Sumário: Introdução; 1. As uniões homoafetivas como entidades familiares; 12 A proteção constitucional da homoafetividade; 3 A analogia com a união estável; 4. A parentalidade homoafetiva e o afeto como valor jurídico; 5. Breves considerações sobre o instituto da guarda; 6. A guarda compartilhada e sua possibilidade de aplicação às famílias homoafetivas; Considerações finais; Referências
Introdução
Constitui fato assente que a homossexualidade existe desde as épocas mais remotas da Humanidade. Na Grécia antiga, era aceita e respeitada, na Roma antiga tolerada. Com o passar dos tempos, das modificações dos costumes e dos chamados códigos sociais, passou a ser rechaçada.
Amplamente estudada pelas ciências sociais, assim como as ciências biológicas e de saúde, a homossexualidade progrediu de um conceito de enfermidade, doença, para uma caracterização de um modo de ser distinto da maioria. Os primeiros estudos da Era atual datam do século XIX.
Toda temática relativa à sexualidade parece ser revestida de uma certa "aura de silêncio" [01], provocando intensas inquietações e uma quase insaciável curiosidade. Acaba por existir a propensão de conduzir e de controlar o exercício da sexualidade, culminando com a tentação de a sociedade enxergar a moral puramente em termos de comportamento sexual. Note-se, porém, que a homossexualidade é atualmente, por muitos, vislumbrada como uma parte da personalidade de alguém, algo inerente à sua pessoa. [02] A identidade sexual deve ser vista como uma chave central para o livre desenvolvimento da personalidade humana e a orientação sexual não é um problema de escolha, opção, mas algo que está nas "profundas raízes da sexualidade humana". [03]
Como já referido anteriormente, os relacionamentos homoafetivos sempre existiram e, dia após dia, demandam soluções judiciais. Os cientistas, estudiosos e operadores do Direito não podem ficar alheios a este fato social, que em boa parte dos ordenamentos existentes não está juridicamente tutelado. Mas note-se que, via de regra, o fato social antecede a lei.
Coerente com essa idéia, é o fato de se poder afirmar que as uniões homoafetivas constituem um núcleo familiar e, como tal, fazem emergir reflexos jurídicos de toda sorte. Seja pela constituição (ou desejo de constituição) da união, seja pelo seu término, seja pela parentalidade exercida por um ou ambos do par, os efeitos jurídicos são infindáveis e nem sempre tutelados da forma adequada. O Judiciário, em especial o brasileiro, em virtude da falta de regulação normativa, não pode seguir oferecendo "respostas mortas a perguntas vivas" [04], afastando-se do Direito justo, cingindo-se a formalismos e desconhecendo a realidade social subjacente.
Não estando expressamente previstas dentro do âmbito de aplicação dos dispositivos da guarda compartilhada – que fazem menção apenas a "pai" e "mãe" –, estarão as famílias homoafetivas impossibilitadas de se socorrem deste tipo de convivência famíliar pós-ruptura?
1.As uniões homoafetivas como entidades familiares
O "rol familiar" constante da Lex Fundamentalis brasileira não é exaustivo, tampouco numerus clausus. O legislador se limitou a citar expressamente as hipóteses mais usuais, como a família monoparental e a união estável entre homem e mulher. Todavia, a tônica da proteção não se encontra mais no matrimônio, mas sim na família. [05] O afeto terminou por ser inserido no âmbito de proteção jurídica. Como afirma Zeno Veloso, "num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito". [06]
Desta forma, mais uma vez, deve-se dizer que o panorama constitucional não deve ser tido como taxativo, mas sim exemplificativo. Assim, o caput do art. 226 da Carta Magna brasileira deve ser vislumbrado como cláusula geral de inclusão, devendo-se impedir a exclusão de qualquer entidade que ateste os pressupostos de ostensibilidade, estabilidade e afetividade. [07]
Para além disso, o Direito das Famílias possui o escopo primordial de proteger toda e qualquer família. As uniões homoafetivas, para além de não serem proibidas no ordenamento brasileiro, estão consagradas dentro do conceito de entidade familiar, por lei infraconstitucional, como observar-se-á adiante.
