RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de analisar o regime jurídico da exploração dos recursos florestais em reservas extrativistas, em especial madeireiros, atentando para o progressivo desvirtuamento deste tipo de unidade de conservação com consequências danosas ao meio ambiente.
ABSTRACT: This paper aims to analize the juridical regime of the forestry resources exploration in extractivist reserves, specially timber products, focusing the progressive misuse of this kind of Conservation Unit and its harmful consequences for the environment.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Reservas extrativistas. 2.1. Histórico. 2.2. Regime jurídico. 2.3. As populações tradicionais. 2.4. Utilização dos recursos naturais. 2.5. Transfiguração cultural das populações tradicionais. 2.6. Situação atual. 3. Manejo florestal, manejo florestal comunitário e aspectos controversos. 4. Casuística. 5. Medidas judiciais cabíveis. 5.1. Ação popular e ação civil pública. 5.2. Responsabilização penal. 5.3. Responsabilização por ato de improbidade administrativa. 6. Conclusões. 7. Bibliografia.
1. Introdução
Uma das formas de efetivação do direito fundamental ao meio ambiente, no ordenamento jurídico brasileiro, é o estabelecimento de espaços territoriais especialmente protegidos, sendo as unidades de conservação da natureza a modalidade mais expressiva destas áreas protegidas.
As unidades de conservação, por sua vez, dividem-se em duas categorias, conforme a possibilidade ou não de seus recursos naturais. De um lado, as unidades de proteção integral ou de uso indireto; de outro, as unidades de uso sustentável ou direto, das quais uma das modalidades é a das reservas extrativistas, unidades de conservação cujo uso dos recursos naturais será permitido de modo comunitário, sustentável e exclusivo às populações tradicionais nela residentes.
Sendo uma área afetada com as finalidades tanto de garantir a conservação da natureza e como de permitir a exploração sustentável e comunitária dos recursos, e dada a dificuldade de concretização do abrangente conceito de desenvolvimento sustentável, somada à transfiguração cultural das populações extrativistas, é previsível o surgimento de conflitos decorrentes da dificuldade de ajuste das condutas ao marco legal estabelecido.
Um dos conflitos que assume maior relevância na atualidade, seja pelos interesses econômicos envolvidos, seja pela ameaça de completo desvirtuamento do mencionado marco legal, inclusive com a ameaça de perda da qualidade ambiental, é o que diz respeito à exploração de recursos madeireiros no interior desta categoria de unidade de conservação.
Este trabalho tem como objetivo analisar as diretrizes legais das reservas extrativistas, especialmente no que tange à exploração de seus recursos madeireiros, de modo a possibilitar a tanto a conservação da natureza como a garantia do desenvolvimento sustentável de suas populações, dando efetividade às normas existentes. Também serão analisadas as possíveis violações ao marco legal e respectivas consequências jurídicas.
2. Reservas extrativistas
2.1. Histórico
As reservas extrativistas (RESEX) foram criadas "especialmente para tentar solucionar a questão das atividades seringueiras na Amazônia", tendo dois objetivos primordiais: "proteção dos meios de vida e da cultura das populações extrativistas tradicionais e o uso sustentável dos recursos naturais" [01].
Com efeito, o instituto é diretamente ligado à histórica luta dos povos seringueiros, cuja magnitude é reconhecida internacionalmente através da morte do sindicalista Chico Mendes, costumeiramente lembrado como um marco desta causa. É após sua morte que, em virtude da repercussão adquirida pelo tema, é editada a Lei 7.804/1989, dando nova redação ao inciso VI do art. 9º da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), ao inserir a figura das reservas extrativistas como nova categoria de espaços territoriais especialmente protegidos, vindo a regulamentação do dispositivo a ocorrer com o Decreto 98.897/1990.
Inicialmente concebida como projeto de assentamento extrativista, no âmbito do Programa Nacional de Reforma Agrária (1987), como alternativa ao projeto de colonização do Instituto Nacional de Colonização Agrária (INCRA), estruturado em lotes de cerca de cem hectares, incompatíveis com as atividades de extrativismo, as quais pressupõem a dispersão natural dos recursos naturais a serem coletados pela floresta, a proposta foi alterada de modo a conciliar a solução dos conflitos pela posse da terra com a gestão sustentável dos recursos naturais, aspirando a união entre políticas públicas geralmente divergentes: a de reformo agrária e a de meio ambiente [02].
