1 Introdução
O presente artigo originou-se de mandado de segurança por nós impetrado em favor de bacharel em Direito que prestou o Exame de Ordem 2010.2, aplicado pela Fundação Getúlio Vargas. O fato controvertido foi o gabarito da questão que segue:
No âmbito do Poder discricionário da Administração Pública, não se admite que o agente público administrativo exerça o Poder discricionário:
(A) quando estiver diante de conceitos legais e jurídicos parcialmente indeterminados, que se tornam determinados à luz do caso concreto e à luz das circunstâncias de fato.
(B) quando estiver diante de conceitos legais e jurídicos técnicocientíficos, sendo, neste caso, limitado às escolhas técnicas, por óbvio possíveis.
(C) quando estiver diante de conceitos valorativos estabelecidos pela lei, que dependem de concretização pelas escolhas do agente, considerados o momento histórico e social.
(D) em situações em que a redação da Lei se encontra insatisfatória ou ultrapassada.
Conforme se denota, tratava a questão de poder administrativo discricionário. Fomos procurados por cliente que logrou acertar 49 questões das 50 obrigatórias para prestar a segunda fase do Exame de Ordem 2010.2. Segundo nos pareceu, tal questão veiculava mais de uma resposta correta, sendo, portanto passível de anulação por via judicial ou administrativa. Em caso de anulação da referida questão o bacharel estaria apto a se submeter à segunda fase.
Mesmo sabendo que era uma questão delicada e que existe muita controvérsia em sede judicial sobre a anulação de questões de concurso público/exame de ordem ajuizamos mandado de segurança após a denegação de nosso recurso de natureza administrativa. Baseado nos argumentos utilizados no writ, entendemos oportuno escrever artigo abrangendo o tema e aplicando-o ao caso concreto vivenciado.
2 Poder Discricionário e Vinculado
Conforme é notório, o legislador possui barreira fática instransponível na regulação legal de toda atividade administrativa, primeiro pela complexidade e dinamicidade do exercício desse conjunto de atribuições, como também por não ser sequer desejável que a administração não possua relativa liberdade em sua atuação. Isto porque o administrador, via de rega, está mais próximo das necessidades sociais do que o legislador.
Dessa forma, o legislador concede grau de liberdade ao administrador para avaliar a oportunidade e conveniência da prática de certos atos. Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles [01]:
Essa liberdade funda-se na consideração de que só o administrador, em contato com a realidade, está em condições de apreciar os motivos ocorrentes de oportunidade e conveniência da prática de certos atos, que seria impossível ao legislador, dispondo na regra jurídica – lei – de maneira geral e abstrata, prover com justiça e acerto. Só os órgãos executivos é que estão, em muitos casos, em condições de sentir e decidir administrativamente o que convém e o que não convém ao interesse coletivo.
Assim, podemos acentuar marcante característica do poder discricionário como sendo aquele exercido quando a lei não prescreve ao administrador único comportamento possível, mas sim, pelo menos duas possibilidades lícitas, de acordo com avaliação subjetiva [02]. Portanto, estaremos diante de mais de uma decisão juridicamente válida do administrador diante do mesmo caso concreto.
Em oposição ao poder discricionário há o poder vinculado. O exercício deste poder decorre de minucioso regramento do legislador acerca de certo tema. Nesse caso, diante da situação legal prevista, o administrador somente poderá adotar a conduta prescrita em lei, sob pena de vício de legalidade do ato.
Assim, quando um particular cumpre os requisitos específicos de uma lei e estamos diante de hipótese de poder vinculado, podemos dizer que este tem direito subjetivo [03] à edição do ato em conformidade com a lei, sem possibilidade de avaliação subjetiva do administrador sobre a oportunidade e conveniência de proferi-lo.
Não obstante ser corriqueira tal nomenclatura, registramos a advertência de Carvalho Filho [04], alertando para o fato de que o "poder" vinculado na verdade não reflete qualquer prerrogativa ou poder, mas sim a imposição do legislador ao administrador.
O poder discricionário, no entanto, não incide sobre todos os elementos do ato administrativo. Em relação à competência o ato será sempre vinculado, afinal, seria impensável que alguém, sem previsão legal, pudesse praticar ato administrativo sob pretexto de ser oportuno e conveniente fazê-lo, pois a atividade administrativa ocorre por decorrência de lei. Ainda pior seria a possibilidade do ato ser praticado em desconformidade com sua finalidade – atendimento do interesse público.