A família, base da sociedade, deve ser compreendida a partir de um novo tecido normativo, permeado por valores mais éticos e harmonizado com a realidade que deve regulamentar. É a família do afeto, que exalta os valores existenciais dos indivíduos.
A Lei Maria da Penha [08], expressamente, alberga no conceito de família as uniões entre pessoas do mesmo sexo. Em seu art. 2º está disposto que, "toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social".
O parágrafo único do art. 5º [09] da referida lei faz a explícita menção de que as relações pessoais e as situações que configuram violência familiar e doméstica independem da orientação sexual das pessoas envolvidas. Assim, como é garantida proteção legal a fatos que se dão dentro do ambiente doméstico, depreende-se que as uniões homoafetivas são entidades familiares. Violência doméstica, como a própria terminologia diz, é violência que ocorre no seio de uma família. Destarte, a Lei Maria da Penha estendeu o conceito de família, atingindo as uniões homoafetivas. [10]
Ao ser determinado que está sob o amparo da normativa a mulher, sem distinção em relação à sua orientação sexual, encontra-se garantida a proteção tanto às homossexuais do sexo feminino, como às travestis, às transexuais e aos transgêneros do sexo feminino que sejam partícipes de um relacionamento íntimo, baseado no afeto, em ambiente de convívio ou familiar. [11]
Pode-se concluir, portanto, que a LMP, considerada um "marco inovador" [12], introduziu no sistema jurídico brasileiro um novo conceito de família, que enlaça as uniões homoafetivas. Vale ressaltar que, em nome do princípio da isonomia, as relações entre dois homens também devem ser consideradas entidade familiar. [13] E, por fim, pode-se afirmar que descabe a deteriorada alegação de lacuna legislativa nesse sentido.
2.A proteção constitucional da homoafetividade
Um Estado que se denomina Democrático de Direito deve abster-se do desrespeito aos seus princípios, devendo a Carta Magna assegurar a realização das garantias, direitos e liberdades fundamentais. Foi a Lei Fundamental da Alemanha a que primeiro consagrou a dignidade da pessoa humana como direito fundamental expressamente estabelecido. [14]
O art. 1º da Carta Magna brasileira reza que "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; (...)".
A noção de dignidade da pessoa humana abrange o núcleo existencial que é essencialmente comum a todos os seres do gênero humano. Impõe-se, no que tange à dimensão pessoal da dignidade, um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade, sendo inadimissível qualquer procedimento, comportamento ou atividade que "coisifique" o indivíduo. [15]
Pode-se afirmar que o princípio da dignidade humana é, hodiernamente, uma das bases de sustentação dos ordenamentos jurídicos modernos. [16] É impraticável pensar-se em direitos desconectados do conceito e da idéia de dignidade. Afirma-se na doutrina que "a dignidade é o pressuposto da idéia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento". [17]
Ademais, o princípio da dignidade da pessoa humana possui como essência basilar a idéia de que o indivíduo é um fim em si mesmo. É imperioso ressaltar novamente que ele não deve ser instrumentalizado, coisificado ou descartado em virtude dos caracteres que lhe concedem individualidade e estampam sua dinâmica pessoal. O ser humano, em função da sua dignidade, não pode ser vislumbrado como meio para outros fins. [18]
Como bem afirma Kant, com a sua doutrina racionalista, "no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade". [19] Complementa ainda Jorge Miranda [20] que a Constituição repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz do indivíduo fundamento e fim do Estado e da Sociedade.
Na estruturação da individualidade de uma pessoa, a sexualidade consubstancia uma medida basilar da constituição da subjetividade, sustentáculo imprescindível para a capacidade do livre desenvolvimento da personalidade. Portanto, pode-se afirmar que as questões concernentes à orientação sexual relacionam-se de forma estreita com o amparo da dignidade da pessoa humana.