Tais reservas foram idealizadas como forma de viabilizar a subsistência dos povos tradicionais da floresta, assegurando-lhes tanto o uso da terra (já que o domínio permanece sendo público) como a preservação de seus conhecimentos tradicionais, que implicavam um modo de vida em perfeita sintonia com a Natureza. Em resumo, busca-se unir vida digna à conservação da floresta, concretizando o binômio desenvolvimento sustentável.
Objetiva-se, em resumo, propiciar a solução de dois problemas. De um lado fornecer aos povos tradicionais da floresta um meio de sobreviver segundo seus usos e costumes frente à expansão do capitalismo selvagem que depreda os recursos naturais na região amazônica. De outro, propiciar a preservação dos recursos naturais, pois estas populações tradicionais viviam em harmonia com a floresta, dela retirando apenas o necessário para sua sobrevivência digna.
O Decreto 98.987/1990 definiu as reservas extrativistas como espaços territoriais destinados à exploração auto-sustentável e conservação dos recursos naturais renováveis, por população extrativista (art. 1º). Nos termos do art. 4º do Decreto federal nº 98.897/1990, a exploração auto-sustentável e a conservação dos recursos naturais será regulada por contrato de concessão real de uso. Ou seja, à exemplo do que ocorre com a terra indígena (Constituição da República, art. 231), o domínio é público, mas o uso é concedido à população específica, segundo seus usos e costumes tradicionais [03].
No ano de 2000, com a aprovação da Lei 9.985, as normas relativas às unidades de conservação, até então dispersas em inúmeros diplomas legais, são sistematizadas em um Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), racionalizando e unificando o marco regulatório destes espaços territoriais protegidos. Desse modo, o regime jurídico das reservas extrativistas não apenas se consolida como é inserido num sistema abrangente, dotando normas outrora esparsas de unidade e ordenação [04].
2.2. Regime jurídico
Além de estabelecer um regime específico para a categoria de unidade de conservação reserva extrativista (art. 18), a lei do SNUC, em caráter bastante didático, preliminarmente explica inúmeros conceitos, como no caso do extrativismo, atividade econômica das populações tradicionais das reservas extrativistas, definido como sendo o sistema de exploração baseado na coleta e extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis (art. 2º, XII).
Na Lei 9.985/2000, a reserva extrativista é definida como uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cujasubsistência baseia-se noextrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, tendo como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (art. 18).
O § 1º do referido artigo expressamente dispõe que a Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais. No mesmo sentido, o art. 23, caput, dispõe que a posse e o uso das áreas ocupadas pelas populações tradicionais nas Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável serão regulados por contrato, estando obrigadas as populações tradicionais a participar da preservação, recuperação, defesa e manutenção da unidade (§ 1º do art. 23).
A reserva extrativista será presidida por conselho deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração, e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme disposto em regulamento próprio e no ato de criação da unidade (§ 2º). É atribuição deste conselho a aprovação do plano de manejo da reserva (§ 5º).
A visitação pública é permitida, desde que compatível com os interesses locais e de acordo com as disposições do plano de manejo da unidade (§ 3º). Também é permitida a pesquisa científica, desde que previamente autorizada pelo órgão gesto responsável e segundo as condições neste estabelecidas (§ 4º).
Com relação ao uso direto dos recursos naturais da área, a lei proibiu expressamente a exploração de recursos minerais e a caça amadorística e profissional (§ 6º). Além disso, dispõe o § 7º a exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas na reserva extrativista, conforme disposto no regulamento e no plano de manejo da unidade.
2.3. As populações tradicionais
Originado dos estudos de ciências sociais como a Antropologia, o termo "populações tradicionais" é de difícil conceituação, fato compreensível em razão de seu surgimento relativamente recente e da complexa realidade social a ser delimitada.
Foi em razão desta dificuldade que o Poder Executivo vetou o dispositivo da Lei 9.985/2000 que definia população tradicional [05], sob o correto argumento de que, com um pouco de imaginação, nele caberia toda a população do Brasil [06], dada sua grande amplitude. Desse modo, embora a expressão figure em diversas passagens da Lei do SNUC, não há uma definição legal para esta.
Também na doutrina não há consenso sobre a delimitação do conceito, e há juristas que propõem até mesmo a inclusão de "agricultores tradicionais ou familiares" no rol das populações tradicionais [07], evidenciando a ausência de parâmetros que pode redundar no absurdo de considerar-se quase toda a população rural brasileira como tradicional, desvirtuando-se o instituto.