Fazemos somente ressalva à chamada delegação administrativa, no qual uma autoridade administrativa competente delega a atribuição de ato ou atos para outra. Para que isso ocorra, no entanto, não pode haver vedação legal. Além disso, não ocorre delegação de competência, mas somente delegação da possibilidade do exercício desta.
Também como regra, temos que a forma prevista em lei para o ato, não pode ser objeto de discricionariedade. Em síntese, Hely Lopes Meirelles [05]:
Com efeito, o administrador, mesmo para a prática de um ato discricionário, deverá ter competência legal para praticá-lo; deverá obedecer à forma legal para a sua realização; e deverá atender à finalidade legal de todo ato administrativo, que é o interesse público.
Registramos que Di Pietro [06] prefere afirmar que, como regra, a forma dos atos administrativos é vinculada, mas é possível que lei preveja mais de uma forma possível para sua prática. Nesse caso, a forma a ser utilizada será escolhida pelo legislador por meio de critérios de oportunidade e conveniência.
Destarte, teremos possível exercício de poder discricionário em somente dois elementos do ato administrativo, de acordo com a classificação de Hely - o motivo e objeto do ato. Vejamos suas considerações sobre motivo do ato administrativo [07]:
Motivo ou causa é a situação de direito ou de fato que determina ou autoriza a realização do ato administrativo. O motivo, como elemento integrante da perfeição do ato, pode vir expresso em lei como pode ser deixado ao critério do administrador. No primeiro caso será um elemento vinculado; no segundo, discricionário, quanto à sua existência e valoração.
Em momento posterior, o doutrinador discorre sobre o objeto do ato administrativo [08]:
Todo ato administrativo tem por objeto a criação, modificação ou comprovação de situações jurídicas concernentes a pessoas, coisas ou atividades sujeitas à ação do Poder Público. Nesse sentido, o objeto identifica-se com o conteúdo do ato, através do qual a Administração manifesta seu poder e sua vontade, ou atesta simplesmente situações preexistentes.
[...]
O objeto, nos atos discricionários, fica na dependência da escolha do Poder Público, constituindo essa liberdade opcional o mérito administrativo.
Assim, na avaliação dos motivos que sirvam de pressupostos do ato bem como no seu conteúdo ou situação concreta da realidade que a administração deseja modificar, é possível recair o poder discricionário, é dizer, há discricionariedade, quando a lei permitir, em relação ao motivo e objeto do ato.
3 Controle judicial de atos administrativos
Conforme vimos, os atos administrativos podem ser classificados como vinculados e discricionários e cada um terá tratamento distinto em relação à possibilidade e abrangência de controle jurisdicional.
Os atos vinculados se caracterizam por possuírem exaustiva previsão legal para sua prática. Diante dessa premissa, para que ocorra o controle pela via judicial, basta que se faça comparação entre a lei e o ato administrativo. Caso haja incongruência entre os dois instrumentos o ato será ilegal [09], podendo ser anulado judicialmente.
Ocorre que algumas vezes o legislador deixará definidos somente alguns elementos do ato, restando outros aspectos a serem valorados pela administração por juízos de oportunidade e conveniência. Nesse caso exige-se mais cautela em relação à forma de controle judicial.
Nos chamados atos administrativos discricionários, em relação aos elementos delimitados por lei, haverá simples analise de legalidade, comparação estrita entre a lei e ato praticado, tal qual se dá no controle do ato vinculado. Porém, em relação ao mérito administrativo, é cediço que o Poder Judiciário não poderá, a pretexto de realizar controle de lesão ou ameaça de lesão a direito, substituir-se ao administrador na avaliação de oportunidade e conveniência.
Isto porque quando o administrador faz a analise de mérito do ato está praticando uma competência a ele conferida pela lei com exclusividade, sendo ilegítima sua usurpação por outro poder. Nesse sentido, vejamos as lições de Maria Sylvia [10]:
Isto ocorre precisamente pelo fato de ser a discricionariedade um poder delimitado previamente pelo legislador; este, ao definir determinado ato, intencionalmente deixa um espaço para livre decisão da Administração Pública, legitimando previamente a sua opção; qualquer delas será legal. Daí por que não pode o Poder judiciário invadir esse espaço reservado, pela lei, ao administrador, pois, caso contrário, estaria substituindo, por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto.
Não obstante seja regra, é possível que o Judiciário realize controle de motivo e objeto de ato administrativo discricionário, dentro de situações excepcionais que possam surgir à luz do concreto. Tal situação surgirá no momento em que o administrador, supostamente exercendo poder discricionário ultrapassa os limites da delegação legal e invade o campo da legalidade [11].