A problemática emerge, via de regra, nomeadamente em relação à homossexualidade, tendo em vista o "caráter heterossexista e mesmo homofóbico que caracteriza quase a totalidade das complexas sociedades contemporâneas". [21]
Sequer considerar a possibilidade de prejuízo, desprezo ou desacato a uma pessoa, em virtude da sua orientação sexual, seria conferir tratamento indigno à pessoa humana. Não se deve, sob hipótese alguma, simplesmente ignorar a condição pessoal do indivíduo, genuinamente essencial para a sua identidade pessoal (onde se deve incluir a orientação sexual), como se tal seara não possuísse conexão com a dignidade humana. [22]
Passando-se para outro plano de proteção constitucional, pode-se afirmar que o princípio da liberdade individual se consubstancia, hodiernamente, em uma perspectiva de privacidade, de intimidade, de livre exercício da vida privada. Liberdade se traduz, cada vez mais, na idéia de poder realizar, sem intervenção de qualquer natureza, as próprias escolhas individuais, o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor convier. Na feliz assertiva de Paulo Dourado de Gusmão, "o homem é, por essência, liberdade". [23]
No âmbito do presente estudo, o princípio da liberdade pode ser traduzido no livre poder de escolha ou autonomia no ato de constituir, realizar ou extinguir entidade familiar, sem coerção ou imiscuição de parentes, da sociedade ou do próprio legislador. Também pode ser vislumbrado como a liberdade de ação, baseada no respeito à integridade moral, mental e física.
Neste campo específico da homoafetividade, pode-se afirmar que o princípio da liberdade se faz presente no sentido de que toda e qualquer pessoa possui a prerrogativa de escolher o seu par, independentemente do sexo, assim como o tipo de entidade familiar que deseja constituir. Nas palavras de Maria Berenice Dias, "em face do primado da liberdade, é assegurado o direito de constituir uma relação conjugal, uma união estável hetero ou homossexual. Há a liberdade de extinguir ou dissolver o casamento e a união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio". [24]
Por fim, é de se afirmar que o princípio da liberdade diz respeito não somente à criação, manutenção e extinção dos arranjos familiares, mas à sua permanente constituição e reinvenção. [25] Uma vez que a família se desconectou das suas funções tradicionalistas, é desarrazoada a idéia de que ao Estado interesse regular deveres que restringem profundamente a liberdade, a intimidade e a vida privada dos indivíduos, quando não existe repercussão no interesse geral. [26]
Visceralmente ligado ao princípio da liberdade, está o principío da igualdade, uma vez que só existe liberdade se existir, em concomitância e igual proporção, isonomia."Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade". [27]
Vale ressaltar que tal tratamento diferenciado só poderá existir na ocorrência de uma fundamentação racional que o justifique. Na falta de fundamentação válida ou no caso de esta ser insuficiente, é de se entender que, em virtude da igualdade, deve se aplicar o mesmo regime jurídico a todas as situações.
O princípio da isonomia está consagrado na Carta Constitucional brasileira como em tantas outras. Pode-se afirmar que qualquer diferenciação pretendida deve estar bem fundamentada e possuir uma lógica e uma racionalidade compatíveis com os cânones instituídos na Carta Magna. Apartando-se desses pressupostos, qualquer discriminação ou diferenciação de tratamento poderá ser considerada inconstitucional. [28]
Vale ressaltar que, na ocorrência de lacunas na lei, o reconhecimento de direitos deve ser garantido por meio da analogia, cujo esteio se encontra justamente no princípio da igualdade. [29]
A determinação do tratamento jurídico igualitário entre heterossexuais e homossexuais, traduz-se na transformação da igualdade formal, da tolerância ao respeito à diversidade; do juízo de direito de minorias para a igualdade de direitos de todos os cidadãos de uma sociedade. [30]
Não obstante a inexistência na Carta Magna brasileira (diferentemente de outras, como a portuguesa, por exemplo) [31] de dispositivo que expressamente vede a discriminação por orientação sexual, tal hipótese pode ser apanhada pela vedação de discriminação em razão do sexo, ao passo que ambas hipóteses dizem respeito ao âmbito da sexualidade.