José Eduardo Ramos Rodrigues propõe de forma mais ou menos acertada ser preciso que fique claro que o modo de existência social das populações tradicionais não deve estar integrado às leis do mercado [08]. Embora seja impossível excluir peremptoriamente das leis do mercado alguma população humana não-isolada, as populações tradicionais não devem se pautar preponderantemente por tais leis (cuja sustentabilidade ambiental é altamente duvidosa), já que isto implicaria em descaracterização cultural que violaria de modo frontal justamente o bem jurídico que ensejou a criação das reservas extrativistas: uma identidade sociocultural tradicional.
Com efeito, o termo "populações tradicionais" está relacionado ao uso de técnicas ambientais de baixo impacto e formas eqüitativas de organização social, o que possibilita que seus usos e costumes possam ser associados a um novo modelo de conservação da Natureza [09].
2.4. Utilização dos recursos naturais
Afora as possibilidades de uso indireto dos recursos naturais existentes nas reservas extrativistas (visitação pública e pesquisa científica, segundo as disposições contidas nos §§ 3º e 4º do art. 18 da Lei 9.985/2000), no que tange ao uso direto o SNUC proibiu expressamente a exploração de recursos minerais e a caça amadorística e profissional (§ 6º). Além disso, o § 7º do art. 18 dispôs que a exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas na reserva extrativista, conforme disposto no regulamento e no plano de manejo da unidade. Desse modo, é da redação do art. 18 que se extraem os princípios norteadores da exploração dos recursos madeireiros nas reservas extrativistas.
Publicidade: a área das reservas extrativistas, assim como todo o conjunto de seus assessórios (recursos minerais, hídricos, florestais e faunísticos), é de domínio público, sendo o uso concedido às populações tradicionais, em regime de contrato de concessão real de uso, revogável no caso de danos ao ambiente.
Tradicionalidade: a reserva extrativista possui como função primordial garantir a conservação da biodiversidade conjugada a um modo de vida tradicional, sendo que o art. 18 da Lei 9.985/2000 restringe a sua utilização às populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, o que implica em dize que as atividades econômicas nesta modalidade de unidade de conservação devem obrigatoriamente estar adstritas ao uso tradicional dos recursos naturais por populações extrativistas. Não se admite uso tradicional por população que não seja extrativista assim como não se admite uso que não seja tradicional por população extrativista. Uso tradicional são o extrativismo (definido no art. 2º, XII, da Lei 9.985/2000) e complementarmente, agricultura de subsistência e criação de animais de pequeno porte.
Sustentabilidade qualificada: quando o SNUC estabelece que a exploração de recursos madeireiros neste tipo de unidade de conservação só se fará em bases sustentáveis, não está apenas reiterando o princípio do desenvolvimento sustentável acolhido na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente [10] (ECO-92 ou Rio-92) e que deve orientar toda a atividade econômica, nos termos da Constituição da República (art. 170, VI, e art. 225, caput). Se o uso dos recursos naturais na propriedade privada comum já deve ocorrer de forma sustentável, seria ilógico que a exigência do § 7º do art. 18 da Lei 9.985 estabelecesse idêntico regime para a utilização dos recursos naturais em uma unidade de conservação da natureza.
Com efeito, a intenção do legislador foi a de ressaltar que a base, ou seja, o alicerce do uso dos recursos naturais em reservas extrativistas é a sustentabilidade, o que, se é um objetivo a ser atingido nas atividades econômicas em bens privados, evidentemente (e infelizmente) ainda não é seu caráter preponderante. Ora, se o fundamento da utilização dos recursos é a sustentabilidade (conceito que deve ser interpretado em conjugação com o de tradicionalidade, até porque se trata de área destinada à preservação de um modo de vida próprio de populações tradicionais), não encontra amparo legal qualquer atividade econômica que se afaste desse princípio.
Em relação ao uso da madeira, vigem dois princípio, extraídos do § 7º: excepcionalidade e complementaridade (ou subsidiariedade).
Excepcionalidade: diz ainda o dispositivo legal em comento que a exploração dos recursos madeireiros só se fará em situações especiais, vale dizer, a exploração madeireira não deve se tornar atividade corriqueira, cotidiana, sob pena de desvirtuamento do instituto das reservas extrativistas, que não foram criadas com o objetivo de propiciar a exploração florestal (como no caso das Florestas Nacionais ou Estaduais). É claro que a restrição legal volta-se para atos de caráter comercial, não incidindo sobre o uso da própria comunidade, como para a construção das suas habitações, de pequenas embarcações e infra-estrutura básica da reserva.