Inicialmente é preciso certificar-se que o ato praticado precisa ser meio idôneo para atingir o fim objetivado pelo próprio administrador. Afirma-se nesse sentido porque o ato é meio para atingir determinado fim, logo, não havendo congruência entre o meio utilizado e o fim a ser atingido, o ato é passível de controle judicial. Trata-se de simples juízo de adequação. Assim esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello [12]:
Existe uma correlação lógica entre o fim a ser atendido e o meio a ser adotado. É claro que se o agente se vale de um meio que é inidôneo para alcançar o fim, não chega ao fim que tem que ser alvejado. Para compor um prosaico exemplo, diga-se que se alguém em São Paulo, tomar um ônibus rumo a Fortaleza, não há possibilidade que chegue a Porto Alegre.
[...]
Logo, como existe uma correlação lógica entre a finalidade e o ato (que não é senão o meio pelo qual se chega a ela), ter-se-á reforçada a percepção de que não basta, para dizer-se ocorrente discrição administrativa, a verificação de que a norma abriu para o administrador, a possibilidade de praticar ou não praticar o ato, de praticar este ou aquela. É preciso que, ao praticar ou ao não praticar o ato, ou ao praticar este ou aquele, tais opões que se traduzem em atos administrativos, que sejam as opções logicamente idôneas a chegar à finalidade.
Utiliza-se também como subsídio para controle o princípio da necessidade. Isto é, trata-se de verificar se os meios utilizados pelo administrador não são necessariamente mais gravosos ao administrado ou a própria Administração. Havendo vários meios idôneos, que possibilitem o mesmo fim é preferível o meio mais brando, não podendo ser utilizado, arbitrariamente, o meio mais gravoso ou custoso. Nesse sentido, vejamos as palavras de Ferrajoli [13]:
O princípio da exigibilidade também conhecido como ‘princípio da necessidade’ ou da ‘menor ingerência possível’, coloca a tônica na idéia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão (grifos no original)
Maria Sylvia [14] destaca também a situação do chamado desvio de poder administrativo. Tal situação se caracteriza quando, sob o manto da discricionariedade, o ato administrativo é utilizado para fim diferente do que a lei fixou. Nesse caso, haverá plena legitimidade para que o Poder Judiciário decrete a nulidade do ato, visto que o administrador jamais terá poder para atuar contra a lei. Igualmente precisas são as palavras de Carvalho Filho [15]:
[...] o desvio de poder é a modalidade de abuso em que o agente busca alcançar fim diverso daquele que a lei lhe permitiu, como bem assinala LAUBADÈRE. A finalidade da lei está sempre voltada para o interesse público. Se o agente atua em descompasso com esse fim, desvia-se de seu poder e pratica, assim, conduta ilegítima. Por isso é que tal vício é também denominado desvio de finalidade [...]
Outra forma de vício de poder seria o caso em que o administrador, ainda que praticando um ato visando interesse público, utiliza-se de uma competência que não é própria daquela finalidade específica [16].
Trazemos exemplo de Alexandrino e Paulo [17], que aclara a modalidade exposta:
[...] a remoção de ofício de um servidor, a fim de puni-lo por indisciplina; será desvio de finalidade, ainda que a localidade para a qual ele foi removido necessite realmente de pessoal; isso porque o ato de remoção, nos termos da lei, não pode ter o fim de punir um servidor, mas, unicamente, o de adequar o número de agentes de determinado cargo às necessidades de pessoal das diferentes unidades administrativas em que esses agentes sejam lotados.
Com base nestes ensinamentos, assinalamos nossa preferência em diferenciar os atos inadequados daquele praticados com desvio de poder ou finalidade. Os atos inadequados visam alcançar um interesse público, mas são meio inidôneos para tanto. Por inabilidade o administrador utilizou forma que se revelará inútil para alcançar o interesse público, mas era adequado em relação à sua competência legal específica. No caso do desvio de finalidade o ato, sob o disfarce da discricionariedade, busca fim contrário ao interesse público ou é estranho à competência específica para atingir aquela finalidade legal.