É possível apontar que a discriminação por orientação sexual configura uma hipótese de diferenciação baseada no sexo do indivíduo para quem alguém endereça seu afeto, uma vez que a caracterização de uma ou outra orientação sexual é resultado da combinação dos sexos daqueles envolvidos no relacionamento. [32]
É mister relembrar que a falta de expressa previsão na Carta Magna brasileira não configura óbice para o reconhecimento da vedação à discriminação por orientação sexual, uma vez que a parte final do art. 3º, IV, da Lei Maior expressamente prevê a proibição de "quaisquer outras formas de discriminação", além das elencadas.
Ademais, torna-se imperioso salientar que as vedações de diferenciação possuem seu esteio no enunciado geral do princípio da isonomia. Não se pode sustentar a obrigatoriedade da expressa enunciação da vedação à discriminação. Por fim, pode-se dizer que é equivocado o juízo que sustenta a taxatividade dos critérios proibitivos de diferenciação. [33]
Avançando-se um pouco mais, pode-se dizer que a pluralidade de formas de constituir família simboliza uma grande ruptura com o modelo único familiar, instituído pelo matrimônio. Aceitar que outras formas de vínculos merecem igualitariamente a proteção jurídica, origina o reconhecimento do princípio do pluralismo e da liberdade que personifica a sociedade hodierna. [34]
Emana da CF de 1988, através do seu art. 226 – que deve ser tido como um dispositivo exemplificativo e de inclusão – a base para a aplicabilidade do princípio da pluralidade de família. Também deve se ter em conta o respeito aos princípios da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana. Desta forma, diante da interpretação constitucional e da aplicação do princípio da pluralidade das formas de família, é mister que seja tutelada todo grupo que, pelo vínculo afetivo, se apresente como família. Tal princípio deve ser vislumbrado, portanto, como o reconhecimento estatal da existência de várias possibilidades de arranjos familiares, entre os quais se apresenta a família homoafetiva.
O princípio da pluralidade familiar se desdobra no princípio da igualdade das entidades e no princípio da liberdade de escolha, podendo ainda ser apontado como uma das formas de materialização do princípio da dignidade da pessoa humana. Como adverte Paulo Lôbo, "consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua dignidade existencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e a mais adequada". [35] Destarte, a liberdade do núcleo familiar deve ser vislumbrada como liberdade do indivíduo de constituir a família de acordo com a sua própria opção e como liberdade de nela desenvolver a sua personalidade.
3.A analogia com a união estável
Como já referido, o Direito deve acompanhar o momento vivido pela sociedade. Observando-se os momentos históricos da Humanidade, pode-se dizer que o fato social antecede o jurídico, e a jurisprudência precede a lei. No caso da omissão legislativa, deve o julgador procurar as respostas em outras relações jurídicas, cujas circunstâncias de fato apresentem semelhança com a situação do caso concreto. Como já diria Carlos Maximiliano, "força é adaptar o Direito e esse mundo novo aos fenômenos sociais e econômicos em transformação constante, sob pena de não ser efetivamente justo – das richtige Recht, na expressão feliz dos tudescos". [36] E a analogia pode muito bem ser um instrumento valioso para o vazio legislativo existente, o já mencionado fosso assombroso que existe entre o mundo jurídico e a realidade.