Complementaridade ou subsidiariedade: ao final, o § 7º dispõe que a exploração dos recursos madeireiros é "complementar às demais atividades desenvolvidas na reserva extrativista", isto é, a exploração madeireira, não deve se constituir em atividade econômica primordial das populações tradicionais, mas sim ser exercida de modo complementar às demais atividades, o que equivale a dizer que a vida econômica das reservas extrativistas deverá centrar-se em outras atividades que não a madeireira, tais como extrativismo e coleta, pesca artesanal, agricultura de subsistência, artesanato, turismo e exploração dos conhecimentos tradicionais.
Estes princípios são essenciais para a manutenção do contrato de concessão real de uso previsto no art. 4º do Decreto 99.987/1990, pois o § 2º do referido artigo prevê a existência de cláusula de rescisão quando houver quaisquer danos ao meio ambiente.
2.5. Transfiguração cultural das populações tradicionais
Como já visto, o alicerce fundamental das reservas extrativistas é a interação positiva com o ambiente ou mesmo a baixa lesividade à biodiversidade decorrentes do modo de vida das populações tradicionais.
Ocorre que nenhuma sociedade humana encontra-se estagnada no tempo e no espaço. Inexoravelmente "as sociedades tradicionais evoluem" [11], pois algumas facilidades tornadas disponíveis na vida em sociedade submetem os indivíduos a novas necessidades das quais não podem nem querem livrar-se [12]. O ser humano aspira ao bem estar, sintetiza Edgar Morin [13].
Assim, com a finalidade de obter bens (geralmente de maior valor agregado que os seus), as populações tradicionais tendem a especializar-se "numa lógica de produção e de exportação intensivas e pouco diversificadas, vergando-se às necessidades" da sociedade urbana. Dessa forma, o rural assume função de troca, organizando-se os transportes de matérias-primas num sentido e de objetos transformados no outro. Este fluxo forçado de matéria/energia e a "de-diversificação" provocam a desestruturação do seu sistema socioeconômico [14].
Ao comentar a Lei do SNUC e a figura das reservas extrativistas, José Eduardo Ramos Rodrigues já frisava a preocupação com a viabilidade de uma categoria de unidade de conservação criada essencialmente a partir de experiências de um único grupo social que pratica uma única atividade econômica [15].
Darcy Ribeiro, ao analisar o fenômeno da transfiguração étnica experimentado por uma modalidade específica de populações tradicionais, os indígenas, em decorrência do contato com a sociedade ocidental, conclui pela existência de um processo inexorável de mudança cultural resultante das situações de interação com as frentes de expansão, processo cuja causa reside no poder da sociedade envolvente, que atua como "uma força irresistível de desintegração" [16].
Embora o antropólogo analise o resultado da interação entre os índios e uma sociedade envolvente, mutatis mutandi, o fenômeno é observável também com relação a outras populações tradicionais que, outrora relativamente isoladas, com contato apenas com pequenas cidades ou vilarejos e sem meios de comunicação, progressivamente têm acesso a cidades em crescimento, melhorias no transporte e nos meios de comunicação, tudo os colocando em contato com novos e mais valiosos bens de consumo.
Desse modo, parafraseando Darcy Ribeiro, para as populações tradicionais, a sociedade urbana envolvente está armadas de força suficiente para subjugá-las e para desagregar suas estruturas sócio-econômicas, a fim de engajar na mão-de-obra regional os integrantes dela desgarrados, e para compelir, mesmo aqueles que permaneçam apegados à comunidade tradicional, a se integrarem no sistema econômico capitalista [17]. Isto porque o poder deculturativo da sociedade urbana manifesta-se mais forte e dissimulado sob as práticas corriqueiras da economia de mercado e da sociedade de consumo, através da sutil escravidão do "efeito demonstração", fazendo com que o tradicional experimente a crescente necessidade de obter bens como, por exemplo, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, veículos, embarcações motorizadas, roupas, cosméticos, móveis e brinquedos.