Nos casos supra, o que ocorre na realidade é que o administrador simplesmente invadiu o campo da legalidade, o que não enseja dúvidas sobre a possibilidade de controle judicial. Ainda mais delicado é o caso em que o legislador se utiliza de conceitos jurídicos indeterminados. Neste caso existe grande celeuma sobre a existência ou não de exercício de Poder Discricionário. Iniciaremos a discussão por meio de definição trazida por Carvalho Filho [18], para ele os conceitos jurídicos indeterminados são:
[...] termos ou expressões contidos em normas jurídicas, que, por não terem exatidão em seu sentido, permitem que o intérprete ou o aplicador possam atribuir certo significado mutável em função da valoração que se proceda diante dos pressupostos da norma.
Para alguns, o que ocorre nessa possibilidade é somente interpretação da norma jurídica, isto é, o conceito, determinável em abstrato, será determinado no caso concreto, por meio de regras hermenêuticas, quando se logrará êxito em chegar à única solução possível. Conforme vimos, no caso em que o administrador possui somente uma solução diante de caso concreto estamos diante de poder vinculado. Isto porque exercício de poder discricionário e interpretação normativa são situações que se diferem.
Conforme esclarece Marçal [19], o processo de escolha discricionária é "um modo de construção da norma jurídica", ou seja, o administrador irá manifestar uma vontade atribuída a ele por lei. Por outro lado, quando ocorre interpretação executa-se uma tarefa de "(re)construção da vontade normativa estranha e alheia ao aplicador. O intérprete não atribui sua conclusão a um juízo de conveniência próprio, mas ao sistema jurídico". Em suma, na discricionariedade revela-se a vontade do administrador enquanto na interpretação revela-se a "vontade legislativa que é determinada pelo sistema jurídico em si mesmo".
Outros preferem destacar semelhanças e diferenças entre a discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados. Para Carvalho Filho [20], nos conceitos jurídicos indeterminados há imprecisão de sentido enquanto na discricionariedade temos situação em que o administrador pode praticar mais de uma conduta licitamente.
Por isso se diz que na discricionariedade o campo de liberdade do administrador situa-se na conseqüência da norma enquanto nos conceitos legais indeterminados as possibilidades de avaliação e escolha residiriam na própria norma, que traz em seu bojo, conceitos vagos [21].
Outros autores preferem afirmar que eventualmente ao serem utilizados os conceitos jurídicos indeterminados o legislador não possuirá qualquer poder discricionário. Afirma Maria Sylvia [22]:
Alega-se que, quando a Administração emprega esse tipo de conceito, nem sempre existe discricionariedade; esta não existirá se houver elementos objetivos, extraídos da experiência, que permitam sua delimitação, chegando-se a uma única solução válida diante do direito. Nesse caso haverá apenas interpretação do sentido da norma, inconfundível com discricionariedade. Por exemplo, se a lei prevê afastamento ex officio do funcionário incapacitado para o exercício de função pública, a autoridade tem que procurar o auxílio de peritos que esclareçam se determinada situação de fato caracteriza incapacidade; não poderá decidir segundo critérios objetivos.
Assim, notamos que no exemplo hipotético da autora - "incapacitação" - não existe qualquer discricionariedade administrativa. Caso tal situação seja assim descrita por técnicos, o administrador está vinculado e tem o poder-dever garantir a conseqüência prevista na lei.
Cabe frisar que para a doutrinadora, caso haja espaço de valoração subjetiva, haverá discricionariedade. Porém tal situação não ensejará um completo afastamento da possibilidade de controle por parte do Poder Judiciário.
Utilizaremos o exemplo trazido por Maria Sylvia – notável saber jurídico. Neste caso existem situações em que é facilmente perceptível, por critérios de razoabilidade saber quem certamente possui notável saber jurídico e quem certamente não o possui. São as chamadas zonas de certeza. Por outro lado haverá as chamadas zonas cinzentas, no qual não será possível precisar se realmente existe o notável saber jurídico. Quando ocorrer tal situação o Poder Judiciário não poderá atuar sobre o ato tendo em vista o uso legítimo do poder discricionário [23].
