Estarrecedora a quantidade de equívocos jurídicos sobre a condenação do Brasil pela Corte Interamericana (sentença de 24.11.10). Editorial do jornal O Estado de S. Paulo (18.12.10, p. A3), por exemplo, afirmou que a condenação do caso Araguaia seria a terceira da Corte contra o Brasil. Nada mais equivocado!
Em primeiro lugar, foram confundidas a Comissão e a Corte. Aquela sediada em Washington e esta na Costa Rica. As condenações (ou recomendações) nos casos Maria da Penha e presídios do Espírito Santo foram impostas pela Comissão (não pela Corte). No caso Araguaia, a condenação é da Corte Interamericana (não da Comissão). Em segundo lugar, a Corte já condenou o Brasil muitas outras vezes: caso Ximenes Lopes, caso Escher, caso Sétimo Garibaldi etc.
O Editorial afirma ainda o seguinte: "Por mais que causem constrangimentos políticos, as condenações da Corte não acarretam sanções jurídicas".
Do ponto de vista jurídico afirmações como essas são inaceitáveis. Seria o mesmo que afirmar que uma condenação (de um criminoso internacional de nacionalidade brasileira) proveniente do Tribunal Penal Internacional não pudesse ser aplicável pelo fato de o agente ter sido eventualmente "absolvido" pela Justiça brasileira.
O descumprimento das sentenças provenientes de Tribunais internacionais acarreta nova responsabilidade internacional do Estado e, como última consequencia, pode esse mesmo Estado ser excluído do organismo regional do qual faz parte (no caso brasileiro, da Organização dos Estados Americanos). Uma vez detectada pela Corte a inércia do Estado em adotar as medidas previstas na sentença, nasce o dever do tribunal (nos termos do art. 65, in fine, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969) de informar o ocorrido à Assembléia-Geral da OEA, a fim de que a Organização tome as providências que reputar necessárias contra o Estado faltoso.
Assim, no relatório que a Corte deve submeter à consideração da Assembléia-Geral da OEA em cada período ordinário de sessões, tem de constar – de "maneira especial, e com as recomendações pertinentes", como destaca a Convenção – os casos em que um Estado não tenha dado cumprimento a suas sentenças. Tal expediente tem por finalidade enfatizar a supervisão (mais política que jurídica, é certo) do cumprimento das decisões da Corte no âmbito da Assembléia-Geral da OEA. No referido relatório a Corte indicará os casos por ela julgados e as medidas (reparações, indenizações etc.) que prescreveu aos Estados em questão e que foram descumpridas, ocasião em que fará as pertinentes recomendações à Organização.
A Lei de Anistia brasileira, embora recebida pela Constituição de 1988, é inconvencional (por violar as convenções de direitos humanos ratificadas pelo Brasil) e inválida (por contrariar frontalmente o jus cogens internacional). Nem tudo o que foi recebido pela Constituição de 1988 é compatível com os tratados em vigor no Brasil e detém validade.
A prisão civil do depositário infiel, por exemplo, foi declarada inválida pelo STF justamente tendo em conta os tratados de direitos humanos por nós ratificados, que segundo o próprio STF guardam na ordem jurídica brasileira nível superior às leis (RE 466.343-SP).
Portanto, nem tudo que é recebido pela Constituição é convencional e válido, porque agora as leis devem também ter compatibilidade com as Convenções internacionais. Uma lei pode ser constitucional, mas inconvencional. Tanto no caso de inconstitucionalidade como na hipótese de inconvencionalidade, a lei não vale. É preciso que o Brasil se familiarize com os controles de constitucionalidade e de convencionalidade.
Outra imprecisão do citado Editorial: "O País é soberano em matéria de iniciativa legislativa, que as decisões da CIDH não vinculam a Justiça brasileira e que a Lei da Anistia resultou de um pacto para consolidar a democracia". Todo país, ao firmar um tratado internacional, perde sua soberania externa (consoante lição do jurista italiano Luigi Ferrajoli). O conceito de soberania está se evaporando. Foi útil, no princípio do século XX, para que os Estados adotassem suas políticas autoritárias (guerras, fascismo, nazismo, Estado Novo etc.).
Toda iniciativa legislativa hoje, precisamente porque se acha no plano ordinário, só tem valor jurídico quando compatível com as ordens jurídicas superiores: constitucional, internacional e universal. Foi decretado o fim do dogmatismo do legislador. O tempo do legalismo puro está morto.
As decisões da Corte Interamericana vinculam sim o país, vinculam obviamente o Brasil. Se a Justiça brasileira faz parte do Estado, ela também está obrigada a respeitar tais decisões. Também ela está vinculada, sob pena de novas violações à Convenção Americana. Uma nova cultura jurídica já se formou, mas muita gente ainda não se atinou para isso.
A Lei de Anistia resultou de um pacto "imposto" pelo Governo militar da época. Isso significa, na visão da Corte, uma auto-anistia. Toda auto-anistia é inválida (isso já ocorreu com Argentina, Chile, Peru etc.). Pactos inválidos não consolidam a democracia, ao contrário, denegam sua existência.
A reação indignada de alguns ministros do STF frente à condenação da Corte ("Essa decisão não vale juridicamente, só tem efeitos morais e políticos" etc.) não possui nenhum valor jurídico sob a ótica do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Para a Corte isso é um "nada jurídico", porque suas decisões são dirigidas contra o Brasil (não contra eles, os Ministros). Aliás, o Ministério das Relações Exteriores já disse que vai cumprir a decisão. Isso é o correto, para não lançar o Brasil no rol das Repúblicas bananeiras.
O Editorial, irrefletidamente, arremata: "A Lei de Anistia continuará em vigor, sendo respeitada e aplicada pela Justiça". Nada mais equivocado. A lei de anistia brasileira, em relação aos agentes do Estado que praticaram torturas, mortes e desaparecimentos, passou a ser um "nada jurídico". O Brasil tem que cumprir a decisão da Corte, sob pena de desprestígio internacional. Justamente agora que o Brasil vem tendo certo reconhecimento mundial em termos econômicos, é estarrecedor ver tanto atraso na sua cultura jurídica internacional.