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A Receita Federal e seus cartórios cibernéticos (IN SRF 156/99)

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Agenda 01/06/2000 às 00:00

IV.- A IN SRF 156/99 e o Princípio da Impessoalidade

Outra inconstitucionalidade que se aponta nesta análise superficial é a da ofensa ao Princípio da Impessoalidade, assegurado no artigo 37 da Constituição Federal. E isto em razão do parágrafo único do artigo 5º. da IN que define como prioritários os usuários de Certificados Eletrônicos nos serviços oferecidos pela SRF por meio da Internet. Vale dizer que para acessar os serviços da SRF os usuários de Certificados Eletrônicos terão melhor atendimento que os demais ou, "contrario sensu", aqueles que não desejarem Certificados Eletrônicos para suas relações com a SRF não terão os mesmos serviços que os outros usuários que possuem os Certificados Eletrônicos terão.

A utilização da assinatura digital é um mecanismo de segurança na transmissão e recepção de dados, para que se evite a fraude da falsificação documental ou ideológica. Os Certificados Eletrônicos identificam os emissores dos documentos.

Os documentos em papel também encontram os mesmos problemas de fraude e falsificação. O reconhecimento de assinatura em cartório identifica aquele que assinou o documento. No entanto, para estes, não há obrigatoriedade de se autenticar documentos ou reconhecer assinaturas quando são apresentados e entregues na SRF. O Decreto Presidencial no. 63.166 de 28.08.1968 dispensa a "exigência de reconhecimento de firma em qualquer documento produzido do País quando apresentado para fazer prova perante repartições e entidades públicas federais da administração direta e indireta.

O preâmbulo do Decreto merece reprodução, dada sua eficiente simplicidade lógica :

          O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , no uso da atribuição que lhe confere o artigo 83, item II, da Constituição e tendo em vista o disposto no Decreto-lei número 200, de 25 de fevereiro de 1967;

CONSIDERANDO a necessidade de racionalizar o funcionamento do serviço público dispensando exigências puramente formais;

CONSIDERANDO que a falsidade documental e o estelionato, em todos seus aspectos, constituem crime de ação pública punível na forma do Código Penal; pelo que se torna dispensável qualquer precaução administrativa que, a seu turno, não elide a ação penal,

Para tanto, vale o esclarecimento de Gustavo Testa Correa, em seu artigo "Responsabilidade na Internet", publicado na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, de 26.12.1998 - http://cf6.uol.com.br/consultor/arti.cfm?numero=903 - quando discorre sobre o crime de pedofilia cometido na Internet:

          No caso em tela não há dúvida de que houve crime, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 241 nos ensina, "(...) fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: pena - reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos".

O usuário utilizou o provedor de Internet como um meio para que consumasse a conduta acima tipificada, da mesma forma que um homicida pode se utilizar de um revólver para consumar o delito.

Estamos diante de um crime digital, caracterizado pela utilização de computadores para ajuda em atividades ilegais, como a quebra da segurança de sistemas, a utilização da Internet ou redes bancárias de maneira ilícita, o crime de "hacking", ..., etc., onde determinado agente, agraciado pelo anonimato e as técnicas de criptografia proporcionadas pela Internet, disseminou material pedófilo dentro de uma comunidade virtual, que não tinha relação alguma com o provedor de Internet.

A maioria dos crimes digitais, como o acima citado, encontra-se positivada em nossa legislação. O furto de componentes de computador, não deixa de ser furto. A lavagem de dinheiro, não deixa de ser um crime. Fraude é fraude. Extorsão é extorsão. Sejam esses crimes cometidos através da Internet, ou de outros mecanismos tradicionais, são eles crimes previstos na "lege".

Os mesmos mecanismos legais para reprimir os crimes cometidos com documentos em papel podem ser aproveitados para os crimes eletrônicos. Do fato da desoneração legal, por via de Decreto Presidencial, da obrigação de reconhecimento de firma, em documentos apresentados em repartições públicas, e da utilização de Certificados Eletrônicos expressamente vir a privilegiar usuários dos serviços da Receita Federal na Internet, configura-se uma situação de diferenciação entre usuários, com requintes da IN SRF 156/99 contrariar expressamente o Decreto Presidencial.