Tal interpretação nos parece correta. É possível que diante de conceitos legais indeterminados haja espaço para discricionariedade para o administrador e é possível também que não haja. Esta conclusão jamais poderá se dar a priori, devendo ser vislumbrada à luz de cada situação específica em que foi veiculado o conceito. Porém, voltamos a frisar que o tema suscita grande controvérsia em sede doutrinária. Tamanha é a divergência que nos parece não ser adequada sua cobrança em provas do tipo objetiva. Traremos alguns dos exemplos colhidos na doutrina, que refutam a possibilidade de existência de poder discricionário diante dos chamados conceitos jurídicos indeterminados. A própria Maria Sylvia [24] reconhece a polêmica:
No que diz respeito aos conceitos jurídicos indeterminados, ainda há muita polêmica, podendo-se falar de duas grandes correntes: a dos que entendem que eles não conferem discricionariedade à Administração, porque, diante deles, a Administração tem que fazer um trabalho de interpretação que leve à única solução válida possível; e a dos que entendem que eles podem conferir discricionariedade à Administração, desde que se trate de conceitos de valor, que impliquem a discricionariedade diante de certos conceitos de experiência ou conceitos técnicos, que não admitem soluções alternativas.
Vejamos a explicação pormenorizada de Florivaldo Dutra de Araújo [25]:
Vimos acima que Juan Francisco Linares, ao dar o conceito de "arbítrio extraordinário" (discricionariedade, conforme a denominação tradicional), identifica-o pelas normas que ao administrador conferem poderes, expressando-se em "fórmulas elásticas". Essa localização dos chamados "conceitos indeterminados" ou "normas flexíveis" no campo da discricionariedade vai aos poucos dando lugar, na teoria moderna do ato administrativo, à sua inclusão como modalidade de comportamento vinculado da Administração.
Trata-se, na verdade, de manifestação específica de regulação direta da conduta administrativa.
A teoria dos conceitos jurídicos indeterminados (unberstimmter Rechtsbergriff), de origem austro-alemã, afirma que o uso de expressões com significados elásticos a priori, pelas normas jurídicas, não constituiu particularidade do direito público, mas encontra-se em qualquer ramo do direito. Se na esfera publicística é comum encontrarem-se referencias à "utilidade pública", "ordem pública", "interesse coletivo", etc., no direito privado comparecem amiúde termos tais como "boa-fé", "bons costumes", "conduta de bom pai de família" e "arbitrium boni viri"
Trata-se, portanto, de tema da Teoria Geral do Direito, e não particularidade do Direito Administrativo, a conferir poderes especiais ("discricionários") ao agente público. E se a indeterminação dos conceitos existe enquanto a norma permanece em sua abstração e generalidade, ao tornar-se aplicada num caso concreto, aquela desaparece, pois, diante de uma específica situação fática, a valoração desta, segundo a experiência humana, leva a uma só conclusão:
...ou se dá ou não se dá o conceito, ou há boa-fé ou não há boa fé no negócio, ou o sujeito comportou-se como um bom pai família ou não, podemos dizer em termos do Direito Privado, ou em nosso campo: ou há utilidade pública ou não há; ou se dá, com efeito, uma perturbação da ordem pública; ou não se dá, ou o preço que se assinala é justo ou não é, etc. tertium non datur (Garcia de Enterría. 1974, p. 35)
Ocorrerá sempre, nesse caso, o que o mestre espanhol chama de "unidade de solução justa" ao aplicar-se o conceito em circunstncias concretas, no que se diferenciam os conceitos indeterminados da discricionariedade, "pois o que caracteriza a esta é justamente a pluralidade de soluções justas possíveis como conseqüência do seu exercício" (1974, p. 35) (grifei)
Também, no sentido de que não existe manifestação do poder discricionário em caso de conter a norma conceitos jurídicos vagos ou indeterminados, Edimur Ferreira de Faria [26], em subtópico denominado Conceitos jurídicos indeterminados:
Com o objetivo de ampliar o controle do Judiciário sobre os atos decorrentes do poder discricionário, desenvolveu-se na Alemanha a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados. Com essa teoria, restringiu-se o espaço da discricionariedade. Vários comportamentos da Administração, tidos até então como discricionários, eram na verdade, casos de intelecção da lei e não de escolha. Assim, no caso concreto, a autoridade não terá a faculdade de valorar, mas o dever de descobrir na lei a sua vontade para aquela situação fática. Só há poucos anos iniciou-se o estudo e a adoção da teoria dos conceitos jurídicos indeterminados no Direito Brasileiro. São exemplos de conceitos jurídicos indeterminados ou vagos: notório saber, boa reputação, pobreza, interesse público, imediatamente, etc.