Dentre todos os institutos que se encontram normatizados no ordenamento jurídico brasileiro, é indubitável a semelhança entre a união homoafetiva e a união estável. A doutrina majoritária, assim como boa parte da jurisprudência [37], vai pelo caminho de aplicar a normativa relativa à união estável às uniões homoafetivas, por analogia. Entretanto, a contrario sensu, há quem entenda existir impossibilidade de tratamento analógico da questão, argumentando que a lei não é omissa, em virtude do art. 226, § 3º da Constituição Federal estabelecer que: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".
Essa corrente doutrinária socorre-se de vários argumentos. Indubitavelmente, o mais utilizado diz respeito à dualidade de sexo supostamente exigida pela Carta Magna, para caracterização da união estável. [38] Todavia, se tal entendimento prosperasse, [39] oriundo de uma leitura autônoma e desconectada dos mandamentos constitucionais [40], poder-se-ia afirmar que estaria em causa a problemática das normas constitucionais inconstitucionais, teoria criada por Otto Bachof. [41] Sobre a questão, assevera o jurista português Jorge Bacelar Gouveia que são inconstitucionais "as normas constitucionais que coloquem em questão o âmbito de eficácia de outra normas constitucionais que reflictam directamente considerações axiológicas supra-positivas". [42] Entretanto esta teoria não possui aplicabilidade no Brasil.
Assim, na situação em causa, ocorre incompatibilidade entre normas constitucionais, nomeadamente entre o disposto no art. 226, § 3º e os princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, entre outros. Essa "tensão" é denominada de conflito aparente [43], em virtude da presunção de que todas as normas constitucionais emanadas do Poder Constituinte Originário são compatíveis entre si. E em virtude do princípio da unidade da Constituição e do entendimento de que os "choques" entre as normas constitucionais em questão são aparentes, a idéia é promover uma harmonização do texto, através da interpretação do "conjunto da obra". [44] As ferramentas? Analogia ou interpretação extensiva. Desta forma, entendendo-se ou não a dualidade de sexos como requisito para configuração da união estável, a analogia ou a interpretação extensiva serão sempre cabíveis.
Há ainda quem defenda que na ocorrência desse conflito "aparente" entre uma norma constitucional (art. 226, § 3º) e os princípios que a norteiam (dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade, etc.), por uma questão de razoabilidade e coerência, desde que a norma constitucional se evidencie contrária a um princípio constitucional, há-de haver prevalência do princípio. [45] Ademais, como já referia há tempos Norberto Bobbio, é lícito integrar uma "norma deficiente" [46], socorrendo-se do denominado "espírito do sistema, mesmo indo de encontro àquilo que resultaria de uma interpretação meramente literal". [47]
Pode-se ainda suscitar a idéia de que existe um desajuste entre a letra da norma e o "espírito" da mesma, ou seja, entre a vontade expressa e a vontade presumida do legislador, no sentido de que a formulação da norma em questão não abarca todos os casos que o legislador intentava disciplinar. [48]
Seja pelo juízo de existência de conflito aparente das normas, seja pela idéia de que houve omissão legislativa, qualquer entendimento leva ao mesmo caminho. A aplicação da normativa referente à união estável será possível. [49]
Retirando-se o requisito da dualidade de sexo dos conviventes na união estável, não haveria disparidade alguma entre os relacionamentos heterossexuais e homoafetivos. Como bem se adverte na doutrina, ambos são vínculos que têm sua origem no afeto, havendo identidade de propósitos, qual seja a concretização do ideal de felicidade de cada um. [50] Destarte, se dois indivíduos possuem vida em comum, fundada na assistência mútua, cuja característica principal do convívio é o amor e o respeito, além do objetivo de constituir família, a identidade de sexos dos parceiros não pode constituir óbice para a outorga de direitos e obrigações recíprocas. A notoriedade, a publicidade, a coabitação, o respeito mútuo são sinais patentes de uma verdadeira comunhão de afetos. [51]
Assim, é fundamentadamente propositado o juízo de que, na falta de lei especifica, deve ser aplicada analogicamente às uniões homoafetivas a normativa relativa à união estável, em respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia, além dos princípios gerais de Direito.