O saber tradicional e sua pressuposta harmonia com a natureza, alicerce da estratégia legislativa de conservação das reservas extrativistas, dá lugar à assimilação dos valores econômicos da economia capitalista, adotando-se "atitudes racionalistas e competitivas nas relações intergrupais em prejuízo dos antigos sistemas de sanções e recompensas." [18]. Na lógica do mercado, as pessoas "são tratadas como coisas, valem pelo que produzem ou pelo que possuem" [19].
De fato, ao contrário dos índios, as populações tradicionais nunca se estruturaram para si, mas sempre como um proletariado externo posto a serviço de seu centro reitor, lhe fornecendo os bens de que necessitava, no caso específico dos seringueiros, o látex para fabricação da borracha, dos castanheiros, a coleta de castanha, dos caiçaras, a pesca, dentre outros exemplos. Sua função básica sempre foi, por isto, a de fornecimento de mão-de-obra ou de bens naturais.
Com o desmantelamento do comércio da borracha e de outras atividades tradicionais, somado à condições externas como a escassez de madeira no contexto amazônico, as populações tradicionais são instadas cada vez mais a participar da economia regional (que lhe oferece cada vez mais e mais valiosos bens de consumo), e seu sistema de provimento de subsistência – outrora ambientalmente sustentável – desorganiza-se, aumentando cada vez mais sua dependência em relação à sociedade externa. Em outras palavras, não se trata de colher látex e castanhas para possibilitar a aquisição de alimentos não perecíveis industrializados, mas sim para adquirir, por exemplo, eletroeletrônicos hoje tidos como essenciais, o que se fará através da alienação dos recursos naturais existentes nas unidades de conservação.
Necessitando produzir bens de que necessite a sociedade externa, no aspecto econômico o tradicional se engaja na economia agropastoril, seja criando seu pequeno rebanho bovino, seja arrendando suas terras para pecuaristas, seja oferecendo-se como mão-de-obra para aqueles, ressaltando-se que nos dois primeiros exemplos desmata, se preciso for, os espaços necessários. Estas atividades, juntamente com as madeireiras, provocam progressivas (e agressivas) transformações na paisagem, criando condições econômicas e ecológicas novas em que o sistema adaptativo tradicional se torna inoperante e ambientalmente insustentável.
Ora, o sistema adaptativo é justamente o alicerce da sustentabilidade ambiental, consistente na reposição da matéria/energia retirada do meio através do uso de recursos naturais. Os novos métodos de uso dos recursos operam de acordo com técnicas e procedimentos prescritos no exterior, absolutamente incompatíveis com os requisitos de tradicionalidade, sustentabilidade e complementaridade (em relação ao uso de recursos madeireiros).
2.6. Situação atual
O contexto observado atualmente nas reservas extrativistas é de crise do modelo tradicional de vida. Conforme diagnosticado pelo WWF-Brasil, atualmente as associações representantes dos extrativistas, têm orientado sua estratégia de atuação nas reservas extrativistas para o desenvolvimento de experiências de geração de renda baseadas no manejo florestal de recursos madeireiros. Esta atividade econômica, conforme objetivos de criação da reserva, deveria ser complementar as demais atividades extrativistas tradicionais. Tendo em vista a atual crise econômica por que passa o movimento extrativista, muito em função dos baixos preços da borracha e da castanha, a madeira tem sido prioritariamente o principal produto explorado em algumas reservas [20].
Conforme aponta Georgheton Melo Nogueira, assiste-se na atualidade à mercantilização da visão sobre a Natureza por parte dos povos que nela vivem. "É o mundo e toda a sua diversidade reduzido à realidade do mercado", anota o economista, que, ao indagar em reunião de extrativistas em qual atividade investiriam os recursos oriundos da venda de madeira extraída da reserva, recebeu como resposta majoritária que isto ocorreria na criação de bovinos [21], concluindo acertadamente que "a extração da madeira é vista pelos manejadores comunitários como uma forma de capitalização suficientemente capaz de engendrar outras atividades, geralmente determinadas pela afinidade e pelas expectativas de retorno" [22].
Mercantilização da sociedade mundial, globalização e rompimento de barreiras através da melhoria dos meios de comunicação, expansão desenfreada das fronteiras de povoamento, ausência de políticas públicas efetivas, enfim, inúmeras são as causas para o contexto de ampla transfiguração cultural das populações tradicionais, o que inevitavelmente acarreta alterações sobre os usos dos recursos naturais e, por sua vez, consequências jurídicas decorrentes da violação das normas do SNUC.