Posicionamentos contrários ao exposto pela banca examinadora brotam torrencialmente da doutrina mais abalizada. Vejamos o entendimento da doutrina estrangeira trazido por Lúcia Valle Figueiredo [27]:
García de Enterría e Ramón Fernandez aceitam o pensamento da moderna escola alemã, contrapondo conceitos indeterminados aos determinados. Vão asseverar, todavia, que não se encontra nos conceitos indeterminados o abrigo da discricionariedade (grifei)
Também é discutível a existência de discricionariedade quando a lei utiliza os chamados conceitos técnicos. Nessa situação o administrador deverá recorrer à manifestação técnica que será balizada não pela oportunidade e conveniência, mas por critérios científicos da ciência correspondente. Nesse sentido, Di Pietro: [28]
Em determinadas hipóteses, não há dúvida: a lei usa conceitos técnicos que dependem de manifestação de órgão técnico, não cabendo à Administração mais do que uma solução juridicamente válida. Assim, quando a lei assegura o direito à aposentadoria por invalidez, a decisão Administrativa fica vinculada a laudo técnico, fornecido pelo órgão especializado competente, que concluirá sobre a invalidez ou não para o trabalho; não resta qualquer margem de discricionariedade administrativa.
Muitos autores rechaçam a possibilidade da existência da chamada "discricionariedade técnica". Assim afirma Miguel Marienhoff [29]
Não se pode falar em discricionariedade técnica. Se algum ato necessita de regras técnicas para ser editado, são elas anteriores a sua emanação. Demais, pela técnica apensa se pode chegar a uma única conclusão.
O interesse público, aqui, não entra em conta. Apenas se valora, após conhecida uma informação técnica, quando se tenha de resolver, com base nela, se é oportuna ou conveniente a emanação de um ato, para satisfazer as exigências de interesse público.
A questão também abordava os chamados conceitos de valor. Conforme já explicitado de maneira geral, Di Pietro [30] afirma que eventualmente os conceitos de valor poderão se tornar determinados diante da matéria de fato, caso em que redundarão na vinculação do administrador, caso contrário haverá discricionariedade.
Não pretendemos com essas rápidas considerações esgotar o tema, nem dar fim à celeuma existente, tendo em vista que não atingiram tal desiderato os maiores nomes do Direito Administrativo Brasileiro. Tentamos somente situar o leitor, bem como demonstrar a grande controvérsia existente e como aquele que prestou exame de ordem dependeria da escolha de um autor determinado, arbitrariamente eleito pela banca aplicadora, dentre tantos com grande respaldo, para acertar a referida questão.
3.1 Controle judicial de atos administrativos e a teoria dos motivos determinantes
Entre as teorias que dão suporte ao controle judicial de atos discricionários, gostaríamos de destacar a chamada teoria dos motivos determinantes. Conforme discorremos neste artigo todo ato administrativo possui um motivo, ou seja, possui pressupostos de fato e de direito que o fundamentam.
O elemento necessário "motivo", todavia, não se equipara a motivação. Motivação é a demonstração, a explicitação dos fatos que levaram ao ato. Segundo Carvalho Filho [31] "a motivação exprime de modo expresso e textual todas as situações de fato que levaram o agente à manifestação de vontade".
Como regra, adotaremos a visão de Carvalho Filho [32], de que não obstante seja salutar e transparente, como regra, não há obrigatoriedade da motivação dos atos administrativos. É possível, no entanto, que a lei a exija, como faz a lei 9.784/99 para inúmeras situações.
Não obstante reconhecermos não haver obrigatoriedade na motivação, uma vez expressa, esta vincula o administrador, podendo ser verificada a realidade dos fatos que serviram de justificativa para o ato. Di Pietro [33], sucintamente, afirma que "quando a Administração motiva o ato, mesmo que a lei não exija motivação, ele só será válido de os motivos forem verdadeiros". Transcrevemos também elucidativo exemplo da autora:
[...] a exoneração ad nutum, para a qual a lei não define o motivo, se a Administração praticar esse ato alegando que o fez por falta de verba e depois nomear outro funcionário para a mesma vaga, o ato será nulo por vício quanto ao motivo.
A partir de tais ensinamentos podemos concluir que cabe ao Poder Judiciário apreciar a inexistência dos motivos expressos pelo Administrador. Sob o manto da discricionariedade não se pode aceitar que a atividade administrativa seja lastreada em justificativas falsas.
Devido à presunção de veracidade do ato, Carvalho Filho [34] afirma que "se o interessado comprovar que inexiste a realidade fática mencionada no ato como determinante da vontade, estará ele irremediavelmente inquinado de vício da legalidade". É dizer, a anulação do ato ficará na dependência da prova da inexistência da situação apontada como pressuposto de fato, mas frisamos, ainda que haja presunção de veracidade, ela pode ser afastada.