos.
As etiquetas perpetuam o comportamento dos indivíduos. É aquilo que ROBERT MERTON chamou de self fulfilling prophecy [09], ou auto-execução da profecia, em vernáculo, fio condutor do indivíduo a uma verdadeira carreira criminosa, tornando-o psicológica e socialmente estigmatizado em razão disso.
Para melhor compreender como essas conseqüências se operam, optou-se por um estudo de caso: o município de Iúna / ES.
ESTUDO DE CASO: O MUNICÍPIO DE IÚNA / ES EM 2008.
Iúna [10] é um município capixaba situado no extremo sudoeste do Estado e distante cerca de 180 km da capital. Localizado na região do Caparaó, tem sua população estimada em 26.239 habitantes (IBGE / 2009). Possui uma área de aproximadamente 460,522 Km2 e médio índice de desenvolvimento humano (segundo a classificação oficial do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Fonte: Wikipédia [11]
Situado geograficamente em uma região de divisa territorial, apresenta a vantagem de associar características culturais da população de dois estados: Minas Gerais e Espírito Santo.
Conquanto seja cidade e comarca essencialmente rural e relativamente pequena para os parâmetros nacionais, apresenta dados criminológicos importantes. É a ratio essendi deste trabalho.
Em pesquisa realizada junto à Delegacia Municipal foram coletados dados referentes aos autos de prisão em flagrante lavrados no ano de 2008. A pesquisa foi cingida a lavraturas de auto de prisão em flagrante em delito (APFDs) em razão do grande etiquetamento social que sofre o individuo nesse ato. Excluiu-se do estudo, pois, os procedimentos policiais de investigação que não culminaram na prisão imediata do individuo enquanto cometia o delito.
Conforme se infere dos dados a seguir, foram 42 (quarenta e duas) autuações em flagrante delito, o que significa dizer que, no ano de 2008, pelo menos 42 (quarenta e duas) pessoas foram presas quando cometiam crimes. Veja-se:
ESPÉCIE |
APFD |
Armas de Fogo |
11 |
Homicídios |
1 |
Crimes contra o Patrimônio |
6 |
Trânsito |
5 |
Tóxicos |
8 |
Outros crimes |
11 |
TOTAL |
42 |
A distribuição percentual, representada pelo gráfico abaixo, permite verificar que os crimes contra o patrimônio e os crimes de tóxicos representam mais da metade das autuações em flagrante. A par disso, em se considerando que se trata de uma cidade interiorana, também é possível constatar expressivo número de prisões em flagrante por delitos de trânsito, precipuamente pelos delitos de embriaguez ao volante e direção sem habilitação (Arts. 306 e 309 da Lei Nacional nº 9.503, de 23 de setembro de 1997).
Ilustração 1 – Autuações em flagrante em 2008 no Município de Iúna / ES
Sopesando, então, a expressividade desse número (16% do número total de flagranteados), o texto será voltado para a análise dos reflexos sociais nos indiciados nesses crimes, descrevendo os reflexos da criminalização secundária na vida social do individuo e a utilidade coletiva dessa seleção.
QUAL A UTILIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO?
As razões de se incriminar alguém são amplas.
Em um primeiro momento, através da ameaça de aplicação da aplicação de sanção criminal. Objetiva-se, com essa criminalização primária a prevenção geral da ocorrência da conduta proibida.
Em uma segunda oportunidade, caso a inibição geral malogre, entram em cena os órgãos repressivos criminais do Estado, coibindo o comportamento indesejado através da submissão do autor da conduta inadequada aos procedimentos criminais positivados.
Na terceira e derradeira fase, o Estado, quando da execução da pena impingida, acaba por associar a prevenção, geral e especial, com o (questionável) caráter ressocializador da pena.
De fato, não é possível manter uma ordem social sem repressão criminal. É a aplicação de sanções criminais a expressão dessa repressão.
Entretanto, o que se espera é que tais sanções sejam aplicadas exclusivamente pelo Estado, com proporcionalidade.
Os altos custos sociais e materiais que envolvem as atividades das agências públicas, todavia, nem sempre são viáveis. Há casos em que, juridicamente, autores de fatos delituosos sequer são submetidos à derradeira apreciação judiciária (sentenciados). É o caso, por exemplo, dos crimes de embriaguez ao volante e de direção sem habilitação (Arts. 306 e 309 da Lei nº 9.503 / 97) quando os agentes são primários.
Na hipótese do crime de embriaguez ao volante (Art. 306 da citada Lei), se condenado o agente poderá experimentar pena de detenção (privativa de liberdade) de 06 (seis) meses a 03 (três) anos, além de multa e da suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. No que tange ao crime de direção sem habilitação (Art. 309 do já mencionado diploma), o preceito secundário ("pena") previsto é de detenção, de 06 (seis) meses a 01 (um) ano, ou multa. Entrementes, tais sanções somente encontrarão aplicabilidade se o indivíduo for condenado por sentença penal transitada em julgado.