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É de se esperar da SRF que somente usuários com Declaração de Autenticidade possam doravante declarar imposto pela Internet e, neste ponto, vale trazer a baila à informação relevante do público a ser atingido por esta IN, publicada na Revista Veja, Edição Especial Veja Digital, Editora Abril, de dezembro de 1999, na matéria "Brasil em Dois Tempos", de Christian Schwartz, página 52: "Em 1997 tudo começou a mudar. Foi quando a Receita passou a aceitar a remessa das declarações via internet. O resultado no primeiro ano surpreendeu: os usuários do novo sistema ultrapassaram os 700 000. Os responsáveis pelo Leão on line não previram o que os aguardava nos dois anos seguintes. Em 1998, 4,5 milhões de contribuintes mandaram a declaração eletronicamente. Neste ano, mais de 11 milhões de declarações seguiram via internet, o equivalente a 62% do total." Trata-se de um potencial mercado contratante para empresas privadas com Autoridade Certificadora.

Esta diferenciação é o cerne da ofensa ao princípio da Impessoalidade. Entende-se por Impessoalidade, no saber de Hely Lopes Meirelles, in Direito Administrativo Brasileiro, 17ª. edição, página 86, Malheiros, o objetivo certo e inafastável do interesse público:

          "Impessoalidade - ...princípio da finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público. Todo ato que se apartar desse objetivo sujeitar-se-á a invalidação por desvio de finalidade, que a nossa lei de Ação Popular conceituou como fim diverso daquele previsto, explicita ou implicitamente, na regra de competência do agente.

....... Pode, entretanto, o interesse público coincidir com o de particulares, como ocorre normalmente nos atos administrativos negociais e nos contratos públicos, caso em que é lícito conjugar a pretensão do particular com o interesse coletivo.

O que o princípio da finalidade veda é a prática de ato administrativo sem interesse público.... ".

Celso Antonio Bandeira de Mello, in Curso de Direito Administrativo, 12ª. edição, Malheiros, página 84, é menos contido ao definir tal princípio em sua admirável explanação:

          "Nele se traduz a idéia de que a administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos, nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio Princípio da Igualdade ou isonomia."


V.- A Moralidade "versus" a Modernidade

O parágrafo terceiro do artigo 236 da Constituição Federal, acima reproduzido, expressamente determina que "o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos". A Autoridade Certificadora da IN SRF 156/99 não é nada mais do que um Notário Cibernético ou Cibernotário, como apontado por Ângela Bittencourt Brasil, na reprodução acima de trecho de seu artigo.

Do fato da IN SRF 156/99 dar valor jurídico aos documentos eletrônicos equivalente daqueles em papel, artigo 3º., extrai-se um reconhecimento tácito de que a Autoridade Certificadora exerce atividades notariais, com a diferença de não se ver obrigada a ser submetida a Concurso Público para prestar serviços de autenticação de documentos à SRF. As responsabilidades de autenticação de documentos e assinatura, independentemente do meio material que se realize, impõe ao seu responsável que seja pessoa idônea e competente. Impõe também que dentre todos aqueles que se habilitaram sejam escolhidas as melhores pessoas, por um certame idôneo.

Note-se, a guisa de exemplo, que na Lei no. 7.444 de 20.12.1985, que trata de regulamentar o uso de processamento eletrônico de dados no alistamento eleitoral, a contratação dos serviços, contratos e convênios fica restrita a entes estatais ou de capital exclusivamente nacional (artigo 7º.).

          "Art . 7 º - A Justiça Eleitoral executará os serviços previstos nesta Lei, atendidas as condições e peculiaridades locais, diretamente ou mediante convênio ou contrato.

Parágrafo único - Os convênios ou contratos de que cuida este artigo somente poderão ser ajustados com entidades da Administração Direta ou Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou com empresas cujo capital seja exclusivamente nacional.

Obviamente que não se trata de um debate xenófobo, mas, nas condições da IN SRF 156/99 é possível a qualquer empresa no Brasil, com controle de capital nacional ou estrangeiro, habilitar-se à concessão de Autoridade Certificadora, desde que constituída sob as leis brasileiras e domiciliadas no País. A falta de uma legislação mais elaborada sobre a matéria resulta em riscos, principalmente para se evitar a quebra do sigilo fiscal, a formação de monopólio ou de "cartórios" (no seu significado conotativo) de Autoridades Certificadoras.

Não se pode olvidar que na IN SRF 156/99, compete à Autoridade Certificadora em caso de comprometimento de segurança de sua chave privada solicitar revogação do certificado de credenciamento (artigo 11., inciso IV) e restringir a solicitação de informações aos usuários de dados necessários para o processo de certificação (artigo 11., inciso VI). É também requisito que ela disponibilize nos equipamentos servidores somente serviços indispensáveis à operação de certificação, de modo a reduzir vulnerabilidades dos sistemas.

Tratando-se de norma administrativa, sem o crivo do debate típico da Casa das Leis – Parlamento – afere-se que pouco se dedicou a IN SRF 156/99 para assegurar fiscalização às Autoridades Certificadoras, a exemplo do que efetivamente ocorre com os Tabeliões e os órgãos de Corregedoria Judiciária.


VI.- Foro de Eleição

Por fim, outra irregularidade é a da determinação do foro do local da Autoridade Certificadora (artigo 23) para dirimir questões entre estas e os usuários dos certificados. Esta previsão beneficia a Autoridade Certificadora em prejuízo da União Federal e dos contribuintes/usuários e contraria o Código de Processo Civil, que é o diploma legal que regula as competências jurisdicionais. Não se permite maiores discussões acerca do tema. Este artigo é totalmente ilegal.

Houve o deslocamento da competência do Foro que, normalmente, em havendo conflitos entre os contribuintes e a União Federal, é o da Justiça Federal da jurisdição do domicílio do usuário/contribuinte. No presente caso, é de se conceber que o Cibernotário deva entrar na relação jurídico processual no mesmo pólo que o da União Federal, com ressalvas para os casos em que houver conflito entre ambas. A autenticidade do documento é ato que existe em função da relação SRF – contribuinte e não é uma relação autônoma com o usuário. No mais, se assim não o for, o Código de Processo Civil regula na espécie a competência jurisdicional de cada conflito.


VII.- Conclusão

Pelo acima exposto entendemos, s.m.j., que a IN SRF 156/99 contraria os artigos 37 e 236 da Constituição Federal, a Lei no. 8.935/94 e o Decreto no. 63.166 de 28.08.1968.

Tratando-se de questão de ordem pública, qualquer do povo, no gozo de seus direitos políticos poderá ajuizar Ação Popular visando a suspensão desta norma administrativa. Poderá também ser representado ao Ministério Público Federal para que este tome as medidas judiciais que julgar cabíveis, vez que lhe recai competência e legitimidade por sua função institucional.

Por fim, uma reflexão que se impõe fazer, posto que os efeitos desta instrução normativa atingem um grande contingente de pessoas e interesses públicos e privados. Se verificada a validade dos comandos normativos desta IN SRF 156/99 – no que de positivo poder-se-ia abstrair quanto à aquisição de segurança no transporte pela rede mundial de computadores Internet, das informações privilegiadas pelo sigilo fiscal – não se pode olvidar do risco de um questionamento judicial em massa contrário às impugnações que a Receita Federal tenha realizado sobre declarações de ajuste do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas – enviadas pela Internet - nos exercícios a partir de 1997.

Afinal, desde então, e até a presente data, tais declarações não tinham e nem tem validade jurídica. Assim, também, aquele usuário que deixou de declarar, aquele que declarou mas omitiu informações e, até, aquele que alega que declarou mas não o fez, todos poderão alegar que o início da aplicação da IN SRF 156/99 será um divisor de águas, e o que estiver antes dele não terá a validade jurídica do seu artigo 3º.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELLO, Eduardo Piza Gomes. A Receita Federal e seus cartórios cibernéticos (IN SRF 156/99). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1804. Acesso em: 17 nov. 2024.

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