O termo condicionante "se" foi destacado em razão do nosso sistema legislativo de repressão penal admitir uma técnica chamada suspensão condicional do processo nos crimes cuja cominação mínima for igual ou inferior a um ano (Art. 89 da Lei Nacional nº 9.099 / 95). Neste caso, o procedimento poderá ser suspenso por 02 (dois) a 04 (quatro) anos, desde que o acusado não responda a outro processo ou não ostente condenação anterior por outro crime, além de outros requisitos necessários.
Em síntese, satisfeitas determinadas condições, os supostos - porque ainda não condenados – criminosos não receberão condenação judicial.
Ora, porque então etiquetá-los e estigmatizá-los socialmente se oficialmente eles sequer são sentenciados?
Além do grande preço social que um "desviado" experimenta nessas hipóteses ao receber a etiqueta pela lavratura do auto de prisão em flagrante delito, o desperdício de dinheiro público é patente.
Em pesquisa realizada no Fórum da Comarca de Iúna foi constado que nenhuma daquelas 05 (cinco) autuações em flagrante por delitos de trânsito ocorridas em 2008 restaram judicialmente solucionadas até meados de outubro de 2009, o que permite a conclusão de que os altos custos materiais - e sociais - com o andamento dos processos [12] permanecem, agravado pelo excesso de tempo de duração do processo razoável do processo, em evidente inconstitucionalidade (Art. 5º, LXXVIII, CRFB / 88).
REFLEXOS DA CRIMINALIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA NA VIDA SOCIAL DO INDIVÍDUO E NO MERCADO DE TRABALHO
Quando em fase adulta, o agente estigmatizado criminalmente ainda dispõe alguns de meios e modos de sobreviver: busca empregos informais (quase sempre de baixa renda), torna-se profissional autônomo em outra localidade (poucos são os que se dispõem a contratar um pedreiro sabidamente ex-ladrão, por exemplo), ou simplesmente mudam de cidade.
A situação, contudo, é mais delicada com relação aos jovens.
Mesmo àqueles que não possuem registro criminal, a situação é notoriamente árdua. Além das normais dificuldades em se conseguir uma ocupação laboral formal nos dias de hoje, ditos jovens ainda têm que enfrentar preconceitos por residirem em determinado bairro, pela sua ainda baixa qualificação profissional, por seu modo de ser ou de reagir à determinada situação, ou mesmo em razão de sua etnia.
Há, porém, uma situação notada por poucos: a etiquetação e a conseqüente estigmatização reflexa. Muitos não conseguem trabalho formal meramente porque são parentes próximos ou amigos de determinado criminoso, de modo que também são afetados pelas condutas de outras pessoas, pertencentes ao seu círculo social mais próximo. Uma verdadeira "imputabilidade objetiva" [13] social.
Com relação aos próprios estigmatizados criminais, porém, a situação é ainda mais grave.
Muito embora exista a exclusão jurídica de todo ato infracional [14] quando o agente atinge a maioridade, proporcionando aos até então infratores adentrarem na fase adulta com a chamada ficha criminal completamente "limpa", o fato é que tais jovens ficam estigmatizados no seu círculo social por tempo indeterminado.
Aqueles que são socialmente etiquetados de "menor infrator" dificilmente conseguem o retorno da aceitabilidade no seu meio social, o que conduz esses seres humanos, ainda em formação, ao longo corredor da prisão mental. Verifica-se, claramente, portanto, que se torna verdadeiramente lúdico a estes o acesso a empregos formais.
No Município de Iúna / ES a situação não é diferente.
Tomando de exemplo um caso real, um cidadão chamado L. F., hoje contando com 18 anos completos, foi preso (rectius, internado) 13 (treze) vezes quando ainda era menor. Hoje, atingida a maioridade penal, é pai de 02 (dois filhos), se encontra custodiado e já possui 02 (duas) denúncias criminais e 01 (um) inquérito policial em andamento contra si. Filho de pai não declarado e de mãe falecida, quando de seu interrogatório em fase judicial sempre declara cometer seus delitos (pequenos furtos qualificados pela escalada) para sobreviver porque, segundo ele, ninguém lhe oferece ocupação lícita. A solução que lhe aparece é apenas uma: a de se reagrupar aos seus antigos parceiros logo que consegue a liberdade.
Subsiste alguma possibilidade de soerguimento social dessa pessoa, amplamente conhecido no município como ladrão vulgar? Por certo que trata-se de um delinqüente [15], mas ele também não é uma vítima da sociedade?